Aesir
Quando os princípios práticos do criossono foram descobertos, uma das primeiras aplicações vislumbradas por seus descobridores foi no tratamento de moléstias raras. Pela nova técnica, pacientes portadores de doenças incuráveis eram postos em animação suspensa, a espera do desenvolvimento de tratamentos que permitissem a cura. Isto, na verdade, já era tentado há algum tempo, mas as técnicas rudimentares até ali desenvolvidas não haviam ainda permitido a recuperação bem-sucedida de um único paciente que fosse.
A segunda aplicação prática foi, naturalmente, na exploração espacial. Quando da descoberta do criossono, mesmo as espaçonaves mais rápidas não ultrapassavam 20% da velocidade da luz, o que era suficiente apenas para se atingir as estrelas mais próximas dentro da duração de uma vida humana. Para objetivos mais distantes - e a maioria dos sistemas solares mais interessantes estava além desse limite - algum tipo de hibernação tornava-se necessário. Foi aí que o criossono começou a ser utilizado, em missões que durariam séculos e cujas tripulações seriam acordadas apenas meses antes da chegada ao destino.
No início do século seguinte, com o agravamento das tensões no Sistema Solar, uma terceira aplicação surgiu, englobando as duas primeiras: naves-hospital automáticas, postas em viagens de circum-navegação por séculos, transportando pacientes em criossono. A ideia é que, quando os veículos retornassem ao Sistema Solar, não somente a beligerância já teria acabado, como encontrada a cura para as moléstias dos hibernados. Ao menos, era o que se esperava.
Uma destas naves-hospital, a "Aesir", sofreu uma pane no sistema de navegação e desviou-se muito da rota original. Tanto que vagou durante séculos pelo espaço interestelar, até ser encontrada casualmente por um cruzador devork, em missão de patrulha. Os devork acessaram o computador de bordo e descobriram a origem e propósito da mesma, surgindo daí uma discussão sobre o que fazer com os pacientes em hibernação.
- O sistema Sol, de onde eles procedem, foi devastado por uma guerra interplanetária. As sociedades que ali existem hoje, estão em nível tecnológico muitíssimo inferior ao da época da partida da nave. E não sabemos o suficiente sobre as outras colônias humanas espalhadas pelas vizinhanças estelares para confiar que darão o tratamento adequado a estes sobreviventes do seu antigo mundo-matriz - relatou o comandante do cruzador para seus superiores via rádio.
A resposta tardou alguns anos, mas a decisão sugerida é que a "Aesir" deveria ser rebocada até um dos sistemas devork mais próximos, onde os cientistas e autoridades locais avaliariam o melhor a ser feito. E desta forma, a nave-hospital viu-se pela primeira vez em órbita de um mundo habitado após muitos séculos no espaço profundo.
Descobrir tratamentos para todas as doenças existentes nos pacientes a bordo exigiu mais alguns anos de pesquisa aos devork. Finalmente, métodos considerados seguros foram desenvolvidos e todos os humanos da "Aesir" viram-se completamente restabelecidos, alguns inclusive com a adição de implantes robóticos que lhes acrescentavam habilidades sobre-humanas.
Chegou então o momento de indagar para onde gostariam de ser levados após sua recuperação. Os devork citaram as colônias humanas extrassolares, e alguns dos pacientes aceitaram a sugestão. A maioria, contudo, decidiu que seu lugar era mesmo no Sistema Solar - na Terra, para ser mais preciso.
- Para nós, será um recomeço. E se pudermos ajudar os sobreviventes do nosso planeta a se reerguerem, nossa missão estará cumprida - declarou o líder dos pacientes.
E assim, a "Aesir" tomou o rumo da Terra pela última vez. Quando seus ocupantes desembarcaram, foram tomados como deuses pelos bárbaros que agora ali habitavam.
- [26-02-2020]