Um Médico da Peste

A figura vestida de negro que emergiu dentre a bruma da noite londrina, carregando uma lanterna acesa na mão esquerda e um bastão na direita, parecia ter saído diretamente de um sabá das bruxas: corpo coberto por um longo sobretudo e chapéu de abas largas, tinha as mãos calçadas em luvas de couro e a cabeça oculta por trás de uma máscara amarela que lhe dava a feição de um pássaro, com um bico longo e curvo e duas aberturas circulares para os olhos, devidamente protegidas por vidros.

- Doutor Gervasius? - Indaguei.

- Eu mesmo - respondeu a figura, voz abafada pela máscara.

- Viemos levá-lo à propriedade do nosso mestre, Sir William Rowdon - declarei, indicando a carruagem puxada por dois cavalos ao lado da qual eu estava, o cocheiro no seu posto, chicote entre as mãos.

- Propriedade esta que é fora dos muros de Londres, eu presumo - ponderou o médico, apoiando o bastão no braço esquerdo.

- Sim, na Liberty de Rowdon, em Westminster - assenti.

- Vamos a isto - decidiu-se o encapuzado, embarcando na carruagem. - Tenho muitos pacientes para visitar, amanhã.

Sentei-me então ao lado do cocheiro e partimos rumo ao portão de Ludgate, pelas ruas escuras e enlameadas. Fora dos muros, na estrada para Westminster, nosso veículo foi abordado por dois homens a cavalo, rostos parcialmente cobertos pelos mantos que usavam - e pistolas de pederneira em punho.

- Parem! Queremos o médico! - Exclamou um dos salteadores, segurando as rédeas dos cavalos.

Embora essa possibilidade devesse ter me passado pela mente, confesso que jamais imaginaria que a veria ocorrer no coração da Inglaterra. Sequestradores de médicos! Atônito, o doutor Gervasius pôs o longo bico da máscara para fora da carruagem.

- O que vocês querem? - Inquiriu. - Não trago valores comigo!

- Você sabe muito bem o que queremos, Gervaise - replicou o outro salteador, aproximando-se da carruagem, arma em punho. - Onde está seu estoque de antibióticos?

Gervaise? Antibióticos? O inglês dos salteadores era estranho, e os termos que usavam, mais ainda.

- Não estou fazendo nada demais - arguiu o médico. - Apenas salvando vidas.

- Apenas salvando vidas em clara violação ao Estatuto da Sociedade do Tempo - replicou irritado o salteador. - Está usando recursos médicos do século XXI para curar pessoas que, de outra forma, morreriam de peste bubônica!

- Eu não salvo qualquer pessoa - defendeu-se Gervasius - ou Gervaise. - Ninguém historicamente importante, apenas gente anônima das favelas ao redor de Londres. E também aproveito para lhes dar algumas lições de profilaxia e...

- Mas estava indo para a mansão de Sir William Rowdon - atalhou o salteador. - A filha dele contraiu a peste, e você aceitou ir tratar dela. Como isso se enquadra na sua "gente anônima das favelas"?

O médico pareceu acusar o golpe, ficando em silêncio por um momento, mas em seguida contra-argumentou:

- Vocês não fizeram o dever de casa direito. Certo, eu vou cuidar da filha de Sir William Rowdon, e é muito provável que obtenha sucesso... mas ela vai estar em Londres ano que vem, e creio que foi a última vez em que foi vista com vida, se me entendem.

- O que é que há com 1666? - Indaguei, preocupado.

Os salteadores pareciam agora menos resolutos. O que segurava as rédeas, consultou um estranho objeto luminoso que retirou de um dos bolsos.

- Creio que o Gervaise está dizendo a verdade... não há rastro da moça depois de setembro de 1666. O que acha?

O salteador que enquadrara o médico com sua pistola, baixou a arma.

- Vamos lhe dar um voto de confiança - resolveu. E apontando um dedo para mim e o cocheiro, assustado demais para emitir qualquer som:

- Nenhuma palavra sobre este incidente, certo? Ou voltamos e cortamos o pescoço de ambos!

Prometemos pela salvação de nossas almas que nenhuma palavra seria dita, e a passagem foi franqueada. Finalmente, chegamos à propriedade na Liberty de Rowdon, e o passageiro ilustre desembarcou, sendo imediatamente recebido por nosso amo.

- Temo pela vida de minha filha, doutor! - Confessou Sir William Rowdon, acabrunhado.

- Não tema - declarou o médico. - Já curei pacientes em pior estado do que o dela... mas, caso obtenha sucesso, quero a sua palavra de que me dará a mão da jovem em casamento.

- Mas é minha filha única! - Protestou nosso mestre, indignado.

- O meu tratamento também o é - declarou o médico, inflexível.

Sir William Rowdon acabou concordando - melhor ter a filha casada com um médico estrangeiro e plebeu, do que morta.

E então, me lembrei dos estranhos salteadores. Alguma coisa má estava para acontecer em Londres, em setembro de 1666. Pelo sim, pelo não, procurei avisar a todos os meus parentes e amigos que deixassem a cidade o quanto antes. Eu só não entendi porque o doutor Gervasius decidiu ir para lá com sua jovem esposa, em fins de agosto daquele ano. Foi efetivamente, a última vez em que foram vistos.

Afinal, se ele sabia o que estava para acontecer, porque ir justamente para lá? Talvez, para... desaparecer?

- [21-01-2020]