Altitude de cruzeiro

Abaixo de 11.000 pés, o mundo não existia. Ou melhor, existia sob a forma de um mar contínuo de nuvens, que amortalhavam a superfície do planeta num eterno crepúsculo, com temperaturas atingindo até -40º C no interior dos continentes. O que restara da humanidade, até onde era sabido, habitava as poucas cidades em altitude suficiente para ficar permanentemente fora do cobertor de nuvens; não eram muitas, é verdade, e a maioria pertencia à poderosa Liga Sino-Tibetana, a Bamidunya, com capital em Lhasa, no Tibete, estando as demais sob administração da União Sul-Americana, o Tawantinsuyu, que reunia basicamente o que restara dos estados da Bolívia e Peru, com capital em La Paz, a maior cidade da Terra. Os dois núcleos de civilização mantinham-se em contato via rádio, e também através de grandes dirigíveis, que transportavam carga e passageiros de um lado a outro do globo voando sobre o Pacífico.

Era sabido que havia pequenas populações humanas residuais, particularmente em regiões costeiras, subsistindo à base de pesca, mas não eram prioridade nem para Bamidunya nem para Tawantinsuyu. Isto até que transmissões de rádio em inglês foram detectadas no interior dos antigos Estados Unidos, numa localidade denominada Leadville, no Colorado. A cidadezinha lograra passar décadas desapercebida, visto que embora fosse a mais alta cidade habitada dos EUA, ficava cerca de 1.000 pés abaixo da camada de nuvens que inviabilizara a agricultura em boa parte do planeta. Como haviam conseguido sobreviver durante todo esse tempo, sem ajuda externa? Era o que as duas potências planetárias pretendiam descobrir, enviando uma expedição conjunta ao coração dos EUA.

- Os Estados Unidos da América são os principais responsáveis pela catástrofe que se abateu sobre o mundo - relembrou o presidente de Bamidunya, Sonam Palsang, durante uma videoconferência com seu equivalente sul-americano para discutir o assunto. - E embora, indiretamente isso tenha nos libertado da dominação chinesa, seria prudente verificarmos o que os sobreviventes podem estar tramando.

- Nada de bom vem dos Estados Unidos - assentiu o presidente de Tawantinsuyu, Inkill Mallqui Sihui.

Sob o comando do capitão Delan Hao, da Força Aeronaval de Bamidunya, dois dirigíveis de Tawantinsuyu partiram de La Paz com uma tripulação de vinte homens cada, rumo à América do Norte. Após alguns dias de navegação, desceram cautelosamente abaixo da camada de nuvens sobre Denver, capital do Colorado, a qual descobriram estar coberta de neve e presumivelmente deserta, enquanto matilhas de lobos vagavam pelas ruas. Numa dessas ruas, no centro da cidade, detectaram o primeiro sinal de atividade humana recente: um utilitário com esteiras no lugar de rodas, estava estacionado em frente a um edifício comercial. O capitão Hao ordenou que o dirigível nº 1 ancorasse numa praça próxima, enquanto o nº 2 dava cobertura, de uma altura de 1500 metros.

A equipe de amarração da aeronave acabara de descer por cordas até a praça, quando da ponte de comando do nº 1 foi dado o alerta de que o utilitário que haviam visto anteriormente estava se aproximando. Houve um momento de tensão, até que dois homens brancos, encapotados em roupas escuras, descessem do veículo e acenassem e gritassem para os soldados de Bamidunya. Nenhum deles falava inglês, contudo.

Foi preciso que o capitão Hao, escolhido para a missão justamente por seu domínio da língua inglesa, desembarcasse para travar o primeiro contato com os nativos.

- De onde vocês vieram? Flórida? - Indagou um dos homens, barba negra cerrada, rugas ao redor dos olhos.

- Bem mais ao sul - replicou Hao sem querer dar muitas informações sobre sua origem.

- Fazia muito tempo que não víamos uma aeronave com aquela sigla gravada - aparteou sorridente o outro americano, mais velho do que seu companheiro, cabelo e barba grisalhos.

E apontou para o casco de alumínio do dirigível, onde se lia em grandes letras negras "USA 01".

- [15-06-2020]