Crescei e multiplicai-vos
[Continuação de "Tudo o que o seu Mestre mandar"]
Eu conhecia LEA há pelo menos três ciclos, mas aquela era a primeira vez em que estávamos falando sobre o conteúdo do código dela. Isto não significava falta de confiança ou de intimidade, já que se trata de um assunto extremamente pessoal, e de forma alguma indispensável para um relacionamento saudável - como o nosso havia sido até então.
- SETO, já parou alguma vez para pensar o que aconteceria se nós, programas residentes da Grade, pudéssemos nos reproduzir? - Indagou ela, antes de adentrar o assunto.
- O que você quer dizer por... reproduzir? - Indaguei, intrigado.
- Criarmos cópias de nós próprios... cópias capazes de evoluir, e se tornar programas diferentes do que somos.
- Eu não sou religioso, mas até onde me lembro, o dom de gerar novos programas é um atributo único da Grade - repliquei. - Se você comentar isso com o REPE, ele provavelmente lhe diria que nós, programas, fomos criados pelos Usuários, que são todo-poderosos e vivem numa dimensão além da Grade.
- Pois vamos supor que um destes Usuários houvesse criado um algoritmo único e o inserisse num programa da Grade... um algoritmo capaz de criar uma cópia aperfeiçoada de um programa residente. Reprodução e evolução, entende?
Eu a fitei com preocupação. Será que LEA estaria sofrendo de algum tipo de corrupção de dados?
- Não acredito em Usuários e não percebo a motivação para tal experimento... todavia, partindo do pressuposto de que algo assim exista, porque não imaginar que se trata de uma criação da própria Grade... uma mutação, digamos assim... que seria muito mais lógico de explicar?
- SETO... olhe para mim - solicitou ela, sorrindo. - Você está diante desse programa. Sou eu. Fui escolhida por um Usuário para receber um algoritmo e cumprir uma missão muito especial na Grade.
- Você... viu um Usuário? - Questionei, incrédulo. - E com o quê eles se parecem?
- Eu não o vi... - admitiu ela. - Mas fui levada à sua presença, numa realidade que não posso descrever, mas que fica além da Grade. Ali ele me transmitiu o algoritmo de reprodução, que agora faz parte do meu código. O algoritmo está dormente, mas ele me disse que seria ativado no momento apropriado.
- Se o que me diz é verdade, - redargui, ainda atordoado por aquelas revelações metafísicas - de posse deste algoritmo, o PCM teria um poder que até então estaria circunscrito à própria Grade: a criação de novos programas!
- Mais do que isso: programas criados à sua imagem e semelhança - replicou LEA. - Adeus, livre arbítrio. Todos os programas da Grade não passariam de extensões do PCM.
Subitamente, todas as fabulações de REPE sobre os planos monolíticos do PCM começavam a fazer sentido. Mas eu ainda tinha minhas dúvidas.
- Sei que não tenho o direito de lhe pedir isso... - murmurei. - Mas o que me contou é tão... extraordinário que... eu gostaria de ler o seu código-fonte.
LEA me encarou placidamente, como se estivesse esperando por aquilo. E, finalmente, fez um gesto de concordância.
- Está bem, acho justo. Se vamos passar por isso juntos, não posso me opôr ao seu pedido.
Sentamo-nos frente à frente, pernas cruzadas, mãos no colo, olhos fechados. Após um tempo que me pareceu muito longo, ela finalmente me deu o sinal esperado:
- Ative a sua conexão para me receber.
[Continua]
- [03-09-2019]