O Cordeiro de Seis Patas

- Uma intervenção? Fala numa intervenção... militar? - indagou incrédulo o inspetor Wilmer Hasselblad. Do outro lado da mesa, o almirante Gwenaël Fourier, do Estado-Maior do Corpo de Monitores, balançou afirmativamente a cabeça.

- Apresentei a situação em Moka-III para os dirigentes da Federação Galática, e eles concluíram que intervir militarmente talvez seja a única solução neste caso - por mais horrível que isso possa soar - justificou-se o almirante, num tom quase de desculpas.

A conversa transcorria no interior do asteroide Beha-7854, utilizado como base de apoio da IV Frota do Corpo de Monitores, no sistema triplo Thylulyht, Braço de Órion da Galáxia.

- Vamos recapitular - sugeriu Hasselblad, respirando fundo. - Os halakianos alegam terem sido insultados, como espécie, pelos nelvi, nativos de Moka-III. Se os nelvi não se retratarem, - e eles se recusam a fazê-lo - os halakianos ameaçam incinerar Moka-III e tudo o que estiver nele.

- Esses foram os termos que usaram, e sabemos que possuem os meios técnicos para cumprir a ameaça - admitiu Fourier. - Portanto, na minha análise, teremos que lançar um ataque preventivo contra as bases do Império Halakiano próximas de Moka-III, para dissuadi-los de levar essa loucura adiante.

- Os halakianos já foram advertidos de que estão infringindo as regras de boa convivência intergalática, suponho - ponderou Hasselblad, juntando as palmas das mãos como numa prece.

- Naturalmente - acedeu o almirante.

- E qual foi a ofensa que consideram punível com o genocídio?

Fourier cruzou os dedos sobre a mesa.

- Bem... os nelvi os chamaram de "animais fedorentos". Todos os halakianos, sem exceção.

O inspetor fez uma careta.

- Pesado... muito pesado... talvez não ao ponto de justificar incinerar um planeta e seus habitantes, mas exigiria um pedido sincero de desculpas. Algo que, como afirmou, os nelvi não estão dispostos a fazer.

- De modo algum - concordou o almirante.

- Terei que ir à Moka-III - decidiu-se Hasselblad.

- Ótimo, inspetor! O mesmo cruzador que o trouxe aqui, poderá levá-lo lá... e espero que tenha sucesso em sua missão.

- A outra alternativa é uma guerra galática - retrucou Hasselblad, cenho franzido.

* * *

Moka-III era um planeta terrestroide ligeiramente menor do que a Terra e menos denso, o que se traduzia numa gravidade de apenas 0,7 g. Os nelvi, classificados como ELMR, eram seres que lembravam grandes caranguejos takaashigani rosados, com seis longas pernas emergindo de um corpo couraçado em formato de gota d'água. Respiravam oxigênio, embora seus antepassados fossem criaturas aquáticas. Hasselblad foi recebido por Naa'othoka, ministro para assuntos extraplanetários do governo nelvi. Como os nelvi se comunicavam entre si por um complexo sistema de estalidos, o uso do Tradutor Universal entre espécies era obrigatório.

- Vim até aqui para tentar entender porque vocês foram arranjar uma querela justamente com os halakianos, que são conhecidos em toda a Galáxia pelos seus maus bofes - declarou o inspetor sem meias-palavras.

- Os halakianos precisavam ser confrontados com sua própria feiúra - redarguiu Naa'othoka, fazendo uma sinfonia de estalidos que eram traduzidos em palavras pelo Tradutor Universal. - A Galáxia deveria estar agradecida pelo nosso sacrifício.

- Sacrifício é a palavra certa - anuiu Hasselblad. - Os halakianos estão se preparando para incinerar o seu planeta com torpedos de fusão. E, para impedir isso, o Corpo de Monitores talvez seja obrigado a entrar numa guerra que ninguém, em sã consciência, desejaria.

- Não estamos pedindo o sacrifício de ninguém, só o nosso - retrucou com firmeza o ministro.

- Por que estou com a impressão de que vocês tomaram essa atitude suicida de caso pensado? - Indagou secamente Hasselblad, braços cruzados.

O ministro ficou em silêncio.

* * *

Ainda no hiperespaço, no caminho de volta para Beha-7854, o inspetor pediu uma ligação para Dozamaghor, comandante da VI Frota do Império Halakiano no Braço de Órion. A tela do vidicom nos aposentos de Hasselblad iluminou-se, revelando uma cabeça cônica, cinzenta, com dois olhos rasgados e bem abertos, e uma boca que lembrava um esfíncter, no pescoço curto. A forma nativa de comunicação dos halakianos eram assovios modulados.

- Comandante Dozamaghor? Eu sou Wilmer Hasselblad, inspetor de primeira classe da Pesquisa Colonial, Federação Galática. Gostaria de saudá-lo em nome de todos os povos civilizados da Via Láctea.

Pelo tom dos silvos de Dozamaghor, ele não estava nada satisfeito.

- Wilmer Hasselblad, da Federação Galática! Espero que não tenha me ligado para implorar pela vida daqueles vermes de Moka-III!

- De forma alguma, comandante Dozamaghor do Império Halakiano. Estou lhe comunicando, em primeira mão, que estive em Moka-III e estou plenamente convencido da justeza do seu pleito.

Dozamaghor parou de silvar por um minuto, tomado de surpresa.

- Como é que é?

- Os halakianos estão cobertos de razão, é isso o que estou lhe dizendo. Os nelvi merecem mesmo serem extirpados da Galáxia.

- Então, a Federação Galática não irá nos impedir de fazer justiça? - Indagou Dozamaghor, triunfante.

- Melhor do que isso - replicou Hasselblad calmamente. - O Corpo de Monitores da Federação Galática irá aplicar a punição. Os halakianos não precisarão deslocar uma única nave para isso.

- Vocês... vocês vão destruir Moka-III em nome do Império Halakiano? - Indagou Dozamaghor, incrédulo.

- Claro que sim, comandante Dozamaghor. A não ser, claro, que os nelvi façam um pedido formal de desculpas, que foi a condição que vocês estipularam para não incinerar o planeta.

- Você está blefando, Wilmer Hasselblad, inspetor de primeira classe da Pesquisa Colonial da Federação Galática! - Rugiu o halakiano.

- Agora, é o senhor quem está me ofendendo - retrucou Hasselblad com um sorriso irônico.

* * *

Mesmo sem entender o porquê, o almirante Fourier seguiu as instruções de Hasselblad sem questionar. Em poucas horas, os cruzadores pesados da IV Frota do Corpo de Monitores emergiram do hiperespaço e posicionaram-se em órbita de Moka-III, seus torpedos de fusão prontos para serem disparados contra o planeta indefeso abaixo. O ministro Naa'othoka foi contatado e um ultimato lhe foi dado: ou apresentava um pedido de desculpas em nome dos nelvi aos halakianos, ou Moka-III seria destruído.

- Mas nós somos membros da Federação Galática! - Protestou o ministro.

- E estão criando problemas para todos os demais integrantes - retrucou Fourier. - Preferimos destruí-los, do que arrastar a Federação para uma guerra inútil contra os halakianos.

Naa'othoka fez silêncio por alguns instantes, antes de murmurar:

- Nós vamos pedir desculpas aos halakianos.

* * *

E após retornar com sua frota para o abrigo do asteroide Beha-7854, o almirante Fourier encontrou-se com Hasselblad para um café com croissants numa das cantinas usadas pelas tripulações aquarteladas.

- Sabemos que eu não iria disparar os torpedos sobre Moka-III, mas os nelvi... ou ao menos o ministro Naa'othoka... parecem ter acreditado que isso poderia acontecer - declarou o almirante, mordendo um croissant.

- O motivo que apresentou era suficientemente plausível, almirante - arguiu Hasselblad, enquanto bebericava seu café. - A destruição de Moka-III em troca da paz na Galáxia. E, sendo feita por nós, perderia todo o sentido para os propósitos dos nelvi.

Fourier tomou um gole de café antes de indagar:

- Então os nelvi armaram essa confusão com os halakianos para serem incinerados por eles? Propositalmente?

- Sim - assentiu Hasselblad, colocando a sua caneca sobre a mesa. - E apenas os halakianos fariam sentido na execução da sentença, pois eles representariam o "inimigo" para os nelvi, já que não fazem parte da Federação Galática. Claro, isso de "inimigo" é uma besteira sem tamanho... ao menos do ponto de vista da Humanidade Galática, já que não há uma disputa por recursos, crenças ou ideologias aqui. Aliás, melhor dizendo: a arrogância dos halakianos e sua crença de que são superiores às outras espécies da Humanidade Galática, cai como uma luva nas aspirações messiânicas dos nelvi; os nelvi acreditam que o seu sacrifício - ou suicídio, se preferir - os levaria a transcender o estágio da matéria e se transformar numa entidade coletiva superior, de pura energia. Num certo sentido, os nelvi também são extremamente arrogantes, pois consideraram que somente eles seriam bons o suficientes para redimir a Galáxia... como se nós precisássemos disso.

- Não, não precisamos - assentiu o almirante. - Mas imagina que poderão tentar de novo?

- Agora que sabemos o que os motivou, é extremamente improvável - ponderou Hasselblad. - Mas eu ficaria de olho, caso surja entre nós alguma outra espécie belicosa extragalática. Os nelvi podem vir-se tentados a repetir suas provocações...

Fourier pegou outro croissant, e antes de dar a primeira dentada, declarou:

- Se isso acontecer, serei o primeiro a avisar aos recém-chegados: "não ligue para os nelvi, eles são completamente malucos".

- [16-04-2019]