AS TERRAS DEVASTADAS

Esse conto, que comecei a escrever em 2016, é o que eu chamaria de "Tentativa Desafiadora". Pela proporção da história, pelo número de linhas e pela temática, todos fora de meu estilo e de meu conforto.. Porém, tenho que ser sincero, está sendo QUASE divertido passar a quarentena com ele.

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NOVE ANOS ANTES...

… mais uma vez no divã do doutor Roberto Sideral.

Pra quem me conhece é bem óbvio porque – entre todos os nomes no catálogo – escolhi este nome. Achei que Roberto – “ESPAÇO” - Sideral soava bem divertido e também não acredito em coincidências. “É ESSE!”, gritei quando vi o nome. Já estávamos em nossa vigésima quinta sessão. Mas, se por acaso a meta do doutor fosse me “curar”, jamais conseguiríamos nenhum avanço...

- “Teve pesadelos esta semana Lucas?”

- Tudo na mesma. Mas não são pesadelos… Eu já te disse.

- “Sim, claro... São...” – olhou as anotações como se quisesse me mostrar que se dava ao trabalho de anotar as maluquices que eu falava. – “São... CONTATOS! Com seres do centro da Terra… Não é isso?”.

Escutar o psiquiatra repetindo as coisas que eu mesmo dizia, de fato soava ridículo. Mesmo com o esforço do doutor em suar natural, frente a um sujeito que dizia ter sido sequestrado por seres do centro do planeta… que habitaram a Terra anos antes de nós… De repente senti meu corpo tremer. Tive medo de ter outro episódio de pânico. O intervalo entre uma crise e outra estava ficando cada vez menor e no início minhas crises aconteciam quando ficava sozinho em locais abertos e campestres. Locais que caberiam uma nave...

- Não sei se o senhor acompanhou as notícias. Mas, desta vez haverá retaliação. A coisa está pra acontecer... A GUERRA ANUNCIADA! As doenças... Vai acontecer, sabe? As… As… AS … BOMBAS! Tudo vai acontecer, do jeito que me avisaram!

- “Vi sim, Lucas. Isso é uma temeridade.” – O doutor pareceu se desarmar por alguns segundos... pareceu ser apenas um homem barbudo que tinha tanto medo da morte quanto eu tenho.

- “Não é mentira Lucas. Pensei em você quando vi as notícias. Pensei em... como você se sentiria perante as notícias. Acaba soando como uma premonição, não é mesmo?”.

Me contorci numa careta, torcendo a boca... parecendo enojado. Ele estava sendo sonso… condescendente...

- Não é assim doutor. EU NÃO PREVI ABSOLUTAMENTE NADA! EU FUI AVISADO. Escolhido, na verdade… E... PARA QUE? Não há nada que eu possa fazer... Eu sou apenas... Há! Ah, meu Deus…

- “Apenas...?” – Ele me encorajou.

- Um cara qualquer.

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Fim da 1a Parte.

Cinco ANOS depois...

… SIM, CINCO ANOS depois da guerra e de todas as bombas e armas atômicas, eu resolvi sair do abrigo. O que poderia ser pior... dentro ou fora? A guerra chegou ao fim, quando uma espécie de vírus apareceu matando os que sobraram, tudo começou devagar... Até que – num raio de quase cinquenta quilômetros seguros, feito por mim - sobramos eu e uma criança… Uma menina chamada Laila. A coitada tinha seis anos e estava sempre apavorada. As provisões do abrigo chegaram ao fim.

Tínhamos que sair e ver o que tinha restado pra nós, no mundo. O cheiro de carne humana apodrecendo era terrível e nos fazia passar mal. Pra dizer a verdade eu sempre acreditei na MINHA sobrevivência. Eu não teria sido levado ao “NOVO MUNDO” se eles não soubessem – sabe-se lá como – que eu ficaria vivo no final...

- Não há nada pra nós aqui princesa! – Eu disse enquanto acariciava a cabeça da guria que tremia e chorava. - Acho que teremos que sair, Laila... Talvez eu tenha alguns amiguinhos me procurando lá fora… e você também! Um montão de gente querendo nos ajudar, sabe?

Fazendo beicinho e tentando conter o choro com as duas mãos esfregando o rosto sujo, Laila se levantou e se espreguiçou.

- “Te amo tio Lu.”

- Se me ama, então vamos. – Respondi sorrindo e confiante. É engraçado afirmar que depois que o fim do mundo realmente aconteceu...3 minhas crises de pânico e todas as paranoias possíveis, deixaram de existir bem rapidinho.

O DESERTO

O que posso dizer do que vi? Era o deserto apocalíptico que todo mundo temia desde que a humanidade aprendeu o significado da palavra “preocupação”. O ar fedia e uma névoa esverdeada ocupava o céu. Quase não havia verde. Apenas destruição, fumaça saindo do alto dos prédios destruídos... e muito silêncio.

Achei que quando saíssemos encontraríamos pessoas agonizando, gritando, correndo, saqueando... como nos filmes. Mas éramos apenas nós dois... num mar de cinzas e esqueletos. A menina, que agora eu tratava como filha, apertava minha mão com tanta força que pensei que seus ossinhos fossem quebrar junto aos meus. Mas Laila não chorava mais. Apenas observava atentamente com seus grandes olhos verdes que mais pareciam faróis. Observava tudo o que podia. Prédios, ruínas que mal nos permitiam andar, corpos que tomávamos cuidado pra não pisar. Nada vivo. E era estranho… nada morrendo também.

- “O que faremos tio Lu?”

- Sabe... você pode me chamar de papai, se quiser, tá? – Achei que ela se sentiria melhor pensando que tinha a proteção de um pai. Mas na verdade era eu que sentia a enorme necessidade de amar ao menos aquela ÚNICA humana que me acompanhava na pós-vida. – A menina deu um largo sorriso e apertou o meu braço contra o rosto… o que me deu uma vontade intensa de chorar, mas me contive.

- “Tá bom!! “Papai!”!! O que vamos fazer agora?”

Suspirei tentando parecer decidido. Mas todas as possibilidades que vinham em minha mente eram terríveis. Me esconder num prédio em ruínas? Arriscado demais, acabaríamos soterrados. Vagar, talvez... conseguir algum veículo grande e dirigir procurando pessoas… Parecia o certo a se fazer no momento.

- Vamos querida.

Andamos por algumas horas até achar uma picape. Pouco entendo de carros, mas era um bom veículo, isso era garantido. Era grande e provavelmente tinha tração nas quatro rodas e além disso era espaçosa por dentro o que nos possibilitaria dormir e guardar comida. Pedi a Laila que esperasse enquanto eu verificava se a chave estava no carro, mas não houve a menor possibilidade dela me soltar. Acabei pondo ela dentro do carro e entrando em seguida.

Comemoramos o fato de a chave estar no carro e o tanque estar quase cheio. Quando dei a partida Laila gritou e bateu palmas. É impressionante como conseguimos encontrar motivo pra rir… em qualquer situação.

Fim da 2a Parte

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VÁRIAS SEMANAS DEPOIS...

FAMINTO… E A PONTO DE ENLOUQUECER…

… O pouco de comida que prestava eram apenas salgadinhos e cereais que encontrávamos nos mercadinhos… alguns enlatados... e a prioridade era sempre manter Laila saudável. Comecei a sentir desejos insanos, impulsos assassinos, tinha alucinações terríveis e despertava de sonhos que não sabia se eram apenas sonhos ou meros reflexos de impulsos primários.

Em meus sonhos, repetidamente torcia o pescoço de minha “filha” e cozinhava sua carne numa fogueira. Acordava gritando e sentindo minha boca salivando como um animal. As vezes passava alguns segundos sentindo um cheiro de carne grelhada em minha narina… Meu cérebro estava sendo o meu pior inimigo e vinha me pregando peças.. Olhei a pequena Laila deitada ao meu lado em seu sono lindo e profundo de criança. Tentei sorrir, mas estava ofegante e me sentindo culpado demais. Como se o sonho realmente representasse um desejo real.

- DEUS! EU VOU FICAR MALUCOOO!!!! – Berrei do lado de fora do carro.

Laila resmungou e virou de lado. Achei que precisava dar uma volta, arejar a cabeça e quem sabe encontrar comida. Não podia sair do perímetro do carro onde minha protegida dormia. Então, logo tive que retornar... choroso, deprimido, enquanto podia escutar meu estômago fazendo barulhos horríveis.

Mesmo com frio me sentei perto do carro em cima de um engradado de refrigerante vazio e chorei compulsivamente por um longo tempo… apertando minhas mãos contra minha barriga que doía de fome. Uma borboleta azul passou voando em minha frente e agarrei-a com a mão apertando com força até ouvir um barulho semelhante a um cream-cracker. Nem passou pela minha cabeça o fato de ter sido o primeiro animal voador que vi deste… Sei lá… MUITO TEMPO... Apenas enfiei-a na boca e engoli mal sentindo o sabor.

Depois da primeira vez em que a gente come algo nojento, a fim de sobreviver... o resto fica bem mais fácil. Passei a comer insetos escondido de Laila, durante a noite enquanto ela dormia. A dieta de salgadinhos e comida enlatada não estava fazendo bem a ela. Estava fraca, sempre exausta e muito triste.

- “Pai, você acredita em Deus?”

- Não, linda. Não… Quer dizer… Não sei mais!

- “Tenho sonhado com ele… E ele me chamou pra morar num lugar quente e cheio de comida… e com um montão de crianças!”

- Isso parece bom, posso ir também? - Ela fez que sim com a cabeça.

Estávamos sentados dentro do carro e o barulho do mastigar de minha filha adotiva era uma tortura. Não aguentei mais e tomei o salgadinho de sua mão violentamente enchendo a mão com o máximo que podia e enfiando-os na boca. Mal podia sentir o sabor. Comia de boca aberta babando e deixando farelos caírem no chão do carro em meio a gemidos e risadas de prazer. Laila se encolheu em seu lugar no carro me olhando como se eu fosse um animal asqueroso.

Quando terminei e vi seu olhar... comecei a chorar e soluçar como um bebê. Laila passava a mão em meus cabelos, em silêncio... mas suas mãos tremiam e não fazia frio. A única coisa que me importava era tirar de minha cabeça a possibilidade de cozinhar a minha menina para matar a fome. Era preferível que nós dois morrêssemos juntos... antes que algo assim pudesse acontecer.

O ÚLTIMO CÃO DO INFERNO.

Paramos o carro em uma rua que parecia ter sobrevivido a destruição. Olhei em volta e cheguei a pensar que os delírios tinham voltado, mas Laila desceu apressadamente do carro gritando com euforia.

- “A gente pode viver aqui!! PAAIII!!!! A gente pode morar aqui!!!” – Gritava abrindo os braços e girando como se quisesse abraçar tudo o que via.

Desci sorrindo, mas ainda estava confuso. Aquilo parecia ser bom demais pra ser verdade. Haviam poucas casas destruídas e outras que pareciam realmente intactas. Ao fim da rua havia um shopping. Meu coração acelerou ao ver – logo na frente - uma loja de eletrônicos!

Poderíamos até encontrar algo que tocasse música com o uso de pilhas! Às vezes eu sentia mais falta de uma boa música do que de várias pessoas que convivi. Mas o mais importante foi o que vimos no andar de baixo: Um enorme pet-shop!!! Ali conseguiríamos ração de todos os tipos e sabores. Era um verdadeiro BUFFET! Laila – ainda muito eufórica – agarrou meu braço e me puxou em direção ao lugar. Eu ainda estava calado tentando crer na possibilidade de passar a noite dentro de uma casa quente – com cobertores e até ÁGUA talvez – Matando a fome com deliciosíssimas rações de gato e de cachorro.

O Pet Shop era bem melhor do que imaginávamos e tinha de tudo. Laila abraçou um saco de ração que era maior do que ela em meio a risadinhas de felicidade.

- Vamos levar esses dois sacos, e mais esse de gato. Opa! ESSE AQUI TEM GOSTO DE CORDEIRO!! – Eu disse com animação.

Nos sentamos no chão – que estava imundo e fedendo a cocô – cada um com um saco de ração em mãos e matamos nossa fome em meio a gargalhadas e olhares de amor.

Foi quando senti uma coisa gelada atrás de mim. Tentei ignorar até que vi Laila sem comer e paralisada de medo. Seu corpo não se mexia… e seus olhos que não piscavam se tornavam mais e mais úmidos. Senti novamente um frio na espinha. E o frio dessa vez veio junto com um grunhido grave. Um rosnado… Algo que eu não escutava há muitos anos. Me virei muito devagar... Enquanto gesticulava com a mão para Laila como se quisesse pedir que se acalmasse. Mas era eu que precisava manter a calma… Ela parecia uma estátua.

Dei de cara com um enorme Doberman... Ele bufava de ódio. Boa parte de sua pele tinha sido esfolada e estava em carne viva com ossos a mostra… Podiam-se ver moscas e vermes caminhando por ele… O cheiro era horrível. Sua boca escorria fios grossos de saliva. Ele não latia... Quanto mais letal é um animal, menos barulho ele fará. Eles não querem espantar suas presas. Aparecem de mansinho e dão o bote na hora certa, encaixando suas presas em suas jugulares. São verdadeiros especialistas.

Quando o cão correu em nossa direção, tudo o que pude fazer foi me jogar e me pôr na frente de Laila de braços abertos esperando que ele se acabasse comigo, enquanto ela fugia. Mas, ao me derrubar no chão, ele não me mordeu... Me abandonou como se minha carne fosse podre e pulou ferozmente em cima da minha menininha.

Desesperado ao vê-lo cravando os dentes no pescoço de Laila não tive dúvidas quanto a dar vários chutes – com toda a força do mundo – em seu estômago. O cachorro largou minha filha e saiu esbravejando e cuspindo sangue, uivando e correndo. Me agachei ao lado da pequena Laila apertando o lugar da mordida com as duas mãos, tentando conter o sangue que jorrava, sem sucesso. Ela estava morrendo rapidamente..

Eu poderia contar aqui que Laila morreu fechando os olhos devagar, tentando sorrir para mim…após me dizer alguma coisa bonitinha, como “Te amo papai”, mas não foi assim. Minha Laila morreu sentindo muita dor e sufocando-se em seu próprio sangue. Sua agonia foi tamanha… que quando acabou… eu senti alívio por ela.

UMA ALUCINAÇÃO? UMA VISITA?

Entrei em uma das casas – a que parecia ser mais quente – havia uma cama no andar de cima e em baixo duas cadeiras na cozinha e um tapete na sala. Sem forças, eu me deitei no tapete e passei a gritar, espernear e chorar… por horas até acabar desmaiando de tristeza e exaustão. Em meu sonho, delírio… ou realmente numa visita, finalmente os vi novamente.

- Já acabou? Já não há mais nada… nada... – Eu suplicava em prantos.

Me vi novamente na fazenda onde os encontrei no passado. O campo aberto que eu tanto temia. Era como se o mundo estivesse existindo… como se todos estivessem bem. Menos eu...

Eles eram tão… bonitos… todos eles. Em roupas prateadas, metálicas... Seus olhares eram de pura ternura... Suas peles eram acinzentadas, quase negras. Eram quatro mulheres e dois homens. Todos eram mais altos do que nós humanos e eram extremamente atléticos. Uma das “mulheres” se aproximou de mim e tocou meu rosto sorrindo. Seus olhos eram grandes e meio puxados, de um castanho muito claro, cor de mel. Suas bocas eram bem menores que a nossa… quase atrofiadas. Podiam falar dentro de minha mente se quisessem… Mas ela preferiu – com nítida dificuldade - abrir a boca e falar comigo em minha língua.

- “Queremos muito te levar, Lucas. Mas existem regras... existem leis que não são nossas. Você precisou passar por provações e ainda estamos lhe observando… estamos torcendo por você…. E ACREDITE… ESTÁ ACABANDO.”

- Mas… Eu perdi... EU JÁ PERDI! Ela se foi! Não há mais nada…!! Não há… não há…

Um objeto gigante, triangular e metálico se aproximou de nós, sem emitir nem um barulho sequer. Uma porta se abriu e todos eles, um por um, deram as costas e entraram. A mulher se aproximou e segurou minha mão.

- “Não se entregue agora.”. - Ela disse antes e entrar. A nave emitiu uma luz azul e eu levei a mão sobre a face, fechando os olhos.

Acordei... E parecia já ser madrugada. Demorei um tempo pra perceber que estava gritando...

Um grito de dor que parecia brotar do estômago. Ainda estava deitado em posição fetal no tapete ao lado da cama. Tudo escuro… Senti um medo terrível, aquele mesmo ar gelado atrás de minha espinha. Dei uma salto. Mas, não havia nada... O cão ainda estava lá fora em algum lugar da rua… e eu sabia disso.

- O cão que matou minha Laila.

Me levantei… serrei os punhos. De repente me senti disposto. Me senti forte. Me senti vivo… E eu tinha… Muito ódio no coração.

- Amanhã eu acabo com ele. - Pensei.

Fui até a janela da casa... Uma grande janela de madeira carcomida a qual abri com um murro que podia ter quebrado todos os dedos da minha mão. Fui até a janela, senti o vento forte acariciando meu rosto. Seria um prazer saudoso e indescritível… Se eu não estivesse completamente... possuído... naquela hora. A lua era enorme e linda. Por um momento fechei os olhos e lembrei da nave do… sonho? Alucinação? Visita?

Berrei:

- EU ACABO COM VOCÊÊ!!!! - E juro que pude ouvir um rosnado raivoso, vindo de perto. Bem perto.

Fim da 2a Parte

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O ÚLTIMO CÃO DO INFERNO

Pt. II ------------------------ em andamento...

(H.B)