Os nossos filhos serão mutantes
- Essa afirmação é corajosa - disse Victor Ross para o passageiro ao seu lado, na cabine de comando da pequena astronave de transporte da Federação Solar. O destino de ambos, o planeta Zambla-IV, já estava visível à frente do veículo como um crescente branco e azul iluminado pela estrela classe F daquele sistema.
- É apenas uma constatação - redarguiu calmamente o passageiro, um homem parcialmente calvo, de cerca de 40 anos de idade. - A partir do momento em que a espécie humana se tornou multiplanetária, é certo que em algum momento os novos mundos povoados irão romper com as tradições do passado e isto fará com que nos ultrapassem, até mesmo em termos de desenvolvimento tecnológico.
- Imagino que o governo central não deve gostar muito de ouvir isso - avaliou o piloto. - Mas tem razão; a história tem demonstrado que as colônias acabam por seguir o caminho da autodeterminação, e nem sempre de modo pacífico. Acha que é o caso de Zambla-IV?
O passageiro olhou para o planeta que crescia no para-brisa blindado da astronave.
- Zambla-IV é um mundo de fronteira; o povoamento aqui ainda é bastante recente. Mas, sim, provavelmente esse dia chegaria, em mais cem ou duzentos anos... exceto se algo diferente acelerou o processo.
- E é isso o que está aqui para investigar, supervisor Doyle? - Sondou Ross, enquanto digitava comandos no computador de bordo.
- Li alguns relatórios sugestivos... vamos ver se correspondem à realidade - esquivou-se o interpelado.
* * *
Um som ribombante anunciou aos habitantes da vila de colonos, que uma nave da Federação acabara de adentrar a atmosfera do seu planeta. Olhos ergueram-se para o alto e acompanharam o aparelho enquanto ele descia no espaçoporto, nos arrabaldes do lugarejo. Um representante da administração colonial já aguardava pelo supervisor e seu piloto.
- Supervisor Doyle? - Indagou o oficial.
- Sim. É o encarregado Jenkins?
Feitas as apresentações, embarcaram num veículo de superfície com capacidade para quatro passageiros e tomaram o rumo da vila, levantando uma nuvem de poeira na paisagem desértica.
- Como está a produção local de alimentos? - Indagou Doyle, admirando o panorama estéril dominado por maciços avermelhados cortados por grandes ravinas.
- Embora isso possa parecer louco, estamos dobrando a nossa colheita de frutas todos os anos - animou-se Jenkins, na direção do veículo. - Praticamente qualquer fruta capaz de se desenvolver nas regiões tropicais da velha Terra é capaz de crescer aqui.
Mais adiante, uma manada de animais que lembravam gazelas com longos chifres vermelhos assimétricos, obrigou o motorista a parar, enquanto atravessavam a estrada aos pulos.
- E estas criaturas, são nativas? - Quis saber Doyle.
- Originalmente, eram gazelas africanas - respondeu Jenkins. - Depois de uns vinte anos, começaram a apresentar mutações... adaptações ao meio-ambiente alienígena, imaginamos. Mas estão aqui só como teste de adaptabilidade, nós não as caçamos ou comemos...
- Pelo visto, a experiência foi um sucesso - avaliou Doyle. - E do que vivem, neste deserto sem água?
- Há bastante água à frente - replicou Jenkins. - E vegetação.
Na próxima curva do caminho comprovaram o que o oficial quisera dizer: o deserto rochoso deu lugar à uma savana pontilhada de árvores, que se estendia quase até a vila dos colonos. Uma queda d'água emergia de uma fenda no maciço e alimentava uma lagoa mais adiante, ao redor da qual se aglomerava vida selvagem de grande porte.
- Há predadores aqui? - Perguntou Doyle.
- Apenas hienas. Servem para manter o equilíbrio populacional - disse Jenkins. - Não há outros predadores de grande porte.
- Tudo aqui parece tão pacífico - ponderou Ross, que apreciava o espetáculo.
- Gostamos que seja assim - replicou Jenkins com orgulho.
* * *
Depois de alguns dias convivendo com os colonos e fazendo anotações, o supervisor avisou ao piloto que se preparasse para partir de volta ao Sistema Solar.
- Confesso que poderia passar o resto dos meus dias nesse planeta - admitiu Ross. - Jogando bola com as crianças no campinho de terra batida, comendo essas frutas enormes que os colonos cultivam...
- É mesmo uma maravilha, não é? - Disse Doyle. - Zambla parece ter resolvido seduzir nossos colonos, para que jamais queiram partir daqui.
- Então imagino que no seu relatório, o planeta não vai mais constar como um possível candidato a rebelar-se contra a Federação Solar, supervisor? - Gracejou o piloto.
- Não, eu não creio que seja essa a vocação de Zambla-IV - avaliou Doyle. - Mas o que prevejo que acontecerá aqui é que, em não muito tempo, deixarão de fazer parte da espécie humana e se tornarão zamblarinos de pleno direito.
E indicando as crianças bronzeadas que corriam pelas ruas de terra da colônia:
- Talvez não tenha reparado, mas algumas das crianças mais novas têm seis dedos nos pés e nas mãos.
- [03-10-2020]