Em 2050

Por João

Parte do meu ser finalmente descansa, desde que descobri esta doença, muita coisa me foi tirada! É verdade que aprendi muito, mas entrei em uma profunda escuridão. Sim, às dores físicas, eu pude suportar, porém as dores da alma essas nem posso mensurar.

Você deve estar se perguntando o que está acontecendo? Vamos com calma vou tentar explicar. Me chamo João, tenho trinta anos e há exatos 15 anos descobri que tenho uma doença degenerativa chamada distrofia muscular. Nem todo mundo lida da mesma forma com os desafios e eu juro que tentei e sobrevivi durante este período tendo muito apoio de familiares e amigos.

Em 2019 surgiu um experimento revolucionário comandado pelo doutor Marcos, nem todos entenderam a minha decisão, decidi ser cobaia e fazer parte dele. Os médicos vão parar o meu coração e ficarei em uma espécie de congelamento e somente serei ressuscitado quando existir uma cura. Minha família e amigos acham que estou louco, porém nunca tive tanta certeza de algo. Sei que isso significa nunca mais vê-los, contudo poderei recomeçar e fazer outra história.

Chegou o grande dia e tudo está pronto, me despeço dos meus pais, meus olhos se fecham aos poucos e sinto uma profunda paz. Estou em um constante sonho vivendo dias de adolescente.

Primeiro de março de 2050 e ao longe sinto que alguém me chama, mas não quero despertar me sinto bem onde me encontro, estou correndo em um campo de flores e então sou puxado e levado a ir despertando bruscamente.

Vou abrindo os olhos lentamente e para minha surpresa vejo o doutor Marcos. Espera se estou vendo você algo deu errado? E ainda estou em 2019. Eis então ele fala:

—Bem-vindo de volta, João. Como prometido, já temos a cura para sua doença.

— Espera, deixa eu ver se eu entendi, eu dormi há alguns meses e já existe uma cura?

— Não meses, anos João. Não estamos em 2019.

—E então em que ano estamos?

— Em 2050.

— Como é possível? Você está igual ou ainda mais jovem da última vez que nos vimos. Você deveria estar muito velho ou ter morrido?

— Espere vou lhe explicar. Não existe mais morte se você não quer!

— Como assim?

— É simples nossa mente e a nossas memorias agora podem ser transferidas para outros corpos, criados em laboratório. Eu agora posso ser quem eu quiser.

— Você está me dizendo que é possível trocar de corpo com uma simples cirurgia?

— Sim João, eu, por exemplo, já tive o corpo do Leonardo DiCaprio, mas também já tive o corpo da Fátima Bernardes. E agora estou em um protótipo do meu antigo corpo, para que você não se assuste.

— Então meus pais e amigos ainda estão vivos?

— Eu não tenho essa resposta, mas precisamos tomar algumas decisões agora do contrário quem vai morrer é você;

— Ok fale.

— Precisamos transferir você para um outro corpo imediatamente.

— Espera como assim? Se eu for para outro corpo não serei eu?

—Sim, ainda será você. Tomei a liberdade de escolher o seu protótipo e fiz um corpo exatamente igual a você, só que saudável e sem defeito genético.

— Isso significa adeus à distrofia, eu finalmente posso ser normal.

— Sim. Então vamos começar ...

Sem pensar ou questionar muito, João apenas confiou em seu médico. O processo durou em média quatro horas, quando ele finalmente despertou, se sentia como um menino, começou a dar pulos e correr pelos corredores, só então se deu conta que não tinha agradecido o doutor, porém já estava longe e decidiu voltar depois.

Saiu correndo para encontrar com os seus pais, mas ao chegar em casa se assustou com o que viu.

Ao tocar a campainha deu de cara com um moço alto e elegante, espera ele o conhecia de algum lugar:

— Bem-vindo de volta senhor João. Deve estar se perguntando quem sou eu?

—Sim, estou.

— Você já me conhece sou eu o Alfeu.

—Espera, você era um bebê.

— Agora sou um homem. Entre, por favor.

— Onde estão os meus pais?

— Essa será uma conversa longa, não quer comer algo?

— Sim, eu estou morrendo de fome. O modo de comer não mudou?

— Não, só intensificamos os sabores. Você pode comer alface comum, ou você pode pedir uma alface com gosto de pizza.

— Já amei este mundo.

Enquanto comiam ... João começou a questionar:

— E os meus pais estão em alguma viagem?

— Sinto te informar, mas seus pais estão mortos.

— Você está mentido o doutor Marcos falou que às pessoas não morrem mais.

— Isso é verdade, mas elas têm o livre-arbítrio e seus pais não lidaram bem com a sua decisão. Eles respeitaram, mas não concordavam, sua mãe entrou em uma grave depressão e seu pai passou a beber.

— Não é possível.

—Em 2025 a técnica de mudança corporal começou a ser desenvolvida, em 2028 ela já estava totalmente pronta. Rapidamente a técnica se espalhou pelo país e pelo mundo. Seu pai até tentou convencer sua mãe, mas tudo que ele disse foi em vão. Para que a mudança ocorresse era necessário que eles assinassem os papéis, coisa que não aconteceu, sua mãe não queria de jeito nenhum, ela estava muito deprimida e então seu pai decidiu não fazer também. Ele não se via sem ela.

Em um sábado à noite eles saíram para jantar e seu pai acabou extrapolando na bebida e um terrível acidente aconteceu vitimando os dois. Como ambos morreram na hora e como não haviam assinado os papéis, eles foram oficialmente declarados mortos.

Em seu testamento eles me incumbiram de cuidar dos seus bens até que você retornasse, enquanto isso eu poderia usufruir de uma parte que me foi dada.

João estava aos prantos com lágrimas nos olhos, com a fala embargada não conseguia pronunciar mais nada. Passou dias tentando se recompor foi então que decidiu procurar a sua antiga namorada

Clementina. Só tinha um problema: como encontrá-la? Então decidiu pedir ajuda ao Alfeu que se prontificou a ir com ele até Londres.

Certas coisas não mudam tanto aviões ainda são aviões, mas a velocidade percorrida essa mudou. Em menos de uma hora é possível viajar para qualquer lugar do mundo.

Quando chegou, foi direto para o hotel e estava tentando criar coragem para ir até Clementina.

Horas mais tarde, Alfeu o levou lá e o deixou na porta do quarto 131, a tecnologia estava em tudo, inclusive para entrar foi escaneado completamente. Antes que pudesse pensar no que fazer, sua eterna namorada abriu a porta e o surpreendeu com um caloroso abraço.

João não conseguia parar de admirá-la. Ela estava mais alta, com os cabelos negros e caracolados, com um corpo de modelo:

— Não fique parado aí ... Entre... Vamos até a sala. Sente-se.

— Eu tenho tantas perguntas Clementina. Nem sei por onde começo.

— Vamos começar pelo simples, como você está?

— Não muito bem, existe uma solução para a morte e mesmo assim meus pais me deixaram aqui sozinho.

— Não seja injusto quem os deixou foi você. Eles tiveram que lidar com as consequências de sua escolha, assim como eu.

— Não aguentava mais sofrer.

— E em algum momento pensou no sofrimento que nos causaria?

— Me perdoe, eu só não queria sofrer.

— Ótimo, mas agora lide com as consequências dos seus atos.

— Você se casou? Tem filhos?

— Me casei três vezes, embora hoje as relações são contratos que você pode desfazer a qualquer momento, enquanto aos filhos nessa sociedade eles foram banidos. Não temos tempo ou interesse, quero ter liberdade e viver intensamente, além disso somos eternos e não caberia tanta gente neste planeta.

— Por quanto tempo eu dormi? Isso aqui virou um caos. Eu ainda te amo.

— Existe esse sentimento? Fazia tempo que não ouvia. Olha não quero ser grosseira nem nada, mas se quiser me namorar pode entrar na fila, preencher uma ficha e aí colocar o que tem para me oferecer.

—Que mundo de loucos que vocês criaram! São puro egoísmo.

— O que você chama de egoísmo eu chamo de amor-próprio. É sério que depois de 31 anos, você acha que chegaria aqui e encontraria tudo exatamente igual? Se adapte ou viva com as suas escolhas e suas consequências.

O que João percebeu depois de tudo isso é que ele passou a vida querendo ser normal, mas depois de anos ainda se sentia o estranho. Não havia mais normalidade, pois a que ele conhecia não existia mais e aquele mundo era insano demais para ele, porém era o que tinha para hoje e ele então decidiu viver um dia de cada vez e se aventurar ao novo.

Claudia Matos
Enviado por Claudia Matos em 30/10/2019
Reeditado em 07/12/2021
Código do texto: T6783226
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