Bem vindos á "Lunar"
Daqui de onde estamos se seguirmos pela Avenida 19 de Julho no sentido centro bairro, duas quadras adiante cruzaremos com a Rua Margareth Hamilton. Devemos então seguir pela Margareth Hamilton que é mão única para a esquerda até chegar ao “Jardim Mar da Tranqüilidade” onde fica a estação “Lunar” e onde a colonização da lua começou.
Nós pisamos no solo da lua pela primeira vez em 1969 e agora em 2169 caminhamos por Ruas e Avenidas de uma agitada cidade.
Na segunda metade do século 21, a vida no espaço deixou a ficção e tornou-se realidade.
Fantástica realidade por assim dizer, mas aceita naturalmente pela humanidade que há muito não se surpreendia mais com os avanços científicos tal era a velocidade com que estes ocorriam e eram disponibilizados para o bem estar humano.
O risco da terra se tornar um imenso deserto estava cada vez mais iminente. O veículo elétrico ocupara o lugar dos veículos á explosão, mas a extração de minérios e metais raros para construir baterias e componentes para os motores elétricos reduzia montanhas á vales e vales á crateras. Gastamos rios e córregos de água boa purificando minérios enquanto produzimos outras tantas montanhas e lagos de rejeitos tóxicos. A mineração, extração, criação e cultivo transformaram o planeta de forma irreversível. Nós extraiamos, cultivávamos, criávamos e fabricávamos para ganhar dinheiro e com o dinheiro comprar coisas extraídas, cultivadas, criadas e fabricadas. Se a cadeia fosse interrompida seria o caos.
A indústria tinha que agir rapidamente e vender o máximo possível antes do produto ficar obsoleto para dar lugar á próxima novidade.
A alternativa encontrada para reduzir o garimpo e o cultivo em larga escala foi importarmos produtos e matérias primas de outros planetas, assim como antigamente os países melhor desenvolvidos economicamente importavam dos países menos desenvolvidos o que precisavam.
Construímos o primeiro espaço-porto da terra na Flórida aproveitando a infra-estrutura existente, mas este operou por alguns anos apenas. Durante estes poucos anos de funcionamento descobrimos que materiais e produtos de fora da terra precisavam passar por uma triagem e por processos de saneamento a fim de evitar que bactérias e substâncias nocivas ás criaturas da terra desembarcassem no planeta.
Perdemos plantas, pessoas e animais vítimas de doenças até então desconhecidas na terra. Ocorreram deformações físicas e mentais nos filhos dos trabalhadores do espaço-porto concebidos no período em que o mesmo operou, até deduzirmos que precisávamos de um entreposto fora da atmosfera terrestre para aplicar as medidas sanitárias necessárias aos produtos e aos viajantes antes destes desembarcarem na terra. E preconceitos á parte, muitas vezes o comportamento e a aparência destes seres chegavam á ser repulsivas para nossos padrões.
Criamos então a “ONIU”, Organização das Nações Interplanetárias Unidas.
Juntos, terráqueos e alienígenas buscamos uma solução para a implantação de um comércio interestelar seguro, até chegarmos ao modelo de estação espacial sanitária á ser implantado em cada satélite natural dos planetas membros da “ONIU”. Qualquer estação de qualquer planeta membro teria condições de acolher o viajante suas necessidades e seus costumes.
Implantamos hotéis com atmosfera e gravidade diferentes em cada quarto de modo que o viajante pudesse repousar sem o traje espacial fora da nave em que viera. Criamos restaurantes com cardápio adequado á cada paladar e locais privativos de alimentação para que uma espécie não ficasse constrangida ou chocada com os hábitos alimentares de outra.
Esse foi o resumo da história de Lunar que encontramos nos livros, Agora voltemos para a realidade:
Manoel descia pela Rua 19 de Julho. Suas botas pró-gravidade já um tanto gastas davam ao seu caminhar um efeito desengonçado, os braços abertos e balançando tentavam manter o equilíbrio enquanto procurava dosar a força com que levantava o pé esquerdo do chão que estava muito mais leve do que o direito devido a um defeito nas botas.
Sua roupa para sair de casa já teve um capacete hermético desenvolvido para manter a pressão atmosférica em seus olhos e ouvidos compatível com a terrestre, mas com o tempo o capacete desgastado perdeu a utilidade e agora só funciona a máscara respiratória ligada a cilindros de ar terrestre dentro de uma mochila presa ás suas costas. Seus ouvidos doíam, e seus olhos dilatados pareciam querer pular para fora da cavidade ocular enquanto Manoel caminhava apressado e decidido.
Havia algo de heróico nele neste momento.
O desequilíbrio das botas tornava tudo mais penoso e desgastante, felizmente ele não caminhava todos os dias apenas nos últimos dias do fim do mês quando o crédito do seu salário acabava e ele não podia pagar pelo transporte público pressurizado.
Manoel é humano, veio para a lua esperando que do salário melhor oferecido pudesse economizar boa parte e depois voltar para terra e começar a vida como esposo de Maria e pai do filho que ela carregava no ventre. Esperava ajuntar o suficiente para viver junto deles com um pouco de conforto e dono do próprio negócio, mas com o passar dos anos, percebeu que o custo para viver em Lunar é muito superior aos seus ganhos e apesar de viver sem luxos e sem conforto não sobra nem para a passagem de volta para a terra.
Aqui tudo se paga, até o ar que respiramos é comprado á peso de ouro. A comida vem da terra, industrializada, esterilizada e cara. Tem quem goste, mas Manoel come apenas porque sabe que não tem escolha. Com a água é um pouco pior, o liquido precioso no sentido financeiro da palavra apenas lembra ligeiramente a velha fórmula simplificada: “H²O”.
Maria agora é uma vaga lembrança. O filho ou filha que ele nunca conheceu deve estar adulto e certamente chama á outro de pai porque Maria, bonita de corpo e de feições não resistiria por tanto tempo ao assédio dos muitos pretendentes para esperar por Manoel de quem ela não tivera mais notícias.
Manoel já vivia em Lunar quando soube que o governo da terra implantara um programa de incentivo á natalidade para combater o envelhecimento da população do planeta. Por este programa Maria tem direito a moradia e ajuda de custo durante a gestação e enquanto a criança estiver em idade escolar. Se a mulher tiver um companheiro humano e ambos tiverem capacidade para gerar mais crianças o “Ministério da Futura Geração Humana” o “MFGH” se encarrega de prover á família dos meios necessários para viverem com conforto e sem privações. Manoel não sabe se Maria se casou e tem outros filhos, mas reconhece que no lugar dela ele faria isso, portanto não a recrimina apenas lamenta o seu ato precipitado de deixar Maria lá e vir para Lunar descobrir logo nos primeiros meses que nada aconteceria como planejara.
Entretanto, convivendo com criaturas de diferentes mundos Manoel desenvolveu uma capacidade de observação incomum para a espécie humana.
Foi graças á essa habilidade que pouco mais de um mês atrás ele descobriu um fenômeno que ocorria na região das crateras e passava despercebido em Lunar.
Mesmo depois da terra quase ter se transformado em um planeta de areia e pó, nós humanos não paramos de produzir resíduos por isso Lunar tem um sistema sofisticado de tratamento de lixo e resíduos fisiológicos.
Os rejeitos produzidos por humanos e alienígenas possuem mecanismos de coleta automatizados e nos locais de circulação de criaturas vivas, existem cloacas metálicas onde depositamos o lixo resultante do consumo de alimentos e bens.
Os dejetos fisiológicos são depositados em recipientes especiais e transformados em grãos inodoros parecidos com o sal grosso antes de serem despejados nas cloacas de saneamento. Providencia essencial para economizar a rara e preciosa água
Sugados por tubos ligados as cloacas os rejeitos são conduzidos por baixo do solo Lunar até o local de despejo como eram os esgotos da terra antigamente, a diferença é que o esgoto era impulsionado pela água e terminava em rios e córregos, e os rejeitos de Lunar são expelidos pela diferença de pressão atmosférica entre o interior das dependências e as crateras para onde iam.
A população de Lunar sempre soube que o lixo e dejetos produzidos na lua eram conduzidos pelas cloacas até uma estação de processamento abaixo da superfície, onde através de processos extraterrestres patenteados desintegrava-se sem cheiro e nem fumaça e sem ameaçar á saúde dos moradores e visitantes de Lunar.
Quando implantamos a estação não esperávamos que ela se tornasse uma cidade e se estendesse até as crateras. Ninguém circulava pela região das crateras porque nada tinha de interessante para verem que valesse o gasto de oxigênio ou o desconforto do traje espacial, portanto antes de ser reduzido a partículas menores que um átomo o lixo saia das vistas curtas dos Ambientalistas interplanetários fiscalizadores de um amplo conjunto de leis e normas preservacionistas universais que lhes rendia gordas multas.
Um dia Manoel passando pela borda de uma cratera achou que viu um brilho metálico no fundo.
A roupa para sair de casa e as botas de Manoel ainda funcionavam, faltava decidir se valeria a pena o gasto extra de ar para passar algumas horas no ambiente externo de Lunar enquanto escorregasse ao fundo da cratera, mas lembremos que Manoel não estaria naquele momento contemplando um objeto reluzente no fundo de uma cratera lunar se o ser humano impusesse prudência e limites a si mesmo. Então depois de alguns dias de insônia e de curiosidade corrosiva, lá estava Manoel no fundo da cratera segurando nas mãos um pedaço de papel acetinado onde letras coloridas diziam em língua da terra: “Biscoitos Lunar. O preferido em todo o universo”
Manoel conhecia e detestava aqueles biscoitos com gosto de nada e consistência de coisa nenhuma, mas que alegavam ser nutritivos e indispensáveis para a saúde dos humanos da estação, portanto obrigatórios pelo menos em duas refeições por semana.
Ali onde recolhera o pedaço de embalagem Manoel viu um buraco de tamanho suficiente para caber uma mão humana com alguma folga e dele saiam sons que não pode definir. Escavou e ampliou a abertura no solo poroso até conseguir passar, acendeu a lanterna do capacete que nessa ocasião ainda funcionava e rastejou para dentro de uma gruta aparentemente escavada por seres humanos e máquinas terrestres.
Bastaram alguns segundos para Manoel concluir que o lixo não desaparecia desintegrado por processos misteriosos alienígenas como fizeram crer. Sob suas botas estava o lixo de Lunar supostamente desmaterializado “sem cheiro e nem fumaça e sem ameaçar á saúde dos moradores e visitantes de Lunar”.
Não demorou em localizar o tubo de onde jorrava o lixo e vinha o som que ouvira e agora sabia que era o som de gazes saindo pelo tubo em alta velocidade.
Olhando ao redor de si Manoel deduziu que ali havia atmosfera respirável. Arriscou tirar o capacete enquanto pensava que por meio de algum fenômeno misterioso a mistura gasosa absorvida pelas cloacas de coleta de lixo permanecia no interior da gruta quando o natural era que a falta de gravidade a conduzisse através do solo poroso até a superfície e daí se dispersasse. O lugar cheirava a decomposição, talvez a combinação de gazes respiráveis com gazes expelidos misturados ao lixo causasse umidade e a umidade a decomposição que indicava a existência de vida microscópica naquele local. O mofo que Manoel reconheceu o cheiro assim que tirou o capacete, devia estar debaixo das pilhas de lixo em decomposição. Provavelmente se escavasse encontraria larvas de alguma criatura improvável gerada pela mistura do solo estéril da lua com os detritos orgânicos vindos da terra ou de outro lugar do universo.
Manoel fez várias incursões à gruta desde aquele dia. Por enquanto não havia falado com ninguém. Sabia que não podia guardar segredo por muito tempo, mas sabia também que assim que os cientistas se acercassem do local, ele próprio seria impedido de voltar lá, portanto preferiu ele mesmo explorar o lugar á procura de alguma coisa de valor financeiro imediato para seu proveito antes de entregar o “tesouro científico á longo prazo” para as autoridades de Lunar em troca de uma simbólica recompensa.
— Eu não quero uma cerimônia solene com banda tocando, receber uma inútil placa de metal com o meu nome gravado e continuar nesta vida de privações – pensava Manoel.
Do dia em que Manoel descobriu a gruta até o dia em que o vimos descendo a 19 de Julho passou-se mais de um mês. Com a roupa para fora de casa defeituosa ele ficou sem condições de continuar sua exploração, Alguns dias antes ele concluiu que sua descoberta não era mais que um inútil e enorme depósito subterrâneo de lixo e duvidava até mesmo se ganharia uma placa de metal, mas precisava informar as autoridades e alertar os ambientalistas sobre o verdadeiro destino dado ao lixo de lunar para que tomassem providencias.
Dias depois vimos Manoel em “lunar” pela última vez e ele vestia uma roupa para fora de casa novinha calçava, botas pró-gravidade reluzentes e conversava com algumas pessoas na entrada da gruta.
Agora passado um ano no local onde havia aquela cratera que dava acesso á gruta tem uma ampla alameda e a estátua de um astronauta ao lado de um monólito de concreto que sustenta uma placa de metal onde lemos: “É apenas um pequeno passo para um homem”
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