Carcaça de Sentimentos
Primeiro seu cérebro ficou mais agitado como num turbilhão de pensamentos, depois todos seus músculos e articulações viraram circuitos elétricos para aguentar o que estaria por vir.
Robert tinha seus trinta e poucos anos quando sentira mudanças em seu corpo.
Certas pessoas não observam mudanças repentinas, a aparência decerto fosse algo que não notassem, se tornara parte dele. Nunca repararam que se tornou um robô. Algo como se não tivesse fôlego de vida em cada célula do corpo.
Tudo fora substituído e em seu lugar o orgânico tornou-se mecânico, o sangue virara óleo de motor. Certamente o que restara de sua alma foi à escuridão como num precipício onde não há luz no fim do túnel. Ainda assim se lhe cortassem os pulsos nem sentiria dor.
Depois de inúmeras visitas a médicos especializados, ele queria obter respostas ainda mais concretas. Até que foi ao centro do universo a procura de um médico que resolveria seu problema, não havia mais possibilidades assim como circuitos lógicos, ele não poderia obter mais que duas respostas, SIM e NÃO.
Sim seria uma afirmativa de que ele sim teria a cura para o que sentia, e em negativa provavelmente ele voltaria de mãos abanando ou de aços abanando. A viagem que fizera durou certa de meia hora da estação especial, o ar estava seco e um pouco frio. E então ele estava descendo ao centro do universo, os pensamentos ainda permaneciam convictos por hora.
Avistou multidões de seres que jamais vira em terra.
Eles eram tão brilhantes como néons. Os prédios eram cinza como prata derretida.
Ao centro havia um prédio diferente, ele sabia que lá era o lugar. Aquele era o hospital universal da cura de todas as doenças universais, pelo menos acreditava nisso, já que vira jornais, revistas eletrônicas e milhares de livros falando a respeito do renomado hospital Lifeshadow.
Ele agora se encontra no consultório do Dr. Doença. Claro que seu sobrenome não era doença, o motivo desse apelido era que ele era um bom médico e descobrira a cura das mais difíceis enfermidades. Ninguém saberia que seu nome era Andrew Harper para ser franco. Mas ele não ligava muito se soubessem ou não o nome dele, tinha foco em seu trabalho um profissional assíduo não gostava de paparicos e muito menos jogar conversa fora, seu trabalho exigia rapidez.
Robert se sentou numa maca computadorizada. Nela havia milhares de eletrodos que fizeram todos os seus exames em alguns segundos.
Dr. Doença analisava os exames atenciosamente com seus óculos grossos numa prancheta eletrônica da pequena mesa prateada que ficava ao lado da maca onde Robert estava.
- Sr. Robert seus exames não possuem alterações significativas - disse o Dr. Doença rispidamente checando mais informações na prancheta. Dava para ver que ele estava um pouco nervoso, talvez fosse o dia corrido e os milhares de pacientes que ele teria que atender, mas quem perguntaria como ele estava se sentindo. As pessoas depois do século XXV se tornavam mais cruéis e menos amorosas.
– Tem certeza de que não está equivocado Dr. Doença, eu realmente vim por que você era o único meio em que eu acreditava que resolveria – falou os olhos distantes observando milhares de luzes na vasta cidade prateada. – Há algo que me falaram sobre eu estar me tornando rocha.
– É um sintoma comum da síndrome robótica.
No século XXV quando as pessoas começaram a ser mais frias e sem sentimentos foram criados robôs que interagissem com humanos. Todos eles acabaram pegando um pouco das características humanas e alguns de seus sentimentos logo que a inteligência artificial já existia depois do século XXI, o que foi um colapso para a raça humana. Um marco para a época em que estavam sendo estudados. Surgiu-se a síndrome robótica, mesmo que se tenha sangue humano algumas características em sua genética foram alteradas, alias a de todos nós, inclusive dos extraterrestres mais tardar no século XXX que eu me esqueci de mencionar.
– Será que possui algum medicamento que possa resolver isso? Há alguma solução viável para conter os nano robôs em meu DNA? – falou olhando o teto prateado na sala do consultório, as luzes eram de um azul pálido.
–Depende muito, o senhor por acaso já amou alguém?
Milhões de sinapses elétricas se formavam no cérebro mecânico. O fato do corpo dele estar ficando enrijecido é ele estar mudando as células e substituindo por tecidos sintéticos.
Sua mente trabalhava como um supercomputador, mas sua reação a fala era negativa. Assim que terminado o exame não havia nada do que ser feito. A não ser que ele descobrisse do que o algoritmo do amor era feito, o amor para ele era algo humano, e ele estava deixando de analisar esta hipótese. O pensamento de que ele pudesse amar o reprimia imaginou-se num beco sem saída.
Saiu daquele lugar que acreditava que pudesse ser a solução, mas se arrependeu, quanto mais arrependimento mais ia se enrijecendo, parecia ser uma espécie de mágoa.
O tempo estava tão nublado que começara a chuviscar, e os pingos minúsculos caiam no concreto acinzentado. Lembrou que adorava a cor cinza, sua cor favorita. Entrou no ônibus espacial direto a estação ferroviária de Londres. No caminho passou por constelações, sistemas solares, ele entendia tudo de astronomia menos do que era necessário para sua cura, à felicidade de que ele um dia nem sequer pôde conhecer.
Passou-se muitos anos até a chegada do novo século, ele se tornara um robô completo. Ele era funcionário de uma empresa renomada na criação de robôs que faziam reparos em aeronaves.
Apesar de existirem transportes aéreos Robert gostava de usar transportes tradicionais, veículos que andavam sobre a terra, este era o modo mais humano que ele tivera recordação, época que as petroleiras estavam quase para falir, mas apesar dele andar num carro terrestre seu combustível era diferente, ele se alimentava de lixo espacial, talvez esta fosse a única forma de matar a saudade que ele tinha dos carros movidos a diesel e a petróleo. Teve um deslumbre da fumaça percorrendo seu nariz, o cheiro da gasolina queimando. Tempos nostálgicos.
Numa das voltas para sua casa que ficara a alguns minutos da empresa ele resolveu depois de muito tempo encontrar alguma esperança de amor, onde no mundo havia somente máquinas e restos humanos, máquinas que com o passar dos anos eram retiradas os sentimentos humanos pelos quais os robôs adquiriram nos séculos.
Às vezes o que desejamos nem sempre vem à tona, mas naquele dia Robert descobriu não só o amor, mas a empatia pelos seres humanos, ou os dois ao mesmo tempo.
Seu carro atropelou uma moça que vivia nos becos da cidade de ferro. Foi uma trágica morte. A moça se chamava Evelin, era uma senhora de quase cinquenta anos, mas ainda sim, uma vida humana rara. Os humanos eram como ratos de laboratório, como pombos, lutavam para sobreviver, o engraçado é que a evolução humana deixou de existir depois que os robôs a desmistificaram.
Evelin morava com sua filha adolescente Mary (seu nome fora homenagem a Mary Poppins). Uma característica que ela herdou era que adorava cantar, mas naquele dia tenebroso ela mais chorou do cantou.
Robert levou Evelin junto com a filha ao hospital. Não havia nada a ser feito. No caminho ao hospital da cidade de ferro Mary nem sequer olhou para Robert. Ela compreendia que para a morte não há palavras e sim lamurias.
Chegando ao hospital eles a levaram para o necrotério. Alguns robôs a limparam e fizeram com que o corpo ficasse mais apresentável. A promessa de Robert à Mary era que ela teria um velório decente.
De repente depois de algumas horas na sala de espera Robert falou a garota que se ela precisasse de mais alguma coisa era para dizer a ele.
– Ela era tudo para mim Sr. Robert, você tirou uma parte de mim, compreende a gravidade disso?
– Eu sei que você deve estar péssima, mas mesmo que eu não tenha sentimentos queria que me perdoasse, me tornei tão frio que se eu amasse a minha vida eu iria chorar por você, mas lamento por sua perda.
Como ele poderia lamentar se ele era um robô, talvez ele estivesse programado a dizer aquilo, como um “Vai passar, é temporário”.
– Você deve estar falando isso por que nunca amou alguém, você é uma lata sem sentimentos, você é mais um produto criado pela inteligência artificial.
E saiu da sala para o necrotério. Antes de entrar para conversar com o legista veio até a direção de Robert e entregou um colar de sua mãe.
– Talvez você não seja culpado, tome este colar de minha mãe, por que eu sei que a dor é uma cor que passa. E sei que vocês não possuem sentimentos.
– Eu tinha sentimentos até me tornar o que sou hoje. É incrível dizer que vivi como humano, mas nunca amei.
Depois de todo o ocorrido passou-se dez anos.
Robert visitara a garota Mary que agora estava adulta. Seu sentimento de ódio ainda não mudara, mesmo que todas as coisas fossem esquecidas, talvez este seja o defeito do sentimento humano, naturalmente ele nunca perdoa, mas há exceções.
Robert dissera a Mary que já viveu muito tempo. Ele estava convicto de que Mary teria que mata-lo, não por vingança por que ele estava cansado. Seu corpo ultrapassado, esse seria seu fim, se não ele mesmo o faria. Marcou então um dia, o dia que a mulher teria que puxar suas engrenagens cerebrais e desativar o sistema nervoso elétrico. E assim foi feito. Mary chorava como naquele dia em que sua mãe morreu. O mais engraçado nesta história é que quando Robert morreu ele sangrou como um humano.
Aquele era o resto do sentimento que ele possuía , como na maioria das vezes a dor é uma cor que passa.
FIM.