Nasce um herói?

Bem, tudo começou naquele temporal. Chovia muito, o céu escureceu rápido, raios e trovões agitavam o céu e acompanhando tudo um vento furioso varria a terra. Péssimo tempo pra sair de casa. Infelizmente eu, apresado, não quis esperar a tempestade passar e encarei tudo armado de um guarda-chuva.

Péssima ideia.

Talvez fosse pelo guarda-chuva, sua armação de metal não fazia dele a melhor companhia numa tempestade elétrica. Bem, por conta do guarda-chuva ou não, lembro apenas do clarão, de uma dor lancinante e de tudo se apagar, depois disso só acordei no hospital.

Disseram que eu sobrevivi por pouco, fiquei desacordado por horas e provavelmente meu coração chegou a parar. Fora isso ganhei uma tatuagem incrível, uma queimadura elétrica na forma de um relâmpago que atravessava todo o meu peito, os médicos disseram que o nome daquilo era figura de Lichtenberg, a descarga elétrica desenhava na pele o mesmo caminho que faria no céu. Também teria que fazer um acompanhamento com um cardiologista, pois havia riscos de desenvolver alguma arritmia, e também com um neurologista, porque em alguns casos as pessoas atingidas por raios poderiam desenvolver convulsões, amnesia, paralisia ou, como brincaram comigo, “habilidades neurológicas incomuns”, como sentir cheiros estranhos por exemplo. Ou seja, tava ferrado.

Entretanto os dias passaram e eu não senti nada demais, a vida corria normalmente, ou quase, durante certo tempo virei uma espécie de atração na cidade, muita gente me procurava, inclusive jornalistas, mas com o tempo até isso passou.

Achei que esse incidente não traria maiores consequências, até uma manhã onde coisas estranhas começaram a acontecer.

Antes de tudo é bom salientar que a tatuagem, a tal figura de Lichtenberg não desapareceu como diriam que iria desaparecer, nem ao menos se esvaneceu, estava do mesmo jeito há meses, eu já a considerava parte de mim, mesmo aquilo sendo estranho.

E falando em coisas estranhas, vamos voltar àquela manhã: eu acordei, como sempre fazia, virei para o lado, como sempre fazia, mas dessa vez cai, fui direto pro chão. “Normal, acontece”, vocês diriam, bom, o problema aqui é que cai de uma altura de 3 metros, eu não estava na cama, estava encostado no teto! Sim, no teto, de alguma forma eu flutuei e dormi lá a noite toda, levitando. Felizmente, não sei como, não sofri nenhum arranhão, e pensei ser aquilo um sonho. Todavia aquilo se repetiu nas manhãs seguintes, até eu conseguir controlar o fenômeno e conseguir flutuar em segurança até o chão antes de despencar.

Fui aprimorando essa nova habilidade em segredo, flutuava pela casa e com o passar dos dias fui mais ousado. Esperava ficar tarde da noite e flutuava pra fora de casa, evitando as luzes da cidade pra não ser descoberto. Ah, como é bom voar! Fui aprendendo a manobrar, a desenvolver velocidades mais altas, ia cada vez mais longe. As vezes colocava uma mochila nas costas e amanhecia na praia ou na montanha. Viajar nunca foi tão barato!

E lembram quando eu disse que não havia me machucado quando cai?

Pois é. Descobri que por mais que tentasse, eu não me machucava. Só para experimentar me permite cair de alturas cada vez maiores, e mesmo assim nenhum arranhão. Aliás, essa coisa de alturas cada vez maiores me fez descobrir também que eu não dependia mais de tanto oxigênio assim, pois voava a altitudes de 2, 3, 4 ou 5 mil metros numa boa e me jogava de lá, uma vez abri até uma cratera no chão, rsrs.

Nenhum objeto conseguia penetrar minha pele também, havia caído sobre árvores e sobre estruturas metálicas, quebrando as primeiras e amassando as segundas. Descobri que também era imune ao fogo.

A superforça também foi uma descoberta natural, fui percebendo que minha força crescia gradualmente. Tive o hábito de fazer exercícios com cada vez mais peso, como os praticantes de musculação, e vi meu físico se desenvolver. Como na academia eu ia aumentando os pesos, numa semana uma pedra, na outra um automóvel, na seguinte um caminhão, depois locomotivas, tentei levantar um navio supercargueiro, eu estava conseguindo, mas descobri que ele não estava tão vazio assim como eu supunha e tive que deixa-lo no lugar com seus tripulantes confusos.

Ah, é bônus! Minha capacidade raciocínio, memória e inteligência também cresceram. Aos deixava a calculadora de lado, fazia cálculos cada vez mais audaciosos de cabeça, ao ponto que meu passatempo preferido ao lado de voar era resolver intrincados problemas matemáticos, resolvia em segundos. Aprendi novos idiomas como quem aprende o nome de alguém, virei fera no computador, podia hackear qualquer coisa.

O mais estranho foi um dia sair na rua e ouvir vozes. “Pronto, distúrbios neurológicos, estou ficando louco, nada do que é bom dura pouco!” imaginei. Mas não era o caso, eu estava era ouvindo o pensamento das outras pessoas! Caramba, que loucura. De início rolou uma certa curiosidade, mas será que aquilo seria ético? Ético ou não a verdade é que na maior parte do tempo as pessoas ocupam a mente com banalidades e dei graças por conseguir ir controlando essa habilidade e escolher quando e de quem eu podia ouvir os pensamentos, mas confesso que era uma habilidade que podia vir a ser útil.

Ousei mais. Será que da mesma forma que ouvia pensamentos, eu também poderia influencia-los? Fui testando aquela ideia aos poucos, já tinha me tornado inteligente o suficiente pra entender bem a psicologia humana e não queria causar danos, fui fazendo pequenas sugestões. Assim plantei na cabeça da minha vizinha a ideia de separar do marido nocivo dela, fiz um adolescente babaca que passava pela minha rua sempre cumprimentar as pessoas e, o maior feito, fiz meu cachorro aprender a sentar só com a força do pensamento. Eu sou demais!

Era isso, milhares de raios caem no mundo todos os dias, muitas pessoas são atingidas, muitas morrem, outras sobrevivem com sequelas. Eu era um dos sequelados, mas por algum capricho do destino, ou estatístico, eu fui agraciado com superpoderes, não poderia reclamar.

A pergunta agora era o que fazer com aquilo? Deveria viver com aquilo em segredo para meu único benefício? Deveria ser uma espécie de Super Homem e fazer o bem no mundo? Ou um supervilão?

Era um dilema e tanto. Eu tinha a capacidade de ajudar muita gente boa e mandar muita gente ruim pro cemitério. Ou poderia tomar o controle do mundo, governar com mão de ferro e trazer a paz mundial na base da porrada. Será que seria chamado de herói, de Deus, ou de demônio?

Eu penso nisso e minha cabeça dá voltas. Por isso gosto de sair voando pra relaxar. É difícil imaginar que o destino daquele planetinha azul lá longe está nas mãos de um cara simples como eu que um dia levou um raio na cabeça. Ah Terra, como é linda e indefesa vista daqui de cima!

Daqui de cima pois estou sentado numa colina aqui na Lua, pensando se volto aí pra baixo para salva-los, ou conquista-los.

Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 29/05/2019
Reeditado em 29/05/2019
Código do texto: T6659997
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