AS TERRAS DEVASTADAS - PT.3 - "O Último Cão do Inferno PTs. II e III"

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Os uivos adentraram a madrugada. Em minha cabeça soavam como risadas de satisfação. Risos de barriga cheia.

- Talvez não tenha sobrado nada pra ser enterrado… - Sussurrei no escuro. - Cheguei a rir do sarcasmo doentio do meu comentário. Uma das saídas contra a loucura era fingir que tudo aquilo era brincadeira… uma pegadinha de muito mau gosto, que arrancava risos nervosos e um prêmio em dinheiro, no fim.

A visão dele era perfeita pra mim. Nítida. Traumática. Eu estava sentado no chão do quarto encarando a cama e uma mesinha de escritório.

- Ele é exatamente do tamanho desta mesa… deve ter praticamente o mesmo peso. Com raiva, adrenalina: é como se viessem duas mesas dessas em cima de mim ou mais... e com a velocidade… umas quatro mesas dessas. Uma vassoura e uma lança resolveriam? Mas eu quero que ele viva um pouco mais, eu quero que ele morra sentindo dor.

Como todo animal – exceto o homem – a barriga cheia lhe deixou desinteressado. Eu corri prum edifício há poucos metros da casa onde eu tinha passado a noite e subi as escadas correndo. A meta era chegar até o 4o ou 5o andar... no escuro e sem me acidentar no processo. Quando cheguei no 4o andar percebi que tinha esquecido uma coisa básica: Prédios de luxo possuem portas difíceis de arrombar com chutes. Portanto... uns trinta a quarenta pontapés depois… - e completamente exausto, molhado de suor… - a porta se abriu. O apartamento estava perfeito, “dá pra morar aqui por um tempo...”, pensei olhando em volta. “SE, eu sobreviver.”, conclui. Fui entrando devagar… havia uma sala enorme emendada com uma varanda (também enorme) que cabia uns três ou quatro colchões de solteiro. Na sala tinha um sofá de seis lugares em “L” e uma televisão de 50 polegadas com uma enorme rachadura que a cortava de ponta a ponta. A lua, ainda cheia, me permitia ver tudo. Fui entrando…

O apartamento tinha 3 quartos. Deixei a cozinha pra depois. A cozinha era um lugar para se olhar com calma. Lá eu encontraria coisas realmente necessárias… Ao menos no fundo ou nas gavetas e armários. Como facas diversas… e o que eu mais queria: Veneno de rato. Entrei na casa… logo na sala encontrei um esqueleto humano sentado com os braços deitados na mesa em posição de choro... com uma garrafa de uísque na metade.

Entrei num outro quarto… um quarto pintado de branco e preto e cheio de pôsteres de bandinhas de Pop e de rock adolescente. Mais dois esqueletos… Um estava posto deitado na cama, com um cobertor até a altura dos ombros, segurando um urso que parecia lhe acompanhar desde a infância. Bem do seu lado, ajoelhado na cama estava o esqueleto de uma mulher em posição de oração. Fui até seu marido, “roubei” seu uísque, retornei e me sentei bem ao lado dela “o mais próximo em que estive de uma mulher em… muito, muito tempo”. Cada passo que dei naquele lugar me fez ter náuseas no início... Mas, eu precisava de forças... A dor daquela família parecia me passar uma energia… quase como uma “obrigação”. Mais uma obrigação de continuar vivo.

Eu pensava em minha Laila o tempo inteiro… Pensava em um lugar melhor – sem nem questionar exatamente QUE LUGAR aqueles “ETs” estavam me oferecendo e se ele existia mesmo... – eu pensava naquela mulher na nave. E em como seria pra mim, ensiná-la a beijar e abraçar como os humanos fazem. Enquanto eu percorria a casa, me lembrei que minha luta com o cachorro e minha luta para me manter vivo representava uma batalha de toda a raça humana. O que sobrou dela...

Me levantei e fui até a janela… era exatamente a visão que eu queria. Pude ver ELE. E ele estava circulando por uma praça. Havia algo de errado com aquele cão. Não era normal… Um cachorro com aquelas feridas, por maior e mais forte que fosse... já estaria morto. Ele dava voltas como se fizesse uma ronda. Talvez estivesse me procurando. Talvez sentisse meu cheiro… Mas… talvez eu não fosse absolutamente nada pra ele. Laila… eu… e todas as pessoas que ele devorou. Apenas carne.

- CARNE!! - Gritei, enquanto corria em direção a cozinha… mais precisamente a preciosa área de serviços.

A cozinha cheirava a coisa podre e não me dei o trabalho de abrir a geladeira… eu estava ficando experiente. Depois procuraria enlatados nos armários menores… Coisa realmente fina… duradoura. “Comida de apocalipse”. Saí abrindo todos os armários na parte de limpeza… eu não estava animado… eu estava, eufórico? Achei o que eu queria… remédio pra ratos, líquido. O que eles não dizem é que aquela coisa mata quase tudo que respira e anda na Terra.

- Carne… Carne… Carne… - Eu dizia repetidas vezes.

Desci as escadas como um louco correndo e já era quase noite. Se eu saísse pelo fundo do prédio, poderia pular o muro de trás da casa do Pet-shop e entrar. Lá eu encontraria os restos de Laila… que provavelmente ele teria “deixado” um tanto pra comer depois... Então a comida do desgraçado ficaria “temperada” o suficiente para matá-lo, bem devagar...

Encarar minha filha naquele estado seria um trauma que eu estava me dispondo – e obrigando – a passar. Eu não estava ficando apático ou louco... Eu sabia que aquilo me destruiria por dentro… e não sabia o que sobraria de minha cabeça quando a visse. Muito menos quando a usasse como isca.

Mas devo lembrar que um cachorro daqueles já é mais forte que um ser humano em seu estado normal. Com raiva e com fome ele é pior… E com o que quer que aquela bomba atômica tinha feito dele… Ele era completamente impossível de enfrentar com facas e lanças feitas com vassouras.

***

Tudo realmente estava parecendo fácil até eu chegar no Pet-shop e encontrar Laila. Tudo isso porque quase nada encontrei. Nada… nada… nada. Apenas alguns ossos e alguma carne que eu mal conseguia saber de qual parte do corpo era. Me ajoelhei com lágrimas descendo pelo rosto e questionei minha sanidade por breve segundos… até que vi os sacos de ração em minha frente. Laila gostava de preservar o sabor de comidas (mesmo no fim do mundo ela pensava nisso) e prendia as embalagens que ia encontrando com presilhas de cabelo. Um dos sacos de ração tinha uma delas... era rosa… eu fui me arreando com as costas encostadas na parede gargalhando e chorando ao mesmo tempo. A imagem de minha Laila prendendo as embalagens e sorrindo pra mim, em seguida, veio perfeita em minha memória... passando por cima de todas as imagens hediondas que aquele cachorro maldito vinha me fazendo criar. Mas eu não podia simplesmente ir embora. Ele precisava morder a isca.

Ele precisava morrer. “isca...”. Respirei profundamente… “isca...”.

- ISCA!!

Encarei o raticida. “essa porcaria não é proibida??”, pensei bestamente. E como se uma segunda voz – a inteligente… - também me acompanhasse, respondi em seguida: “Ah, vai saber! Cala a boca.”. E peguei a garrafa. Quando cheguei perto da carcaça, pude ver que se tratava de uma parte da perna. Engulhei e engoli o choro, por uns instantes, retrocedendo. Olhei o caminho dos fundos… “é só ir embora, Lucas...”. Dava pra percorrer toda a cidade por outras ruas e nunca mais ver aquele monstro. Seria mais fácil… Inclusive seria o que LAILA DESEJARIA que eu fizesse. Ela odiava brigas…

***

Continuei a missão com o pensamento constante (do meu “eu inteligente”) e repetitivo que me dizia: “isso não é mais sobre ela, Lucas, isso é POR TODO MUNDO!”, “isso não é mais ela… isso é a ISCA!”, “isso não é mais ela Lucas, isso é APENAS A ISCA!”, passando o remédio sobre a carcaça e sobre os ossos...

Depois me levantei, tirei toda a roupa e passei em mim, completamente. Mesmo que ele me matasse, morreria em seguida com certeza. Fui correndo até a porta principal. Logo quando escancarei a porta ele me viu de longe e encarou rosnando. Eu gritei. Eu não gritei uma palavra... ou uma frase. Eu dei um berro de ódio (e de dor) que acredito que só pessoas em estado de fúria absoluta, soldados numa guerra, ou pais que perderam os filhos, possuem capacidade de dar… o cão veio devagar, trotando em minha direção. Parecia estar se divertindo. Corri pra dentro da casa.

Entrei num armário cumprido vazio, cheio de teias… e de pequenas aranhas e baratas que correram pra fora com o meu cheiro insuportável e fechei a porta. Pude escutá-lo entrando devagar e farejando. Era um verdadeiro assassino... Pude escutá-lo chegando bem próximo da isca, seu faro era alto. Parecia estar dentro de meus ouvidos… até hoje posso escutá-los. De repente ele pareceu me sentir por perto.. E então pela primeira vez ele latiu. Latiu várias vezes e latiu alto, bem em minha direção…Como quem dizia: “Parece que tem mais carne aí dentro do que aqui...”.

***

Minha respiração ia ficando cada vez mais alta e descompassada a cada latido. Ele ia se aproximando, não sei como eu podia senti-lo mesmo de olhos fechados. Pensei na nave… E naquele dia na fazenda. Quase pude sentir a paz que senti naquele dia. Comecei a falar, falar e falar… sem me preocupar mais com minha vida, fiquei repetindo... Estava tudo acabado. “Eu estava louco... o mundo todo estava louco… Deus… os deuses… todos os estavam loucos…”.

Meu estado de transe foi brutalmente interrompido pelo barulho do tiro que quase me fez ficar surdo. Um barulho fino e prolongado como um zumbido permaneceu em minha cabeça (por algumas horas seguintes) enquanto eu passava a mão pelo meu corpo procurando um buraco de bala e sangue.

Abri a porta loucamente, gritando, me apalpando e me sacudindo... Quando vi o cão. Caído com um buraco certeiro no olho... Fiquei encarando a cena e depois subi os olhos seguindo a trilha da corda do farpão… até a mulher que o segurava. “UM SER HUMANO”. Ela vestia uma calça do exército e uma camiseta dos Ramones e segurava a arma do disparo, e em suas costas uma metralhadora e outras armas brancas por todo o corpo. Seu olhar pareceu duro e até impaciente no início. Ela pareceu não me entender por alguns segundos. Depois olhou os restos mortais no chão. Me encarou alguns segundos… e sorriu ternamente.

- Oi, amigo. Sou a “Pessoa No 15”. Sua ideia foi muito engenhosa! Mas... acho que você estará melhor com a gente! VAMOS. - Deu de ombros e sem me esperar virou as costas e foi saindo da casa... Corri atrás dela logo em seguida como se tivesse sido empurrado por alguém… Mas era só o bom senso outra vez.

(continua)