Gatos gostam de panquecas?

“Garfield, nos últimos dias tenho dormido e sonhado bem, graças ao aparelho”. Comento isso com meu amigo gato antropomorfo, que está sentado na mesa da cozinha, comendo panquecas e tomando leite.

“Que ótimo, Jim!”, responde ele, que quer se graduar em psicologia.

A verdade é que tenho dúvidas se os gatos são assim como Garfield. Vi gatos de outras formas e conteúdos, inclusive quadrúpedes e irracionais, só não sei se estava sonhando ou não. Tento evitar esse questionamento ôntico, biológico ou cultural e converso com meu amigo peludo, a minha única companhia nessa quarentena. Lá fora, uma pandemia de gripe mata milhares por dia. Aliás, é pandemia de gripe ou tsunamis submergindo a cidade? Pergunto a Garfield sobre isso e ele responde que não é uma coisa, nem outra, mas um acidente nuclear.

“Pandemia de gripe e tsunamis sobre a cidade foram sonhos que você teve outro dia, Jim”, ele explica.

Sempre que comento com Garfield que tenho nas lembranças gatos quadrúpedes e irracionais, ele me interrompe. Não gosta do assunto. Questiono para ele se a nossa conversa ali, naquele momento, não é um sonho criado pelo aparelho que uso para dormir e sonhar bem. Ele me dá uma tapa no rosto. “Se fosse sonho, acordaria com essa sensação dolorosa”, ele diz. Rebato o argumento dizendo que não é bem assim, pois o aparelho me permitiu sonhos sexuais-fetichistas em que minha parceira queimava minhas nádegas com cera, me causando dor, mas sem me despertar. Comigo mesmo refleti se foram de fato sonhos ou se foram experiências reais.

Garfield afirmou que só medidas extremas poderiam me dar uma resposta, embora tenha dito também para eu não exagerar, pois se preocupava comigo. Se alguém “morre” no sonho, provável que acorde, ele diz. Talvez, mas o problema é que eu não consigo mais distinguir sonho e “realidade”. Se eu me matar e aqui for o “mundo real”, eu vou morrer de verdade. Melhor não correr o risco.

Meu amigo peludo foi até a estante e pegou três livros de história. Nas páginas vemos fotos de homens e gatos antropomorfos lutando juntos em guerras, construindo a paz, inovando a ciência e tecnologia, enfim, erguendo o mundo. “O aparelho que você usa para sonhar é criação conjunta de cientistas gatos e cientistas humanos”, diz Garfield.

O leitor deve estar se perguntando: “mas que raios de aparelho é este?”. Explicarei a seguir e aproveitarei para explicar ao meu amigo por que os livros de história não me convencem.

Acho que eu estava com pesadelos e isolado por causa de uma pandemia de um vírus que transformava pessoas em ratos. Ou será que eu estava isolado num foguete que fazia um trajeto interestelar? Ou estava om estresse pós-traumático por ser veterano de guerra? Não lembro o motivo, apenas sei que encomendei o Nightdream. Este aparato tecnológico deixa o neurotransmissor acetilcolina mais potente, ao mesmo tempo em que permite que o usuário veja, na forma de cores distintas, as imagens que compõem a aleatoriedade formadora do sonho. As cores de tonalidade mais clara são de imagens “agradáveis” do seu inconsciente e subconsciente, as de tonalidade mais opaca são imagens “desagradáveis”, as que produzem pesadelos. O Nightdream, no entanto, não permite que o usuário escolha somente cores claras. Desse modo, sempre há um elemento terrível em qualquer sonho maravilhoso.

Agora, o detalhe mais fascinante: os sonhos são “ultrarrealistas”. Tal aspecto é gerado pela potencialização da acetilcolina. Em níveis normais, há indivíduos que não conseguem sequer se lembrar do que sonharam. Todavia, o Nightdream faz os eventos dos sonhos parecerem lembranças. Mais do que isso: é como se a cada sonho, um novo mundo fosse criado. Novos mundos implicam em novas e distintas convenções. Quando sonhamos, agimos e pensamos como se estivéssemos no “mundo real”, por mais que o sonho seja atípico em relação aos supostos padrões reais. O "fato" de eu ter o privilégio de quebrar com esse paradigma, isto é, de poder questionar o que é onírico e o que não é, indica, talvez, algum efeito colateral. Não sei como foi gerado, mas palpito que tenha a ver com as “viagens” que fiz para vários mundos/sonhos, com as inúmeras convenções, representações ônticas e culturas que absorvi. Minha circunvisão tem uma amplitude imensurável. Prova disso é que não sei mais qual “versão” de gato é “real”, dentre diversas.

Dentro de cada mundo há um contexto, como se tal momento ali, a conversa com um gato que fala e age como humanos, fosse o presente de uma vida pregressa e contínua. Notaram isso quando disse que Garfield queria estudar psicologia? Pois ele me contou sobre esta meta de vida outro dia e eu até o acompanhei até a faculdade no dia da matrícula.

Há também um recurso intrigante e até assustador: o aparelho incute entre as imagens aleatórias uma representação precisa de si mesmo. Não importa a combinação de cores que o usuário escolha, o Nightdream pode ser utilizado dentro do sonho. O que implica a possibilidade de sonhar dentro do sonho e de forma ilimitada. Fazendo analogia com a matrioska, aquele brinquedo russo, imagine que nunca houvesse uma última boneca. A criança ficaria tirando uma boneca de dentro da outra, sem nunca chegar ao fim. As camadas de sonhos/mundos são infinitas. Busquei ir ao mais fundo que pude, o que fez surgir em mim múltiplas lembranças dos mais variados mundos ou sonhos. Acredito que essa imersão é a causa de minha suposta perdição. A confusão gerada por variedade de imagens de eventos oníricos me impede de reconhecer qual meu mundo original. Supondo estar no “mundo real”, a acetilcolina potencializada faria as lembranças dos sonhos parecerem memórias. É por isso que não sei se sonho ou se já acordei. Além de tudo, há a dilatação do tempo. A sensação que eu tenho é que se passaram anos, mas se eu estiver dormindo, é provável que só tenha passado algumas horas.

Não sei se voltarei ao “mundo real”, pois já não sei nem mais qual é. Mesmo que um dia eu acorde, nada será como antes e eu sempre duvidarei se estou na “realidade” ou não. Ou talvez, eu esteja acordado, vai saber. De qualquer forma, acho que está tudo bem. Eu tenho um amigo que em breve será um psicólogo. E as panquecas estão uma delícia.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 10/05/2020
Reeditado em 10/04/2022
Código do texto: T6943065
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