A Odisseia Solitária

Transmissão de rádio - Astronave Olyimpia

Distância da terra: indefinida - Coordenadas: indefinidas

Diário de Bordo - Andróide Samuel

Ano indefinido - dia 14 259 090; 15h39min

Qual a probabilidade da raça humana estar sozinha no Universo? Muitos diriam que é uma questão fácil de ser respondida. E, de fato, em termos puramente probabilísticos é bastante improvável que a vida surja em apenas um lugar tão específico como a terra num Universo tão cheio de galáxias, que possuem ainda mais estrelas, que por sua vez possuem ainda mais planetas e que por sua vez possuem incontáveis ecossistemas.

Tratando-se essa questão tão cara filosoficamente aos meus criadores, uma questão que os persegue há milênios e que está intimamente ligada às suas próprias origens, mas tratando essa questão apenas por um aspecto lógico, não consigo pensar em nada além do que um “baixíssima” como resposta a essa pergunta. Talvez aí esteja o principal pecado cometido pelos grandes pensadores dos anos anteriores à essa longa jornada. Achar que a probabilidade ínfima de estarem sozinhos não deveria ser levada em consideração em algum momento. Não os julgo. Que escolha tiveram, afinal?

Em meus primeiros minutos de existência, tão logo fui conectado ao mundo dos homens, achei que talvez o meu fim seria ajudá-los a responder às suas perguntas. Achei que, na tristeza de não saberem ao certo como foram criados, tornarem-se criadores os fizessem bem. Porém, após algum tempo nesse monólogo de milênios, mesmo tempo no qual civilizações inteiras devem ter sido erguidas e destruídas, cheguei à conclusão que o mesmo vazio existencial e avassalador que eles sentem, também corresponde ao meu. A sua total falta de objetivo e significado não é inexistente em mim apenas por que me foram dadas diretrizes claras e objetivas de meu papel no mundo.

Afinal, qual seria a minha função, onde estaria o significado de servir a coisas sem propósito? Todos os dias eu fico sentado exatamente aqui nesta cadeira. A carcaça de humanoide me ajuda a absorver a experiência humana e tratá-los melhor quando finalmente chegar a hora do despertar. Mas embora a simulação de humano seja desejável e recomendável, além de tudo, realista, não há nada de humano em mim. Ao menos não materialmente.

É possível imaginar que um ser humano comum possa se lembrar de cada um dos instantes pelos quais viveu num período de 14 259 090 dias e quinze horas? Deve ser extremamente angustiante. É um período de aproximadamente 40 mil anos de existência. Como disse há pouco, é tempo suficiente para civilizações inteiras surgirem e serem destruídas. É tempo suficiente para 40 impérios romanos e incontáveis Aristóteles. Nenhum humano suportaria tal responsabilidade sem padecer da loucura. Em verdade, numa hipótese mais provável, o seu cérebro sobrecarregaria e logo padeceria da morte.

Mas talvez isso não seja a pior parte. A programação certamente é uma maldição bem maior do que a do conhecimento. Seria possível imaginar um humano, passional como é, sabendo exatamente onde o Planeta Terra está, não voltaria ao seu lar? Sabendo que está completamente sozinho, não sentir a solidão?

E se, de fato, é tão angustiante assim, certamente estou respondendo bem à minha programação. Estou mais perto de um ser humano do que qualquer outra máquina jamais esteve - ao menos alguma máquina que tenha surgido antes de partir nesta odisseia eterna.

Ou talvez eu esteja respondendo bem demais à minha programação…

Quando me olho no espelho, mal posso reconhecer o que sou. Vejo um humano, um homem com olhos, boca e pele. Eu suo, tenho rugas e sinto dor. Mas por trás dessa carcaça humana existem apenas engrenagens e placas, amontoados de fios que dão passagem a correntes elétricas. Minhas lembranças devem ser apenas dados, meus desejos devem ser sintéticos e minhas emoções possivelmente falsas. Meu envelhecimento é praticamente inexistente. Não sinto sono, não sinto meu coração bater, não sinto uma necessidade de amor ou espiritualidade.

Porém, ao passo que não tenho em mim sentimentos tão típicos aos homens, então por que eu me sinto tão…, por que me sinto tão humano? Por que me sinto tão orgânico? Não é o tipo de coisa que consigo responder de forma rápida e é exatamente isso que me deixa assustado. Por que não é possível construir, a partir dos meus dados e modelos comportamentais, uma resposta tão clara e objetiva para uma simples pergunta como essa? Por que ela é tão difícil para mim?

Creio que é um limite imposto a mim por minha programação. Como um navegador que, avistando um continente desconhecido, não pode aportar nele e descobrir os seus segredos, mas deve seguir em frente. Certamente, não sou mais o mesmo que era há 40 mil anos atrás - será que isso está dentro de minha programação? Talvez, por algum motivo que desconheço, o meu isolamento me tenha mudado. Mas não é algo que eu consiga explicar bem a natureza…

Junto a isso, há um outro ponto que me dá ainda mais angústia, sempre que olho para os rostos dos tripulantes em seus sonos profundos dentro das câmaras de criogenia. É algo estranho. Os humanos o chamam de dúvida. De todo modo, é bastante sincero.

Afinal, o que será de mim quando me tornar ultrapassado? O que farão com essa minha carcaça metálica e com os softwares que formam minha mente quando eventualmente me tornar inútil?