O abrigo

Aconteceu alguma coisa lá fora e nós não sabemos o que foi, não temos a menor ideia do que houve. E agora estamos aqui presos nesse lugar. Somos seis pessoas muito assustadas, que há algumas horas atrás não se conheciam, e que agora tem que conviver e dividir um espaço não muito maior que uma quitinete de trinta metros quadrados.

1-O primeiro dia

Eu moro sozinho em uma casa que agora parece grande depois que minha esposa foi embora levando o carro e até o cachorro. Estava arrumando o porão, que é o lugar que eu mais gosto da casa (é aqui que muitas vezes me escondo quando quero pensar), quando escutei uma gritaria vindo do lado de fora. Subi para a sala da casa com a intenção de ver o que estava acontecendo. Abro a porta da rua e deparo-me com várias pessoas gritando, correndo em minha direção e invadindo minha casa.

- Entra, entra ... deixa a gente entrar. – Falava uma moça jovem de cabelos castanhos empurrando uma cadeira de rodas com uma senhora já grisalha.

Várias pessoas entraram dentro de minha casa, algumas me empurrando. Uma confusão dos diabos. – Ei, que merda é essa? Que porra é essa já? – Gritava alto, mas ninguém me escutava.

- Cala a boca e entra logo, cara. Está todo mundo morrendo. Entra, entra ... – um homem alto e forte falava isso já me empurrando para o lado..

Isso tudo assustou-me muito e corri em direção ao porão. Gritei para que me seguissem. Descemos rápido as escadas, o sujeito alto e forte ajudou a moça que empurrava a senhora na cadeira a descer com ela. Um senhor idoso esbarrou em um rapaz vestindo uma camisa com nome de banda de rock e terminaram caindo os dois. Todo mundo desceu as escadas do porão com pressa e desespero.

Ficamos todos calados por alguns minutos. Rapidamente os gritos que eu escutava antes deixaram de existir. Agora no porão só dava para escutar a respiração das pessoas.

- Meu Deus, o que está acontecendo? – Alguém falou gemendo baixinho.

- Cala a boca, porra! – Falou o mesmo sujeito que havia me empurrado.

- Vamos ficar bem quietinhos pelo amor de Deus. – Alguém falou com muito medo.

Mais de uma hora ficamos em silêncio. Percebo que há um medo muito grande no ar. Eu estou com medo. Todos nós estamos assustados. Olho ao redor e vejo que cinco pessoas entraram comigo no porão. Fico imaginando o que estará passando pela cabeça de cada uma dessas pessoas.

- Acho que agora já dá para falar um pouco. Mas vamos falar bem baixo. – O sujeito idoso que havia tropeçado e caído junto com o rapaz da camisa de rock havia falado isso.

- É, acho que já dá para falar sim ... – O sujeito que me empurrou concordou com o sujeito idoso.

Pergunto o que foi que aconteceu. – Eu estava aqui nesse porão quando escutei uma gritaria dos infernos, sai para ver o que era e vocês todos entraram gritando assustados. Alguém sabe me dizer o que diabos está acontecendo aqui?

- Camarada, eu estava indo para universidade e vi todo mundo correndo. Como não nasci ontem sai correndo também. Mas não vi nada, não.

- Eu vi! Tinha uma espécie de nuvem baixa, veio não sei de onde. Só sei que vi algumas pessoas evaporarem ... a porra da nuvem só tocava e elas evaporavam. – Era o cara que me empurrou quem falava isso.

- Era um tipo de nuvem bem baixa e fininha que avançava muito rápido. Eu tinha parado para enviar uma mensagem no celular quando vi um monte de gente correndo ... Todo mundo que era tocado por ela simplesmente evaporava. Só sei que corri e corri muito... – O mesmo cara continuava a falar.

- Preciso ligar para minha mãe. Tenho que saber como ela está ... por favor me digam o que foi que aconteceu? – Falava a moça dos cabelos castanhos que empurrava a senhora na cadeira e rodas.

- Calma, garota! Está todo mundo na mesma merda. E tenho quase certeza que essa porra de nuvem se espalhou por toda a cidade. Caramba, eu só ia assistir uma aula chata na universidade ... e agora estou aqui. – O rapaz da camisa de rock falou com certa raiva contida.

Éramos seis pessoas assustadas e com medo de algo que nem sabíamos nomear. Todos escondidos em um porão. Seis pessoas que não se conheciam até poucas horas atrás e que agora se refugiavam em um porão. Alguma coisa aconteceu lá fora e nem sei como é que ainda estamos vivos.

- Acho que está na hora da gente se conhecer um pouco, já que vocês invadiram minha casa gritando e correndo como um bando de loucos. Meu nome é Artur e já moro nessa casa há cinco anos.

Todos se entreolharam meio que desconfiados e também com alguma má vontade. Mesmo assim terminaram apresentando-se.

- Tudo bem, vamos lá! Meu nome é Leandro e sou policial. – Ah, então é policial o sujeito que me empurrou ...

- Meu nome é Alex ...eu só estava indo para a aula ...

- Sou Isabel, sou enfermeira e estava dando um passeio com Dona Augusta quando começou a correria ... meu Deus.

- Sou escritora e essa jovem aqui cuida de mim de vez em quando. Como vocês podem ver, tenho certa limitação de movimentos. Ah, meu nome é Augusta Stein.

- Sou Pedro, alguns me chamam de Pedro Pastor. Eu estava indo pegar uma pasta com documentos na minha congregação quando uma fumaça bem clarinha e rala começou a se espalhar rapidamente pelas ruas ...

2- O segundo dia

Quando o fenômeno ocorreu eram pouco mais de cinco da tarde, passamos muito tempo calados evitando falar uns com os outros, cada um perdido em suas preocupações. Tentamos falar pelos celulares com parentes, amigos e conhecidos, mas não conseguimos. A cada minuto olhamos os celulares esperando mensagens de video e áudio tão comuns no WhatsApp, mas até agora nada. Talvez as antenas geradoras de sinal tenham sido destruídas, sei lá.

Dormimos no porão mesmo, ninguém ousava sair dele por medo de simplesmente evaporar. Como saber se a casa toda não estava cheia da nuvem mortal? Dormimos pelo chão, menos a senhora escritora que dormiu em uma espécie de divã que eu guardava e que adorava sentar nele para meditar.

- O que vocês acham que aconteceu? Será que isso foi só aqui ou foi em escala muito maior? – Perguntei não esperando obter muitas perguntas pois percebia o semblante tenso e angustiado das pessoas.

- Não tenho a menor ideia do que pode ter causado isso, só queria ir embora daqui. Pode ter sido alguma espécie de atentando terrorista, sei lá. Deu até saudade das aulas da universidade agora ... deve ter todo mundo evaporado por lá.

- Não acho que foi atentado terrorista coisa nenhuma, nunca ouvi falar de uma arma que evapore as pessoas. Não acho que exista algo assim. Só faltava ser um ataque extraterrestre ... Não sei o que foi que causou tudo isso e nem sei porque ainda estamos vivos. – Leandro falava mas para si do que para os outros.

- Fico pensando porque nós escapamos, será que isso não é uma espécie de provação? Um desígnio divino?

- Calma padre! Não tem porcaria nenhuma de provação! O que tem é que eu acho que houve um maldito ataque de algum tipo e que um monte de gente morreu.

- Sou pastor e não padre! Filho, sei que você é policial e tem a tendência a achar que tudo pode ser uma violência, mas ...

- Dá um tempo, pastor! Que merda de provação é essa que para acontecer tem que matar um monte de gente? Eu só ia para a porcaria de uma aula não ia para provação nenhuma!

- Calma gente! Agradeço muito a Deus o fato de estar viva ... se Isabel não fosse mais rápida com a cadeira de rodas ... mas vamos manter a calma e tentar nos manter unidos e pensar em uma alguma coisa para fazer.

3-O terceiro dia

O terceiro dia no porão chegou e com ele uma preocupação terrível: o que seis pessoas iam comer e beber? Quando entramos aos trancos e barrancos no porão haviam lá dois pacotes de biscoito, algumas garrafinhas de chocolate e uma garrafa de água. Estavam lá apenas porque não queria ter que subir toda hora para pegar coisas para beliscar. Eu estava lá curtindo uma tristeza horrível por causa de Elaine quando tudo começou. O chocolate liquido, os biscoitos e a garrafa de água foram consumidos rapidamente. Agora contemplávamos a fome.

- Eu estou morrendo de fome, gente! Tem quase dois dias que não como nada. O que nós vamos fazer? – Alex falava isso e olhava para o policial.

- Acho que podemos aguentar mais um pouco ... acho extremamente arriscado ir lá fora – Leandro era um homem alto, de voz forte e com uma presença física que impunha respeito.

- A gente pode aguentar um dia ou dois, mas e depois? Vamos comer o fígado uns dos outros? Lá em cima minha geladeira e a dispensa estão com bastantes coisas. Acho que deveríamos arriscar subir e pegar algumas coisas.

- Acho muito arriscado. E se a sua casa estiver cheia da nuvem? – Percebia-se o medo ainda muito forte em Isabel.

- Sair e morrer ou ficar e morrer de fome? É uma decisão não muito difícil porque o fim é um só, a morte. Será que não há um meio de vermos como está lá em cima?

- Dona escritora acho que sei como podemos ver lá fora. Mas aviso logo que não vai dar para ver muita coisa. A gente abre um pedacinho da porta do porão e coloca um celular com a câmera ligada por alguns segundos e depois tira rapidamente. Acho que vai dar pra saber se tem alguma coisa de nuvem na casa.

4 – O quarto dia

Quando vimos que não havia nuvem nenhuma em minha casa rapidamente saímos do porão e vedamos todas as janelas e portas. Passamos muita fita adesiva, pano e algodão até termos certeza de que estávamos bem protegidos do que poderia estar lá fora. Ia aumentar o calor também ... e eu nunca comprei ar-condicionado, só temos ventiladores. Mesmo assim nossa confiança aumentou um pouquinho depois disso.

Nós tínhamos energia e havia comida para vários dias, em compensação não havia um único sinal de celular. Todos nós tínhamos alguém lá fora que gostaríamos de saber notícias. Percebo que já não olhamos os celulares com a mesma frequência de antes. O que isso significa? Ligamos a televisão e também não há nada, apenas alguns canais, que parecem operar no automático, mas estes só mostram documentários e mais nada. Em pouco tempo eles devem sair do ar também. Que coisa absurda, olhar um programa na televisão que mostra um mundo que talvez não exista mais. Isso tudo dá uma sensação muito estranha ...

5-Os outros dias

Já estamos aqui há doze dias. Nesse período já nos amamos e nos odiamos. Nós estamos isolados do resto do mundo. Como é que pode ser isso? Um pequeno grupo de pessoas isoladas em uma casa que fica no meio de uma cidade de milhões de habitantes. Um absurdo tudo isso. Nunca fui muito religioso, mas as vezes pego-me concordando com Pedro Pastor quando ele começa a falar em “plano de Deus” e essas coisas. Sei que não podemos ficar aqui para sempre.

Usamos a mesma estratégia do celular no porão. Filmamos rapidamente o que havia lá fora da casa e verificamos que parecia não haver vestígio da nuvem assassina. Mesmo assim o medo impera entre nós. Sair de um porão para ficar dentro de uma casa é uma coisa, mas sair para um espaço aberto onde não temos como saber o que existe na próxima esquina é completamente insano. Decidimos que vamos permanecer na casa.

Agora já passaram mais de trinta dias. Nossa comida está muito escassa. Já racionamos o que podíamos. Éramos só eu e minha esposa, a dispensa tinha comida para alimentar duas pessoas durante um mês mais ou menos, mas agora nós somos seis pessoas. Ninguém mais olha celular algum, a televisão mostra apenas estática e nós precisamos dar um jeito de sair daqui. Temos que sair.

Agora não há mais comida e sabemos que a energia em algum momento vai falhar. Colocamos em votação e decidimos, por unanimidade, sair de minha casa. Está claro para todo mundo que uma morte rápida na nuvem é melhor do que uma morte lenta e agonizante pela fome.

Fizemos um minuto de orações e reflexões, abrimos a porta e saímos ...

Nada aconteceu. Andamos o quarteirão inteiro onde minha casa está situada e não vimos nuvem nenhuma e também não vimos uma única pessoa, sequer um gato ou cachorro. Entramos em várias casas, supermercados e igrejas. Não encontramos ninguém. Mesmo assim temos esperança de que outras pessoas possam também ter escapado.

- Tem gente que trabalha em porões de shoppings, em instalações subterrâneas ou que estava em cabines pressurizadas de aviões, sei lá. Tenho certeza de que há mais pessoas. – Falo com a voz embargada e alguma esperança no coração.

Nossa cidade está um caos. Existem incêndios em vários bairros, tem um monte de carros destruídos, ruas alagadas e muita sujeira. É uma cidade mais do que abandonada. Andamos por vários quarteirões explorando o que tinha para ser explorado. Já estamos há uma semana ao ar livre e não há o menor sinal da nuvem assassina. Acredito que a nuvem chegou de repente e se espalhou de maneira tão rápida que as pessoas não tiveram a menor chance.

Estamos em mais uma andança pela cidade. Estamos tensos e angustiados, pouco falamos entre nós. Sentamos para descansar e comer alguma coisa em uma pequena praça quando vemos, dobrando uma esquina, um pequeno grupo de pessoas. Eles também nos veem.

Percebo que nesse momento uma lágrima cai de meus olhos ... não estamos mais sós.

Temos uma longa jornada pela frente, existe um mundo para reconstruir. Não sei como será esse novo mundo ... mas espero que ele seja um pouco melhor do que aquele que deixamos para trás.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 21/03/2018
Reeditado em 08/05/2018
Código do texto: T6286653
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