A janela de Pandora - Capítulo 1 - Aula de História
No ano de 2056, a humanidade foi açoitada mortalmente pelo planeta Terra. O evento cataclísmico que dizimou dois terços da população mundial veio tão de repente que até mesmo as maiores nações do mundo sucumbiram ante a estrondosa onda de devastação que se seguiu durante meses.
Tempo suficiente para que quase toda cultura humana fosse apagada. Enchentes, terremotos e furacões fizeram sumir cidades inteiras do mapa. Quando a terra parou de tremer, do mar não vieram mais dantescas ondas e do céu o fôlego de sua ira fora retido, então o solo perdeu a vida, e os animais que sobreviveram morreram doentes ou famintos.
Assim, os últimos humanos precisaram aprender a cooperar para que tivessem alguma esperança de futuro, depois daquilo que posteriormente fora denominado de Janela de Pandora. A sociedade humana sobreviveu àquele momento, e com o passar dos anos, os sobreviventes construíram três cidades principais que serviriam de pilares, os memoriais de que a humanidade sobreviveu a sua hora mais sombria. Do fruto desta convergência entre os homens, surgiram as cidades de Atlas, na América Central; Ymir, na Europa; e Oko, na África.
No entanto, após cento e cinquenta anos desde o evento de extinção em massa, as gerações esqueceram-se dos valores deixados por aqueles que viveram no inferno que a terra era. Atualmente, o planeta está superpopuloso, as favelas e os movimentos rebeldes crescem, nossos recursos estão mais escassos dia após dia. Se não fosse por causa da Organização da Nova Terra (ONT), certamente estaríamos perdidos.
No alto da sala, um sinal de exclamação foi projetado. O fim da aula chegara.
- Não se esqueçam de sincronizar seus bio-relógios. Há atividade para a próxima aula. Avisou o holograma X-096-Marie, a professora da Academia de Engenheiros, em Atlas.
- É realmente um saco assistir a aula de história. A cada novo fato histórico que eles apresentam, sempre há uma divergência de datas. Algo muito estranho. Falou Absalão.
- Não começa, cara! Você como aluno prodígio dessa academia sabe que este é nosso último ano. Daqui a pouco vem a seleção profissional, mas antes de tudo precisamos jurar diante do Conselheiros nossa lealdade a Atlas. Jurar que faremos de tudo para sermos o próximo passo da humanidade e toda aquela conversa furada. Respondeu Nico, amigo mais próximo de Absalão e secreto rival.
O jovem Absalão deu de costas, se despedindo com um aceno curto de mão. – Até a próxima.
O campus da Academia de Engenheiros era muitíssimo grande, formado por um enorme quadrado de prédios, com um espaço verde no centro, um espaço dedicado aos melhores cidadãos, aos mais inventivos, a desenvolverem novas tecnologias ou aprimorarem as existentes.
Absalão era destaque do campus como melhor aluno de bioengenharia. Suas aptidões cognitivas fizeram-no desenvolver técnicas muito apuradas de manipulação genética. Ele ambicionava reverter a síndrome de Onkos, doença degenerativa que apunhalou seu pai e mãe, e provavelmente, em alguns anos, mostraria o fim daquele genial jovem também. A proporção de sua genética estar comprometida era de sete para dez.
O bio-relógio marcara quinze horas. Absalão sairia do centro de Atlas para visitar seu laboratório fora dos muros da cidade. A cautela dele estava em alta, já que além dos muros, nos burgos, cidades sem administração direta da ONT, a noção de ordem social estava pervertida por causa da constante falta de recursos básicos. Os seres humanos mostravam expressões terrivelmente instintivas por um pedaço de pão ou um gole d'água potável.
Naquele deplorável lugar, doenças simples, como gripes, matavam, pois as condições de saúde eram inexistentes. A pouca ajuda humanitária que chegava da ONT alcançava apenas os opifices, pessoas que cuidavam das indústrias de alimentos e dos núcleos de mineração que sustentavam a cidade de Atlas.
Numa de suas saídas, o jovem conheceu a pequena Gaia, garotinha franzina, desnutrida. Alguns cachorros lambiam a ferida aberta em seu braço, enquanto paralisada pela fome, estava ela caída perto de seu laboratório. Recolhendo-a, Absalão tratou de sua chaga, oferecendo comida e abrigo se ela trabalhasse com ele.
- Abra a porta, Gaia. Solicitou o acadêmico.
- Qual a senha? A voz de Gaia ressoou quase automaticamente.
- Não tenho tempo para brincadeiras, hoje tenho apenas duas horas para experimentar as novas cobaias. Visivelmente mal-humorado, ele respondeu.
- Sem senha, sem porta aberta. Respondeu ela.
- Maldita! Eu deveria tê-la deixado morrer naquele dia... A senha é "Anúbis gosta de chocolate". Respondendo-a.
A tranca da porta foi liberada. Ao entrar, a pequena garota pulou na frente de Absalão, que com uma tapa retribuiu as boas-vindas. Ele fez com que sua mão avermelhasse a bochecha da sua empregada.
- Estúpida, eu poderia ter sido assaltado! Não faça mais essa idiotice de senha. Irritado ele a repreendeu.
- Senhor, foram ordens suas. A menina respondia enquanto passava a ponta dos dedos na ardida pele do rosto.
- Que seja. Agora passe o relatório das últimas doze horas da cobaia HY-Z45. Eu quero avaliar se a doença retrocedeu. A ordenou.
O laboratório de Absalão ficava escondido entre os andares subterrâneos 5º e 8º. Com a herança deixada pelos pais, ele garantira um lugar na Academia através do hall familiar, uma formalidade de direitos concedidos a pessoas ilustres da cidade, e também geria ações da World Technologica, a gigante empresa de tecnologia que revolucionara a humanidade nos últimos setenta e cinco anos. Ele representava os acionistas minoritários, conseguindo boas somas de bitcoins para manter-se e as suas pesquisas. De fato, ele não precisava de nenhuma seleção profissional, como pensara Nico.
No entanto, todos os equipamentos de seu laboratório eram provisão de compras no mercado negro. A D-bitcoin tinha sido uma meda virtual criada para desfazer o monopólio do Bitcoin, já que esta fora uma das razões para que 65% da população caíssem em pobreza, 20% em extrema pobreza, 10% manter-se na classe média, e somente 5% como ricos ou muito ricos, sendo estes os descendentes dos primeiros sobreviventes, as três principais famílias, Bilderberg, De Caux e os Ferrers.
Cada um controlando um tipo de indústria, os Bilderbergs dominam a tecnologia voltada aos alimentos, os De Caux são responsáveis pela extração mineral e pesquisa de energia. Os Ferrers lideram a indústria bélica. Embora não haja proibições no desenvolvimento industrial, cada um pode envolver-se na área do outro, porém o Pacto de Mercado da Nova Terra estabelece que um tributo seja pago caso haja perdas ou interferências em suas respectivas indústrias, o que gera, secretamente, uma concorrência mortífera entre as famílias.
A família de Absalão teve proximidades com a família De Caux, por isso recebeu apoio durante o estabelecimento da cidade de Atlas, na América Central.
- Centro de memória do bio-relógio. Dia 14 de Setembro de 2207. Registro falado dos experimentos na cobaia HY-Z45. Os traços de personalidade parecem estáveis. A cognição não pareceu afetada pelo soro K-239.T, a solução iônica também parece melhorar a capacidade muscular, que apresenta tonicidade dez vezes maior, se considerada a última conferência. Os batimentos cardíacos estão levemente alterados. Pupilas reagem à luz. O cobaia apresenta quadro seguro para retirada do sedativo. Gravou Absalão.
- Gaia, eu preciso que você traga um garoto. Ele precisa ter entre doze e quinze anos. Traga-o aqui, preciso testar meu novo soro, e, por favor, não seja incompetente. Mandou o jovem cientista.
A mente de Alberto vagava pelos confins do espaço. Sem noção de geografia, de hora, tudo era apenas escuro. Vez ou outra uma luz surgia diante da sua consciência. Vozes ecoavam e falavam coisas incompreensíveis. - A fraqueza passou, seus músculos estão mais fortes e há desenvolvimento de resistência a dor.
- A última coisa que lembro foi da menina morena que me deu um pedaço de carne com pão e um copo de suco. Estava faminto. Meus irmãos? Mamãe? Preciso voltar para casa. A cobaia pensou.