A fábula distópica

O desmatamento da Amazônia estava quase completo. Árvores, plantas, tribos indígenas e algumas espécies de animais entraram em extinção. O desmatamento ilegal estava sendo vantajoso para um pequeno grupo de pessoas que tendiam a colocar seus interesses particulares a frente de tudo e de todos. Essas pessoas, em específico, os donos de madeireiras e políticos que comandavam a fraude, argumentavam dizendo que, a mata atlântica ocupava muito espaço no território nacional e isso prejudicava o Brasil. Tinham um projeto de fazer do estado do Amazonas uma nova metrópole nacional. Devido ao desmatamento, o setor da agropecuária estava em crise. Não havia mais pastos para que se reproduzissem gados para o consumo nacional quiçá para exportar. A crise na indústria agropecuária se arrastou também para a agricultura e o país não era mais capaz de produzir seu próprio sustento. Havia muita gente para pouco alimento o que fez os preços subirem. Essa escassez de alimentos fez o país abaixar seu nível social, as pessoas literalmente lutavam para sobreviver, o lixo de poucos ricos que não foram abalados pela crise se transformou na alimentação de muitos pobres. Como já dizia o poeta, o que é bom é para si e o que sobra é do outro.

O Estado temendo uma revolta da população pela crise da fome, junto as indústria dos ramos de agropecuária e agricultura que estavam quase em falência, desenvolveram através da tecnologia e ciência química, alimentos que supriam as necessidades nutricionais da população. A enxadada acertou literalmente duas minhocas, na verdade três, pois acabou com a fome da população, criou empregos e o status de uma nação inovadora era o slogan do Estado, que deixou de ser vilão e se tornou herói.

Esses alimentos tinham um custo de produção relativamente baixo, eram materiais inócuos ao corpo humano, eram compostos químicos recheados de vitaminas e todas as substâncias necessárias para manter um ser racional, irracional. Como num truque de mágica, fez com que a fome que um dia assombrou o Brasil, simplesmente desaparecesse. Mas sempre que se solucionava um problema aparecia outro, e nesse caso, o desperdício de alimentos. O lixo, que antes era a fonte de alimentação para as pessoas que não tinham o que comer, acabou se tornando um problema e houve uma proliferação de doenças oriundas de ratos. O Estado, mais uma vez, achou a solução inovadora. A parceria com as indústrias da agropecuária e agricultura ainda rendia resultados e diante da necessidade de um combate eficaz contra os ratos, a indústria desenvolveu a solução para o problema: a reprodução industrializada biológica de gatos.

Os felinos eram criados em laboratórios e soltos nas ruas quando atingissem uma certa idade para combater os ratos. No começo, o intuito da indústria era apenas combater os ratos, porém, com a extinção das carnes bovinas, a característica dominadora do humano e o desenvolvimento de mais pesquisas, a indústria expandiu a produção e os gatos também se tornaram fonte de consumo de carne. A ideia era inovadora segundo a mídia, pois acabava com os problemas dos ratos, gerava empregos e fortalecia ainda mais a economia do Brasil. A espinha dorsal da sociedade moderna estava formada: inovação, geração de empregos e produção econômica.

A população estranhou no começo, mas os gatos produzidos tinham uma aparência pouco atraente, não eram condizentes com os padrões de beleza existentes. Por serem feitos em laboratórios e para diminuírem no custo de produção, os gatos não tinham pêlos nem bigodes. Traziam apenas sua agilidade e astúcia genética dos felinos para caçar os ratos. A mudança na aparência física dos gatos foi fundamental para a aceitação do povo que passou a enxergá-los apenas como uma arma para as doenças de ratos e posteriormente como fonte de alimentação. A criação e a determinação de valores e padrões foi facilmente alterada, não foi mágica nem mistério, era simplesmente a indústria fazendo seu papel, ditando o consumo, “inovando” e usando a ciência como ferramenta. A domesticação de gatos se tornou proibida. Quem criasse gatos, se fosse denunciado ou descoberto poderia ser preso.

A manobra surtia efeito, o consumo da carne felina logo se tornou um sucesso e os gatos que antes eram domesticados e viviam no sofá passaram a viver nas ruas lutando contra os ratos, em pratos, panelas, geladeiras ou freezers. Havia duas linhas de produção, uma era de gatos apenas para o consumo. A outra era de gatos para o combate contra os ratos. A população gostou da novidade e entrou de cabeça, novos pratos e receitas gastronômicas surgiram numa velocidade espantadora que rejeitou qualquer tipo de reflexão, apenas aceitação.

A indústria a fim de melhorar seu desempenho, começou implantar chip de rastreamento por dentro da pele dos gatos, que fornecia diversas informações, como por exemplo, batimento cardíaco, peso, número de ratos que o gato pegou e localização em tempo real dos gatos. Além disso, implantaram também uma microcâmera em cima da cabeça dos bichanos, para que pudessem assistir em tempo real tudo o que acontecia com eles. Logo, com todas essas informações e dados mais uma porta se abriu para a economia e a caça se tornou uma espécie de jogo de azar regularizado, as pessoas podiam apostar infinitas possibilidades, como a direção que um gato iria, quantos ratos um gato mataria em combate, até mesmo quantos dias meses ou anos ele iria sobreviver. Era o reality show da vida urbana selvagem, a luta pela vida entre predador e presas. Os vídeos das brigas entre gatos e ratos que lutavam até a morte, se espalharam na velocidade de um vírus em uma pandemia.

As ruas estavam tomadas por gatos que andavam pelas cidades com suas câmeras penduradas, combatendo os ratos. Os telespectadores acompanhavam tudo através de seus smartphones e televisores. O pão e circo da era digital estava formado.

Todos os gatos tinham um número de identificação e as apostas eram feitas online. Os ratos, que se fortaleciam vivendo em conjuntos pelos lixos das grandes cidades, passaram a ter mutação genética, pois a comida que era descartada tinham composições químicas. Enquanto essas composições, nos humanos causavam aumento de imbecilidade e perda de neurônios que não os deixavam raciocinar por si só, apenas fazer o que lhe eram ordenados. Esses mesmos componentes nos ratos alteravam seu tamanho, peso e velocidade. Ou seja, alguns ratos chegavam a pesar 3 a 4 quilos com um comprimento de 100 a 120 centímetros e atingiam até 40 Km/h quando estavam correndo.

Enquanto o sistema de aposta ia de vento e polpa e os vídeos das lutas entre gatos e ratos faziam sucesso, um gato em especial de numeração 4M0R deu início a um momento revolucionário na história. O bichano ficou conhecido não apenas por parar de caçar os ratos, mas também de se envolver com uma comunidade de ratos, que surpreendentemente, diferente da raça humana que usa o princípio da diferença para criar desigualdade, o aceitou. Os gatos do lote M5D2 S3U C0N6E1T0, também seguiram os passos do gato 4M0R. Esse grupo de gatos que tinha a simples missão de matar e comer seus adversários para alegria e entretenimento dos humanos, decidiram se unir ao invés de lutar, isso é claro não acabou agradando a espécie dos homo sapiens. Sem ao menos cogitarem que erraram e talvez entender a lição da natureza, os humanos tinham uma carta na manga. Fizeram testes com os cachorros para saber se eles seriam capazes de caçar, os ratos e os gatos. Os resultados foram ótimos, a euforia tomava conta das pessoas novamente, as projeções econômicas estavam em alta e a decadência do ser humano também. Um cientista, ao perceber as ações dos ratos e consequentemente dos gatos, explicou que seres vivos quando tem suas necessidades fisiológicas supridas tendem a não entrar em confronto. O cientista não conseguiu explicar o porquê um ser racional não alimenta sua racionalidade, isso ainda permanece um mistério para a humanidade, que aparentemente também não está muito preocupada com a resposta, pois a indústria vai começar mais um ciclo da produção biológica, desta vez de cachorros, para acabar com os ratos e os gatos.