Não quero patos elétricos
Ele disse:
— Algo mais:
E disse:
— São 80 Neos.
Olhei para o robô sobre a mesa, ele tinha entre quinze a vinte centímetros. Estava parado com a pequenina mão estendida esperando que eu colocasse a moeda sobre ela.
Eu disse:
— Mas nós apenas ficamos sentados.
E disse:
— Quero falar com o gerente desta espelunca?
O lugar era um caos, uma lanchonete entre a centauro dezessete e o ramal seis perto da lua de saturno. Os acolchoados das cadeiras estavam rasgados, as paredes descascando, dava para ver ratos correndo pela janela onde passavam os pratos com comida.
O pequeno robô disse:
— Só um momento senhor.
Sentado ao meu lado Craig mexia os dedos calado. Estava lá olhando para aquela mão com pele de borracha com textura de pele humana. Estranhei como ele estava calado o tempo todo naquele dia. Normalmente ele falava pelos cotovelos de metal.
Eu disse:
— Querem roubar a gente Craig.
Sem resposta, continuei:
— Mas não vou deixar.
Ele não esboçou reação. Continuou olhando para sua mão, e as vezes olhava para fora e encarava as crateras da lua.
Uma pequena luz acendeu sobre a mesa, e o holograma de um sujeito gordo, baixinho com tentáculos saindo de onde deveria ser seu bigode apareceu, o sistema era péssimo, haviam falhas na comunicação, as vezes os movimentos travavam e em outras vezes ele apaga e piscava.
O sujeito disse:
— Boa noite — Ainda era de tarde. — Bem-vindo ao ‘Parecido com algo na terra’. Eu soube que está tendo alguns problemas, no que posso ser útil?
Fiquei em silencio. Então a imagem travou e depois de alguns segundo retomou os movimentos, e disse:
— Entendemos que o valor está meio alto, mas o senhor deve entender que o tempo que ficou ocupando este lugar poderia ter sido de outra pessoa, por isso precisamos cobrar um valor que corresponda ao tempo em que o cavalheiro ficou presente.
Craig virou o rosto e ficou surpreso de ver o holograma ali falando sobre cobrança, tirou duas moedas do bolso e jogou para o pequeno robô, me empurrou pedindo passagem, e caminhou em direção a porta.
Corri atrás dele e disse:
— Espera…você tinha dinheiro??
Ele manteve silencio enquanto a porta desativava seu modo matéria e atravessávamos por ela.
Eu disse:
— Podíamos ter comido algo então.
Continuei:
— Eles tinham pão de queijo Craig, merda, pão de queijo. Nem na terra existe mais isso.
Ele parou em frente a nossa nave que estava estacionada de forma irregular e tinha um aviso eletrônico de multa fixado.
Craig continuou em silêncio até nos posicionarmos na frente do comando. As luzes da nave se acenderam. E o sistema de inteligência começou a falar:
— Boa tarde rapazes, como estão?
E disse:
— Vejo que está com alguns problemas Craig — Olhei para Craig nesse momento. Ele estava parado quase entrando em seu ambiente de descanso, ele me encarou de volta e disse:
— Você já viu um pato, Adam?
Estranhei sua pergunta. Perguntei:
— Um pato?
Ele disse:
— Sim, aquelas aves que nadavam, voavam e granavam.
Coloquei a mão no queixo e pensei sobre. Um pato, eu sabia o que era um pato, já havia visto vários deles, voavam em bando pelo espaço, mas sempre davam algumas falhas por ficar muito tempo na água. Antes de eu responder Craig disse:
— Não Eletro-patos.
E disse:
— Patos verdadeiros. Patos reais. Que colocam ovos, patos que comem migalhas.
Imaginei de onde Craig tirou aquela ideia. Pensei no porque dele estar fazendo esse tipo de pergunta, mas na verdade estava curioso em saber o que o sistema da nave quis dizer com aquilo.
Craig disse:
— Eu gostaria de ver um pato. Ver algo de verdade, chega de humanos, chega de Amsibios, chega de qualquer outro tipo de vida que não seja um pato.
Então ele disse:
— Antes de morrer, gostaria de ver um pato.
O sistema da nave então riu. E disse:
— Então é melhor correr senhor Craig, faltam vinte e duas horas para que seus sistemas percam todo o nível de energia suficiente para alimentar seu velho cérebro Pseutrônico.
Foi quando tudo começou a ficar sem sentido. Sou amigo de Craig a uns vinte anos e nem sabia que ele poderia morrer. Aquilo foi um choque para mim, e eu só consegui dizer:
— Então… Patos, não é? Fazem quack quack.
Eu disse:
— Sistema encontre o pato mais próximo.
O sistema fez um som de bip, cochichou algo, e ficou ali fazendo sons estranhos.
Olhei para Craig e ele tinha aquela feição robótica, fria e solida. A mesma feição que fazia antes de apertar o gatilho. Fiquei em silencio e esperei que ele dissesse algo.
…
Passamos por Alta Nebulosa, uma cidade quebrada lotada de prédios e edifícios, a população em sua maioria era de humanos, por que humano vai para todo canto. O sistema da nave disse que em algum lugar aqui por perto tem um pato.
Craig depois de muito silencio explicou que sua versão de fabricação estava extinta a sete anos e isso queria dizer que robôs daquela linhagem não podiam mais recarregar a energia, as pessoas que tinham esse exemplar deveriam leva-los ao fabricante para que o mesmo fizesse a passagem de dados do modelo antigo para um novo, mas isso iria custar bem mais do que custa para sentar em lanchonetes por ai.
Craig disse:
— Não quero trocar de corpo. — Olhava para a mão negra e borrachuda. — Quero que tudo acabe como aconteceria com uma pessoa e como vai acontecer com você.
Ele disse:
— Mas antes eu preciso ver um pato.
Em certo ponto ele tinha razão, eu só não entedia o lance do pato. Podia ser um tigre branco, existem vários deles por aí. Ou uma girafa. Dava para irmos ver aquelas abelhas no setor Alfa14. Mas ele insistia no lance dos patos.
Descemos em Alta nebulosa e fomos falar com um comerciante de vidas. Esse tipo de cara é os que eu normalmente sou pago para caçar. Eles não têm escrúpulos, vendem o que conseguirem roubar, se essa coisa, andar e falar, vai ser vendida.
O sujeito era um pouco mais alto que eu, carregava um bolsa enorme que aparentava ser bastante pesada.
Ele disse:
— Um pato?? Sério mesmo? — Riu como uma hiena, sim eu sei o que é uma hiena. — Só podem estar de brincadeira comigo, ouviu isso garoto, eles querem um pato.
Alguém dentro da bolsa disse com uma voz abafada:
— Eu quero minha mãe.
— Você tem uma criança aí dentro? — perguntei me aproximando da bolsa.
— Uma criança? — Ele perguntou dando alguns passos para trás. — Você está louco?
A bolsa se debatia. Craig e eu tentamos ignorar aquilo. E voltamos a nossa busca.
O sujeito antes que pudéssemos insistir sobre o que tinha na bolsa, nos deu um endereço. Era para algum tipo de aquário. Assim que entramos uma sineta rustica avisou de nossa chegada. E um Eletro-Gorila veio nos atender.
Ele era enorme, com grandes músculos e pequeninas perninhas. Não falou comigo diretamente, normalmente animais eletrônicos não falam com humanos, já que no passado fomos conhecidos por matar os animais de verdade. Era como se quisessem que sentíssemos vergonha do que nossos antepassados fizeram.
O gorila disse:
— Essa coisa está com você?
Craig balançou a cabeça afirmativamente.
— Podem dar uma olhada por aí, vou chamar a dona, não deixe que isso quebre as coisas. — O gorila disse colocando os punhos no chão e indo direto a porta dos fundos.
Caminhei pelos corredores com enormes tanques de água. Neles tinham Eletro-peixes de diversas raças, cores e formas. Em um dos tanques tinha um ser humanoide com guelras e escamas. No outro havia uma bela moça humana até a cintura e peixe até os pés. Ela acenou para mim, e acenei de volta.
Craig caminhava ao meu lado. Contou que aquilo era uma sereia, e só foram descobertas após um dos mares da terra começar a secar. Mesmo período onde o número de baleias encalhadas aumentou.
A sineta tocou. E vimos esse sujeito de olhos vermelhos entrar, tinha aproximadamente um metro e oitenta de altura, braços largos e usava uma regatinha branca. Caminhou até o balcão de atendimento. Ficou parado lá e depois saltou sobre o balcão.
Craig me encarou. Ficamos em silencio. Nada aconteceu. Até os disparos serem dados.
Craig me jogou no chão e se abaixou. Sacou sua arma e disse:
— Ele chegou.
Quando você está em um lugar do espaço onde não imaginaria estar, com um robô que era de alta tecnologia quase uma década atrás, acredita que não terá problemas com informação. Mas a verdade é que eu não estava entendendo nada.
Lembro dos tiros. Lembro de estar agachado e procurando minha arma. Lembro de Craig sair correndo atrás do homem alto e de levar um grande soco do gorila.
E depois estamos amarrados em uma sala escura.
Pela janela podemos ver as estrelas lá fora. Significava que estávamos fora de orbita. O gorila entrou por uma porta desmaterializada a nossa direita, logo atrás dele entrou o sujeito que estava no aquário. Ele entrou com seu sobretudo preto, botas de militar e sentou sobre a cadeira em nossa frente.
Ele disse:
— Um robô e um humano foram a um aquário.
E disse:
— Só falta o rabino e a piada está completa. — Ele tinha um sotaque estranho, como se falasse para dentro, ou estivesse com algo na boca. — Soube que estão procurando um pato. Soube também que seu XL47 está desativando. — Apontou o revolver para Craig enquanto me encarava.
Eu disse:
— Sobre o pato, fato; Sobre ele ser meu XL47, errado;
Craig disse:
— É, bom… eu quem cuido dele, então basicamente é meu humano.
O homem então apertou algo na nuca e linhas apareceram em seu rosto, de repente a face estava sendo dividida em três e abrindo-se mostrando um crânio de metal com LEDs no lugar dos olhos. O sujeito disse:
— É um ótimo bichinho de estimação.
Craig me olhou. E disse:
— Bom, o que deseja de nós? Falou com firmeza na voz levemente metálica, pela primeira vez me perguntei de quem era aquela voz, já que ele era um robô, a voz devia ter sido gravada por alguém. Um estagiário, um dos técnicos ou apenas um dublador contratado.
— Certo. — Disse o homem. — Vamos direto ao ponto. Vocês apenas estavam no lugar errado na hora errada. — Ele se levantou e as cadeiras em que estávamos sentados começaram a flutuar e seguir o homem. Passamos por tuneis largos onde podíamos ver diversas salas com pequenas janelinhas. No caminho uma dessas salas estava cheia de água e lá dentro a moça com corpo de peixe nadava. O Homem dizia:
— … sou um colecionador de espécies. Faz muito tempo que venho capturando todos os tipos de seres para expor em minha coleção. — Passamos em frente outra sala onde pude ouvir alguns granados. Paramos na frente dela.
Craig disse:
— Eu sei quem você é.
Os dois se encararam por um momento, então o homem sorriu e disse:
— Ali dentro, tem o que você deseja, e aqui fora, tem o que desejo. Faremos uma troca. Deixo que veja o pato e em troca você me dá seu humano.
Craig me encarou.
Eu comecei a rir. Então Craig disse:
— Ok, pode ficar com ele.
Faltavam apenas dezoito minutos.
Eu gritei coisas, como “o que?” e “Está ficando louco?”; minha cadeira pousou ao lado do homem, ele soltou as fivelas que seguravam Craig. Faltavam Quinze minutos.
Craig se pôs em pé, caminhou na direção do homem e estendeu a mão para fecharem o acordo. Eu me balançava e pulava com a cadeira em sinal de protesto, dizia coisas como “como pode fazer isso?”
Os dois apertaram as mãos, deram um abraço. Craig empurrou minha cadeira para o lado e eles riram disso, o gorila acompanhou a risada e bateu suas enormes mãos na parede.
Então teve esses dois rápidos disparos, o gorila caiu no chão com a cabeça aberta soltando faíscas, seus braços balançavam aleatoriamente, o homem foi atingido no olho e a lateral de sua cabeça explodiu em pedaços. O corpo ficou parado e o som da voz saía de algum lugar que repetia suas últimas falas em pausas travadas.
As minhas fivelas se soltaram. Olhei para Craig e ele estava sorrindo.
Gritei alguns palavrões que havia aprendido em Sorb, o planeta curvado.
— Vamos embora. — Ele disse.
Eu disse:
— Espere. — Faltavam sete minutos. — Não quer ver o pato?
Craig sorriu. Virou- se e continuou caminhando, bateu nas esferas iluminadas que eram seus olhos e disse:
— Visão de raio-x. — ele sorriu. E repetiu — Visão de raio-x — E esse foi o último sorriso que vi do meu amigo.