A Reunião
Tom jogou-se na almofada clara. Estava em uma sala de madeira com uma mesa circular à sua frente. Os outros três mais jovens já haviam chegado e esperavam ansiosamente. De onde estava, ele podia ver as portas abertas que davam para o jardim tímido e contido, do lado de fora. Não havia mais nada. Apenas algumas pedrinhas e plantas e o céu azul sem nuvens. Nenhuma outra porta, nenhuma entrada ou saída. Suspirou e mirou o relógio de pulso. Desta vez, tinha sido esperto e pedira um relógio ao comitê.
Os outros balançavam as pernas, batucavam os dedos na mesa, roíam as unhas. Teria ele sido assim quando jovem? Agora só sentia... tédio. E remorso. Não gostava de olhar para aqueles jovens, pois se lembrava do que havia deixado para trás. Dez anos! Encarou aquele à sua direita. Estavam posicionados em sentido horário. Que ironia.
Chegou mais um. Céus! Cinquenta anos. Era assim que ele seria aos cinquenta? Já tinha a barba por fazer e a barriga ligeiramente protuberante... Mas as olheiras! E o rosto caído, a pele flácida, o inchaço. Que horror, um horror... não se lembrava daquilo. Então, deu-se conta de que o parceiro mais jovem ao seu lado encarava-o com o mesmo desgosto. Tom reprimiu um riso amargo.
Apertou a mão do que chegou. Logo depois dele, materializou-se mais um no jardim. Tinha sessenta e mancava. Mancava! O que teria acontecido? Por que é que ele nunca dera importância àquilo antes? Ao olhar para os três à direita, teve sua resposta: os dois primeiros discutiam, o segundo implicava com o mais novo, queria irritá-lo a todo custo. Que fase chata a dos vinte. E é claro que o menino de dez anos caía nas provocações. O de trinta estava mais preocupado em observar a arquitetura japonesa, havia acabado de chegar ao país e tudo lhe fascinava.
Tom remexeu-se na almofada. Já estava farto daquele minimalismo exagerado e desconfortável. Suas juntas doíam pela falta de encosto, mas os colegas à esquerda pareciam ainda piores. Agora eram oito. Nem percebera a chegada dos dois últimos. Um deles era corcunda e o outro tinha pelos saltando para fora do nariz cada vez maior com a idade. Tom havia lido uma vez que o nariz nunca parava de crescer e pôde perceber que aquilo era verdade. Precisou respirar fundo para não perder o controle. O nariz não era nem o pior! Um senhorzinho caminhou, auxiliado por uma bengala, em direção ao último lugar vago à mesa. Tom tentou não encarar muito a sua pele psoriática, sentiu pena (de si mesmo, que deprimente!).
O de noventa anos (9.0) pediu silêncio. As conversas continuaram, o menino esperneava. Era um mimado, Tom pensou. O de oitenta bateu a bengala de 9.0 no chão e fez uma careta de dor. O braço não ia bem.
— Vocês sabem por que estão aqui — falou o mais velho de todos. — Não tornem isso mais difícil do que deve ser. São nove décadas de encontro, então sejamos pacientes.
— Para você é fácil falar, já é o seu último! — 3.0 reclamou.
— Deixe de ser ignorante, vamos todos passar pelo mesmo — foi 5.0 quem disse.
1.0 cruzou os braços.
— Mamãe disse que não devo conversar com estranhos.
— Seu idiota, não somos estranhos! — 2.0 deu-lhe um tapa no alto da cabeça. — Somos você.
O menino começou a chorar. Tom (que era o 4.0) soltou um suspiro. A bengala bateu novamente no chão.
— Muito bem — 9.0 disse. — Vou lhe explicar o que é que há, pequeno Tom.
— Não! — gritaram todos os outros Toms ao mesmo tempo.
— O menino deve saber — o velho falou, preguiçosamente.
— Não vai adiantar nada — 5.0 advertiu. — Tivemos que apagar a primeira reunião porque o senhor inventou de contar tudo ao garoto. Deu pane no sistema. É melhor que ele continue acreditando que isto é apenas um sonho. Amanhã de manhã vai contar para o irmão, que vai rir da cara dele, e se esquecerá de tudo isso.
Os outros concordaram. 2.0 e 3.0 pareciam não estar entendendo muita coisa.
— Bem, vamos começar então. Como vocês todos sabem (ou pelo menos alguns), esta reunião iniciou-se em 2087, num teste japonês. O Tom de trinta anos, que havia acabado de se mudar para o Japão, estava necessitado de dinheiro e ouviu falar de um experimento científico.
Nesse ponto, os mais velhos encararam com desgosto o 3.0 por terem que participar da mesma reunião a cada dez anos. Tom 9.0 não percebeu e continuou:
— Pois bem. Aqui estamos, cada um em uma década diferente. Antes de mais nada, preciso esclarecer algumas regras...
— Espere um instante — 3.0 interrompeu. Ele só tinha uma vaga noção do que estava acontecendo. — Você diz que eu que escolhi participar desse tal experimento, mas eu acabei de chegar aqui!
O Tom do presente (ou pelo menos do presente desta narrativa) exalou o ar pesadamente.
— Ele quer dizer daqui a alguns meses.
— Ah... — 3.0 ficou meio constrangido. A fitar seu eu mais velho, não podia acreditar que seria assim aos quarenta. Tudo bem que nunca fora muito atlético, mas que barriga...
O Tom 4.0 também se constrangeu. Lembrou-se daquele momento, exatamente dez anos antes, e o que sentiu ao se mirar. Agora era tarde demais.
Um diálogo mais ou menos assim se sucedeu:
Tom 2.0: Mas, afinal, qual é o objetivo disso tudo?
Tom 3.0: Você não ouviu? Estou meio apertado.
Tom 5.0 (impaciente): Ele quis dizer com relação ao assunto da reunião.
Tom 1.0 (para Tom 2.0): Quando é que eu vou ter um carro?
Tom 2.0: Eu sei lá. Estou juntando um dinheiro, mas a Lisa sempre quer que eu pague jantares caros...
Tom 1.0: Quem é Lisa?
Tom 3.0: É a namoradinha dele.
Tom 1.0: Namorada? Credo!
Tom 2.0 (para Tom 3.0): Por favor, mostre algum respeito, vou pedi-la em casamento semana que vem.
Tom 3.0 (farto do seu eu mais novo um tanto pomposo ao nível de usar gola alta): Mas não vai. Vai descobrir que ela está dando para aquele professor de ioga...
Tom 1.0 (com inocência): Dando o quê?
Tom 7.0: BASTA! (grita, mas começa a tossir logo em seguida)
5.0 e 6.0, que estavam tendo uma conversa sobre a universidade em que o primeiro lecionava e sobre a aposentadoria do segundo, voltaram-se para o os outros, de má vontade.
Tom 4.0, perdido em suas angústias, observava suas diferentes versões. Ninguém parecia perceber sua presença. Talvez fosse por isso que não havia notado, aos dez, vinte e trinta anos, como seria aos quarenta. Sentia-se excluído, mesmo que o grupo fizesse parte da sua mente. Deus! Como era solitário.
— Me digam, então, se tudo isso é um resultado da cabeça deste infeliz — apontou para Tom 3.0 —, como é que vocês — indicou, desta vez, os Toms mais velhos — podem ser reais?
— Não entraremos nas tecnicalidades dos japoneses. Nenhum de nós, em momento algum da vida, chega a ser um cientista. Deixemos as explicações de lado. Todos nós já vimos o que a tecnologia é capaz de fazer, não?
Os Toms balançaram as cabeças.
— Ótimo, ótimo — 9.0 disse, com uma voz extremamente arrastada. Tom notou como ele estava empapuçado. — Voltando ao assunto da reunião...
— Um instante — 2.0 levantou a mão. — Estão me dizendo que o mundo passou a aceitar por completo o determinismo científico?
— Como as Leis de Newton. — 5.0 falou.
— É a base para este experimento. — alguém completou.
— Mas, ora! Devo discordar. Como você sabem, venho estudando filosofia na faculdade...
— Lá vem ele... — 3.0 suspirou.
— Será que podemos silenciá-lo? — um deles pediu.
— Por favor! — ecoaram outros.
Foi feito. 2.0 bateu a mão na mesa, irritado, pois nenhum som saía da sua boca.
— Sobre as regras... — 9.0 recomeçou.
— Quando é que vão trazer a comida?
— Que comida, criança? — 6.0 disse. — Estamos aqui para debater sobre a vida.
2.0, indignado por não poder participar da discussão filosófica, retirou-se para o pequeno jardim.
— Que chatice! — 1.0 seguiu-o.
9.0 ajeitou os óculos na ponta do nariz e pôs-se a ler um papel cuja origem Tom desconhecia.
— Regra número um: não se pode falar de eventos futuros que já ocorreram ou estão ocorrendo no tempo do locutor. Isso poderia gerar outra pane no sistema, pois interferiria nas Leis de Sucessão Cronológica de Humsworth.
Houve alguns ruídos de insatisfação.
— Regra número dois: é essencial manter a cortesia com nossos colegas eu para que se evite uma futura revolta contra si mesmo e, portanto, outra pane no sistema.
Sua voz saía arrastada e Tom teve que lutar para manter a concentração.
— Regra número três: esta reunião não deve ser discutida, em hipótese alguma, com qualquer pessoa externa a ela e aos organizadores dela, pois isso poderia acarretar...
— Uma pane no sistema, uma falha na Matrix — 3.0 falou exasperado. — Já entendemos!
Para quebrar a tensão instalada entre os eus, Tom interviu:
— Bem, sobre o que deveríamos falar então? Como poderíamos evitar abordar o futuro (ou nosso presente) se fomos moldados por nossas experiências?
— Acho que o conteúdo da conversa não é muito relevante para os pesquisadores. — 5.0 falou. — Eles provavelmente estão interessados em observar o que acontece com as áreas do nosso cérebro enquanto conversamos.
Tom assentiu. O silêncio voltou. Que coisa mais esquisita aquilo que estavam fazendo!
— Uma cerveja agora não seria nada mal... — 5.0 falou.
Eles riram. Tom ficou feliz de saber que seu eu futuro não deixou que a mulher o fizesse abandonar a bebida. Ele deu voz a esse pensamento:
— Então a patroa acabou desistindo de fazer a gente parar?
Com a troca de olhares apreensivos entre os Toms mais velhos que ele, seu sorriso esvaneceu-se.
— O que foi? O que é que vocês não estão me contando?
— As regras... — 9.0 começou.
— Que se danem as regras! Por que é que vocês se encararam assim?
Tom 5.0 não aguentou mais e desabou na mesa com a cabeça entre os braços. Seu choro fez com que 2.0 e 1.0 se virassem curiosos.
6.0 passou o braço pelo ombro do seu eu mais novo para consolá-lo:
— Pronto, pronto...
7.0 e 8.0 lançaram um olhar desgostoso a Tom, que não estava entendendo nada. Ele buscou ajuda em 3.0, mas o outro simplesmente deu de ombros. Seria possível que a mulher tivesse... morrido? Não, não, claro que não, estava exagerando. Não estava?
— Agora estou preocupado! Não posso sair daqui sem saber o que houve.
7.0 fez um gesto tentando alertá-lo a parar de falar.
— Seu insensível, — 6.0 disse — não vê que não é hora para isso?
— Eu tentei, eu tentei, — 5.0 falou entre soluços — mas ela não quis me ouvir... Disse que já estava cheia...
9.0 limpou uma lágrima disfarçadamente.
— Você! — 5.0 voltou-se para Tom. Este se intimidou e se afastou levemente. — Você pode fazer alguma coisa! Por favor, antes que seja tarde demais.
5.0 agarrou-lhe a camisa aos prantos. Assustado, Tom recuou e caiu de costas no chão.
3.0 observava tudo boquiaberto. Aqueles homens eram loucos! Depois, percebeu que aqueles homens eram ele mesmo daqui a alguns anos. Não pôde conter-se e botou para fora todo o hambúrguer que havia comido de almoço.
— De novo não — 9.0 suspirou. Era a quarta reunião que tentavam fazer.
— Ordem! Ordem! — 8.0 pegou a bengala e bateu na mesa. Mas a mesa não era feita para aguentar aquele tipo de tratamento; na verdade, era um tanto delicada.
Assim, a madeira cedeu e espatifou-se no chão. O velhinho, pelo visto, era forte.
1.0 e 2.0 trocaram um olhar de “somos os únicos normais aqui”.
O Tom mais idoso começou a ter problemas para respirar. Estava saindo tudo errado. Não aguentaria outra reunião como aquela. Tudo porque seu eu de trinta anos precisava alguns tostões! Oh, que tortura, que...
— Ele está morrendo, façam alguma coisa! — 3.0 gritou.
De fato, 9.0 tinha a mão sobre o peito e arfava pesadamente, sem conseguir nenhum ar.
— Bem, acho que é isso — 7.0 disse a 6.0. — Foi bom revê-lo.
— Igualmente, meu caro. Vou ler aquele artigo que me recomendou.
Apertaram as mãos. Tom ainda se achava no chão. 5.0 tinha o rosto manchado de lágrimas. 3.0 andava de um lado para o outro desesperado. Por que é ninguém vinha ajudar? Onde é que ficava a saída? Existia na sala algum botão de emergência? Se 9.0 morresse, 8.0 seria o anfitrião da próxima reunião?
2.0, percebendo o que estava acontecendo, virou-se para 1.0. As regras não pareciam importar mais.
— Preste atenção, garoto. Amanhã vai acontecer a final da Champions, não é?
O menino assentiu, meio confuso. 2.0 aproximou-se dele e sussurrou algo em seu ouvido, esperando que o comitê não pudesse escutá-lo.
— Mas eu não torço para eles!
— Isso não importa. Faça o que eu estou dizendo. Eu sei mais do que você, lembra?
— Você não sabia que a Lisa estava dando para o professor de ioga... — 1.0 falou, sem realmente entender o que é que ela estava dando.
O outro cerrou os dentes e pulou em direção ao menino. Eles correram para dentro da sala, o mais novo fugindo do mais velho.
Lá, 9.0 já estava quase transparente. Tom aproveitou a oportunidade e sacudiu seu eu de cinquenta anos.
— O que é que aconteceu? Anda, me diz!
5.0 começou a chorar novamente e abraçou-o.
— Ela nos abandonou! Levou tudo! Até o carro...
Tom ia perguntar mais alguma coisa, mas não pôde fazê-lo. Sentiu que algo o puxava e, contra sua vontade, fechou os olhos.
Era domingo de manhã. Tom acordou e espreguiçou-se. Que sonho estranho tivera! Um monte de homens loucos que diziam ser ele mesmo, mas não se pareciam nada com ele. Ora essa! Ele, magrelo e miudinho, ser gordo daquela maneira. Só mesmo em um sonho...
Com um bocejo, ele pulou da cama. Mal podia esperar para contar ao irmão sobre o sonho. Quando saiu do quarto, deparou-se com a bandeira do time pendurada na sala. O pai já estava com a camisa para o jogo.
Ele foi tomar café. O irmão riu da sua cara, quando Tom contou sobre o sonho que não parecia ter sido apenas um sonho, e falou para que ele se apressasse, pois o jogo já ia começar.
O menino colocou a vasilha na pia e saiu da cozinha. Entretanto, quando estava passando pelo escritório e deu uma rápida olhada para o computador, parou. A tela estava aberta em um site de apostas e, por alguma razão, Tom sabia exatamente em quem devia apostar. Simplesmente sabia.