Tretas de namorados

Wilmer Hasselblad, analista de primeira classe da Pesquisa Colonial, preparava-se para sair do apartamento, quando ouviu o som de uma porta sendo fechada no corredor lá fora. Parou com as chaves na mão, e inclinou a cabeça para olhar pelo olho mágico (uma notável demonstração de tecnologia convergente, mesmo estando à mais de 2 mil anos-luz de distância da Terra). Parada em frente à sua porta, com ar de embaraço no rosto, estava Elsa Julep, a simpática vizinha de cabelos brancos que morava duas portas à direita dele. Após um momento de indecisão, ela tocou a campainha. Hasselblad suspirou, e decorrido um intervalo que lhe pareceu conveniente, abriu a porta.

- Sra. Julep? - Indagou, tentando parecer surpreso.

- Inspetor Hasselblad... - ela começou a dizer.

- Ainda não... - sorriu ele. - Analista Hasselblad. Inspetor, quem sabe, um dia...

- O senhor estava de saída - ela declarou em tom retórico, parecendo decepcionada.

- Na verdade, sim, senhora Julep. Mas, por favor, me diga o que deseja.

Ela juntou as mãos, como que em súplica.

- Posso entrar? Um momento que seja?

- Naturalmente! - Disse ele, esforçando-se por parecer despreocupado. O fato é que não gostava de receber visitas, principalmente visitas inesperadas - mesmo considerando que Elsa Julep era uma das poucas criaturas humanas em que poderia pôr os olhos no planeta inteiro. Onava-II não era um destino turístico muito procurado por terrestres, e provavelmente fora exatamente por isso que Hasselblad o escolhera para passar as férias. Mas precisamente por conta disso, as criaturas de classificação DBDG como eles, eram agrupadas pela autoridade planetária em áreas residenciais específicas, onde as suas especificidades podiam ser melhor atendidas em conjunto.

Indicou uma poltrona de braços e a visita sentou-se, visivelmente agradecida pela recepção.

- Aceita um café? - Indagou ele em tom protocolar.

- Não! Não quero atrapalhá-lo mais do que já estou! - Exclamou ela, erguendo as mãos. - Tentarei ser breve.

Ele sentou-se em outra poltrona à frente dela, mãos cruzadas sobre a barriga.

- Do que se trata, senhora Julep?

- É o meu neto, senhor Hasselblad.

- A senhora tem um neto? Jamais imaginaria - comentou ele.

Embora não tivesse pretendido fazer um elogio, a vizinha pareceu encarar a observação neste sentido e abriu um sorriso.

- O senhor é muito gentil... mas, sim, eu tenho um neto. Ele está com 17 anos e acompanha a mãe, minha filha, que está desenvolvendo um trabalho de arqueologia com a autoridade planetária, na Península de Gazamaor...

- Interessante - respondeu sinceramente Hasselblad, juntando as palmas das mãos. - Mas o que houve com o seu neto?

O embaraço no rosto de Elsa Julep manifestou-se novamente.

- Bem, ele... brigou com a namorada.

Hasselblad separou as palmas das mãos, testa franzida.

- Senhora?

Elsa Julep inclinou o corpo para a frente, e sussurrou:

- Ela não é humana!

* * *

Mensagens escritas num ansível não transmitiam emoções, mas conhecendo quem redigia as linhas que estava lendo agora, Hasselblad podia imaginar a irritação do emitente, seu professor orientador, Matthias Kempf.

- É puro preconceito que muitos de nós, terrestres, temos de não considerarmos outras criaturas inteligentes como "humanas" ou "pessoas".

- Chauvinismo terrestre - digitou ele, de volta. - Mas enfim, o que a pobre senhora Julep quis dizer é que o neto estava namorando uma utwla, o que por si só já seria bastante esquisito.

- Agora você é quem está sendo preconceituoso, Wilmer.

- Desculpe, professor... mas os utwla são DBPR, não DBDG. Oh, tudo bem, são humanoides, possuem cabeça, tronco, dois membros superiores e dois inferiores. Internamente, as diferenças são enormes, como deve saber.

- Sim, mas são cobertos por um pelo curto, muito bonito, mesmo para olhos terrestres... e o que uma garota utwla está fazendo no sistema Onava?

- O mesmo que o garoto Julep: acompanhando os pais. Arqueólogos.

- E os dois adolescentes não tinham mais o que fazer, e começaram a namorar, suponho.

- Isso mesmo, professor. E aí, um belo dia, tiveram uma discussão qualquer por conta de um mal-entendido interespécies, ciúmes ou seja lá o que for. O certo é que depois desse dia, a garota sumiu e os pais tem sido reticentes sobre o seu paradeiro.

- A garota não apareceu mais?

- Não. Os pais continuam a trabalhar no planeta, normalmente. A minha vizinha veio com a ideia de que eles a podem ter assassinado e desaparecido com o corpo, para impedir que ela continuasse a ver o jovem Julep.

- A sua vizinha é louca, você sabe.

- É só uma terrestre assustada, professor.

- Wilmer, você está de férias... como se deixou enredar num caso desses?

Hasselblad teve vontade de escrever que os casos é que o perseguiam, mas em vez disso, digitou:

- Como faço para me livrar dessa situação e aproveitar o restante do meu descanso, professor?

A resposta tardou um pouco, e não foi pela distância em anos-luz que os separava. Comunicações via ansível eram instantâneas.

- Eu tenho uma teoria...

* * *

Chovia fraco quando um veículo automático de superfície o deixou em frente à casa térrea dos arqueólogos utwla, nos arredores de Hamati-Havo, a principal cidade onava da Península de Gazamaor. O sol laranja do sistema estava se pondo, mas uma das duas luas do planeta, a mais próxima, Soluy, brilhava em quarto crescente próximo ao zênite. Hasselblad fechou o casaco impermeável, subiu o capuz sobre a cabeça, e sobraçando o que parecia ser um grande molho de feno azul, dirigiu-se à passos determinados para a porta principal da residência. A porta abriu-se antes mesmo que ele tocasse nela, e viu-se perante Hee-Za'ahag, mãe de Hee-Mo'oagu, a adolescente desaparecida. Devia medir cerca de dois metros de altura - dez centímetros a mais do que Hasselblad - e possuía um corpo gracioso, em formato de ampulheta, com cintura bem marcada, coberto quase que inteiramente por um macacão prateado justo, pés calçados em botas cinza-pérola de cano médio. As partes não cobertas pelo vestuário - basicamente, mãos e cabeça, pareciam decepcionantemente terrestres: dois olhos pretos (com esclerótica amarela), nariz grego, boca de lábios cheios e marrons, duas orelhas, mãos de seis dedos longos. E a pele visível estava coberta por uma pelagem que lembrava pelúcia negra, quase azulada, mais densa em torno da cabeça. Hasselblad teve a impressão de que estava diante de uma pantera negra humanoide, algo que foi reforçado no momento em que a anfitriã abriu a boca para falar e ele viu uma boca com dentes pontiagudos, mas, sem caninos salientes. A voz, contudo, era estranhamente musical.

- Você deve ser o analista Hasselblad!

- Sim, sou eu mesmo... senhora Hee-Za'ahag.

- Muito gentil de sua parte em nos trazer "ajuijhun" - disse ela, fazendo um gesto para o molho de "feno" que Hasselblad sobraçava. Ele curvou-se e estendeu o feixe para ela, que o recebeu com uma meia reverência. Em seguida, disse-lhe que retirasse os sapatos e o casaco, e lhe estendeu um par de pantufas para usar dentro da casa. Devidamente calçado, ele pode finalmente entrar e viu que o pai, Hee-Am'marr, o estava aguardando, sentado numa poltrona de braços que mais parecia um trono. Hasselblad calculou que, de pé, o utwla seria uns 20 cm mais alto do que ele. Vestia o que parecia ser uma camiseta regata e calças largas, prateadas. Os braços, longos e musculosos, estavam adornados com braceletes de cobre. Pela expressão do seu rosto, não parecia muito satisfeito com a presença do terrestre ali.

- Analista Hasselblad! Que interesse tem a Pesquisa Colonial na minha família? - Inquiriu com uma bela voz de barítono.

Hasselblad sentou-se numa banqueta que lhe foi indicada, em frente à poltrona/trono de Hee-Am'marr.

- Esta não é uma visita oficial, senhor Hee-Am'marr. Na verdade, estou aqui representando a minha vizinha, a senhora Julep, avó de Brandon Julep, o... como direi... namorado da sua filha.

O utwla o olhou fixamente durante um tempo que pareceu excessivo, para finalmente explodir numa gargalhada surpreendentemente humana.

- Qual foi o termo que usou, analista... namorado? É isso?

- Desculpe se isso lhe soa ofensivo, mas foi a expressão que a senhora Julep utilizou.

- Então esse Brandon Julep achou que estava... namorando a minha filha? - O utwla parecia estar se divertindo imensamente.

- Novamente... foi o termo que a senhora Julep usou - desculpou-se Hasselblad.

A senhora Hee-Za'ahag, que até então apenas ouvira silenciosamente, fez uma intervenção.

- Hee-Mo'oagu realmente gosta do jovem Brandon, analista Hasselblad. Mas, talvez, não da forma que ele interpreta... não como um possível parceiro, se me entende.

- A reprodução seria obviamente impossível - ponderou Hasselblad.

Ao que Hee-Am'marr aduziu, sem o menor tato:

- Vocês terrestres são débeis e frágeis... mulheres utwla necessitam de homens utwla, grandes e fortes!

- Não vou discutir esses parâmetros, obviamente - apressou-se em dizer Hasselblad. - Mas sua filha decidiu afastar-se do jovem Julep ao entender que ele queria mais do que... bem, do que ela estava disposta a dar?

- Nós não a proibimos de vê-lo, se é isso o que está insinuando, analista - disse Hee-Am'marr num tom baixo, que fez lembrar a Hasselblad um gato começando a estressar-se.

- Por que não a chamamos aqui e desfazemos de uma vez esse mal-entendido? - Atalhou Hee-Za'ahag com sua voz musical.

- Faça isso - retrucou o pai.

A adolescente - cerca de 1,80 m de altura e muito semelhante à mãe - apareceu pouco depois, vestida com um simples vestido amarelo de alcinhas, corte terrestre, provável presente de Brandon Julep. Não parecia muito feliz em estar na presença de um estranho.

- Eu sou o analista Wilmer Hasselblad, Hee-Mo'oagu - apresentou-se. - Estou aqui porque o jovem Julep sente a sua falta, e não entende o motivo de ter se afastado dele.

- Brandon me falou que vocês, terrestres, possuem animais denominados cães, e que esses animais lhes são muito afeiçoados, correto?

- Sim, verdade.

- Pois é esse o meu sentimento em relação ao Brandon: ele era o meu bicho de estimação. Só que Brandon é uma pessoa, um ser inteligente. Não posso manter uma criatura humana ao meu lado como se fosse um animal. Ele possui sentimentos e aspirações que talvez eu não seja capaz de suprir ou corresponder.

O pai a olhou com aprovação, mas Hasselblad não estava muito convencido. Aquilo parecia um discurso ensaiado.

- E se... e se Brandon Julep quiser continuar sendo o seu bicho de estimação? - Indagou o analista.

Fez-se silêncio na sala. Dava pra ouvir os pingos da chuva caindo lá fora.

Hee-Mo'oagu fixou os olhos amarelos no pai e perguntou, num tom esperançoso:

- Você concordaria com isso, pai?

* * *

No banco de trás do transporte de superfície que o levava à casa dos Julep em Gazamaor, Hasselblad escreveu uma mensagem para seu professor orientador.

- É natural que os pais, mesmo numa outra espécie, queiram demover seus filhos de insistir num relacionamento sem futuro. Mas e quando isso se sobrepõe ao interesse das partes afetadas? É lícito intervir para romper o relacionamento?

A resposta não tardou muito.

- Adolescentes de espécies sociais como os utwla, não são tão diferentes assim dos nossos. Eles também sentem atração pelo que é proibido, e tentar restringir relacionamentos só reforça o desejo de transgressão. Não há qualquer possibilidade de que a garota utwla engravide, portanto, melhor que os pais permitam que eles mantenham contato até que, como ocorre com adolescentes, acabem enjoando da cara um do outro ou encontrem parceiros mais interessantes - dentro de suas próprias espécies.

Pelos vidros do veículo, a chuva escorria, mansa. Hasselblad olhou para a superfície lisa do ansível à sua frente e escreveu:

- Mas e se não for uma simples atração passageira? E se os dois quiserem realmente permanecer juntos?

A resposta demorou um pouco mais. Finalmente, surgiu uma linha na tela do ansível.

- Você sabe, Wilmer... a adoção sempre é um recurso válido.

- [26-11-2017]