Pela honra da família
PELA HONRA DA FAMÍLIA
Miguel Carqueija
O velho Comandante Samuel Gonzaga Macambira Barbosa encontrava-se sozinho a uma das mesas circulares do restaurante do Clube dos Oficiais, numa hora sem movimento, no edifício-sede do Comando, observando pensativo um prato de torradas, quando uma voz conhecida interrompeu o seu devaneio:
— Papai! O senhor por aqui?
Ele olhou sem muito entusiasmo o recém-chegado:
— Oh, é você! Sente-se!
O Capitão Aderaldo Barbosa não se fez de rogado, sentou-se em frente ao pai, pôs o quepe na cestinha da cadeira e perguntou:
— Mas o que faz o senhor aqui?
Samuel, que sentia tédio ante perguntas tão óbvias, suspirou ao responder:
— Será que é porque eu sou capitão de espaçonave e esse é o nosso restaurante?
— Pois é. Mas raramente o encontro aqui. O senhor está sempre no espaço...
— Obviamente é porque o Comando confia em mim para missões espaciais — respondeu, seco e cortante, o velho capitão.
Mas o Capitão Barbosa não percebeu a ironia e prosseguiu:
— Mas papai, quando é que o senhor vai se aposentar? Afinal, na sua idade...
— Você está me chamando de velho, por acaso?!
— Que é isso, velho... digo, papai... mas é que o senhor merece... depois de 50 anos servindo à Federação...
(Sim... e os últimos vinte livrando esse meu filho de encrencas.)
Felizmente a garçonete-robô interrompeu a conversa para ouvir os pedidos.
Barbosa pediu um pastelão bem temperado e um vinho tinto, e Gonzaga um fetutine com suco de melão.
— Não sei como o senhor consegue sobreviver com essa dieta — observou Barbosa distraidamente.
— Como vai a Antaprise? — perguntou o velho capitão, mais por falta de assunto.
— Ah, a Antaprise — suspirou Barbosa. — Ela me dá tanto trabalho! O senhor sabe, papai, que eu entrei para a Armada Espacial pela honra da família...
“Ou pela desonra”, pensou o pai tristemente. Barbosa prosseguiu:
— Alguém tinha que manter a tradição, que vem de várias gerações! E graças a Deus estou mantendo! Quando eu conseguir levantar vôo de novo com a Antaprise, sei que novas realizações me aguardam!
O Capitão Gonzaga Barbosa Senior começou a tossir desesperadamente.
— Puxa, papai! Como é que o senhor consegue se engasgar com fetutine?
— Escute... — começou o velho, com dificuldade. — Você falou O QUE sobre a Antaprise?
— Ué, eu disse que quando eu conseguir levantar vôo...
— Eu SEI que não deveria fazer essa pergunta. Mas o que foi que aconteceu com a Antaprise?
— Oh, nada de importante, papai. A OUTRA nave ficou bem pior...
— A... a outra???
— Sim, ainda há pouco, na hora em que pousamos, houve uma ligeira falha de cálculo e colidimos com uma espaçonave que já estava pousada... mas papai, será que este fetutine lhe fez mal? O senhor está ficando verde!
— Esqueça o fetutine. Conte o resto. Sabe me dizer qual é a outra nave?
Barbosa pensou, pensou e afinal se saiu com essa:
— Acho que o que dizia na fuselagem... ficou tão amassada, mas ainda dava para ler... era Singrador do Cosmos. Até pensei com meus botões: puxa, o comandante deve ser muito cafona, para dar um nome tão ridículo...
Barbosa Senior espalmou as duas mãos sobre a mesa e escandiu as palavras:
— Você tem... ideia... de quem é... o capitão dessa nave?
— Não, papai, eu não faço a mínima ideia... mas o senhor está passando mal? Ficou meio verde de repente... o senhor parou de comer, o fetutine vai esfriar...
— Esqueça esse maldito fetutine. Diga uma coisa, Aderaldo... o que veio fazer aqui? Você não tinha que preparar um relatório do sinistro?
— Papai, eu estava com fome. Mandei a havaiana preparar o relatório!
— Hein? Não ouvi bem...
— É o cérebro da nave. É que o holograma do cérebro, eu programei na forma de uma garota havaiana...
— Chega. Lembro disso. Mas isso não é o que importa agora.
— Bem, papai, então o que é que importa além do fetutine, é claro?
— Aderaldo — e o Capitão Gonzaga Barbosa ostentava uma calma mortífera — você está sabendo que recentemente eu mudei de nave?
— Ouvi dizer sim, ou melhor, eu li no Notícias Cósmicas há pouco tempo... esqueci o nome da sua espaçonave, como é que era mesmo?
— Continue. Você sempre se orgulhou da sua memória aguçada.
— Bom, deixa eu pensar...
Barbosa Jr. se concentrou, coçou a cabeça, fechou os olhos, por fim os abriu e exclamou:
— Ah, sim, agora eu me lembro! O nome é Singrador do Cosmos! Como é que eu pude...
Nesse momento, porém, o Capitão Barbosa se deu conta do que havia dito.
— Puxa, papai, eu sinto muito, foi sem querer, acredite...
— Barbosa — e o Capitão Gonzaga escandiu sinistramente as palavras — lembra do que eu costumava fazer quando você era garoto e fazia travessura?
— Não, papai. Foi há muito tempo e já me esqueci!
— Pois eu vou refrescar a sua memória!
— Papai, o senhor nem terminou de comer o...
E aí o Capitão Barbosa recebeu o prato de fetutine na cara.
— Agora eu lembrei! — balbuciou Barbosa. — O senhor me atirava o prato de comida quente na cara!
Rio de Janeiro, 3 de agosto de 2017/18 de maio de 2020.
imagem pinterest
PELA HONRA DA FAMÍLIA
Miguel Carqueija
O velho Comandante Samuel Gonzaga Macambira Barbosa encontrava-se sozinho a uma das mesas circulares do restaurante do Clube dos Oficiais, numa hora sem movimento, no edifício-sede do Comando, observando pensativo um prato de torradas, quando uma voz conhecida interrompeu o seu devaneio:
— Papai! O senhor por aqui?
Ele olhou sem muito entusiasmo o recém-chegado:
— Oh, é você! Sente-se!
O Capitão Aderaldo Barbosa não se fez de rogado, sentou-se em frente ao pai, pôs o quepe na cestinha da cadeira e perguntou:
— Mas o que faz o senhor aqui?
Samuel, que sentia tédio ante perguntas tão óbvias, suspirou ao responder:
— Será que é porque eu sou capitão de espaçonave e esse é o nosso restaurante?
— Pois é. Mas raramente o encontro aqui. O senhor está sempre no espaço...
— Obviamente é porque o Comando confia em mim para missões espaciais — respondeu, seco e cortante, o velho capitão.
Mas o Capitão Barbosa não percebeu a ironia e prosseguiu:
— Mas papai, quando é que o senhor vai se aposentar? Afinal, na sua idade...
— Você está me chamando de velho, por acaso?!
— Que é isso, velho... digo, papai... mas é que o senhor merece... depois de 50 anos servindo à Federação...
(Sim... e os últimos vinte livrando esse meu filho de encrencas.)
Felizmente a garçonete-robô interrompeu a conversa para ouvir os pedidos.
Barbosa pediu um pastelão bem temperado e um vinho tinto, e Gonzaga um fetutine com suco de melão.
— Não sei como o senhor consegue sobreviver com essa dieta — observou Barbosa distraidamente.
— Como vai a Antaprise? — perguntou o velho capitão, mais por falta de assunto.
— Ah, a Antaprise — suspirou Barbosa. — Ela me dá tanto trabalho! O senhor sabe, papai, que eu entrei para a Armada Espacial pela honra da família...
“Ou pela desonra”, pensou o pai tristemente. Barbosa prosseguiu:
— Alguém tinha que manter a tradição, que vem de várias gerações! E graças a Deus estou mantendo! Quando eu conseguir levantar vôo de novo com a Antaprise, sei que novas realizações me aguardam!
O Capitão Gonzaga Barbosa Senior começou a tossir desesperadamente.
— Puxa, papai! Como é que o senhor consegue se engasgar com fetutine?
— Escute... — começou o velho, com dificuldade. — Você falou O QUE sobre a Antaprise?
— Ué, eu disse que quando eu conseguir levantar vôo...
— Eu SEI que não deveria fazer essa pergunta. Mas o que foi que aconteceu com a Antaprise?
— Oh, nada de importante, papai. A OUTRA nave ficou bem pior...
— A... a outra???
— Sim, ainda há pouco, na hora em que pousamos, houve uma ligeira falha de cálculo e colidimos com uma espaçonave que já estava pousada... mas papai, será que este fetutine lhe fez mal? O senhor está ficando verde!
— Esqueça o fetutine. Conte o resto. Sabe me dizer qual é a outra nave?
Barbosa pensou, pensou e afinal se saiu com essa:
— Acho que o que dizia na fuselagem... ficou tão amassada, mas ainda dava para ler... era Singrador do Cosmos. Até pensei com meus botões: puxa, o comandante deve ser muito cafona, para dar um nome tão ridículo...
Barbosa Senior espalmou as duas mãos sobre a mesa e escandiu as palavras:
— Você tem... ideia... de quem é... o capitão dessa nave?
— Não, papai, eu não faço a mínima ideia... mas o senhor está passando mal? Ficou meio verde de repente... o senhor parou de comer, o fetutine vai esfriar...
— Esqueça esse maldito fetutine. Diga uma coisa, Aderaldo... o que veio fazer aqui? Você não tinha que preparar um relatório do sinistro?
— Papai, eu estava com fome. Mandei a havaiana preparar o relatório!
— Hein? Não ouvi bem...
— É o cérebro da nave. É que o holograma do cérebro, eu programei na forma de uma garota havaiana...
— Chega. Lembro disso. Mas isso não é o que importa agora.
— Bem, papai, então o que é que importa além do fetutine, é claro?
— Aderaldo — e o Capitão Gonzaga Barbosa ostentava uma calma mortífera — você está sabendo que recentemente eu mudei de nave?
— Ouvi dizer sim, ou melhor, eu li no Notícias Cósmicas há pouco tempo... esqueci o nome da sua espaçonave, como é que era mesmo?
— Continue. Você sempre se orgulhou da sua memória aguçada.
— Bom, deixa eu pensar...
Barbosa Jr. se concentrou, coçou a cabeça, fechou os olhos, por fim os abriu e exclamou:
— Ah, sim, agora eu me lembro! O nome é Singrador do Cosmos! Como é que eu pude...
Nesse momento, porém, o Capitão Barbosa se deu conta do que havia dito.
— Puxa, papai, eu sinto muito, foi sem querer, acredite...
— Barbosa — e o Capitão Gonzaga escandiu sinistramente as palavras — lembra do que eu costumava fazer quando você era garoto e fazia travessura?
— Não, papai. Foi há muito tempo e já me esqueci!
— Pois eu vou refrescar a sua memória!
— Papai, o senhor nem terminou de comer o...
E aí o Capitão Barbosa recebeu o prato de fetutine na cara.
— Agora eu lembrei! — balbuciou Barbosa. — O senhor me atirava o prato de comida quente na cara!
Rio de Janeiro, 3 de agosto de 2017/18 de maio de 2020.
imagem pinterest