Zombicide, a vida por um fio - O Hospital
"Um dia memorável pode operar grandes mudanças. Mas isso se dá com qualquer vida. Imagine um dia especial na sua vida e pense como teria sido seu percurso sem ele. Faça uma pausa, você que está lendo, e pense na grande corrente de ferro, ouro, de espinhos ou flores que jamais o teria prendido não fosse o encadeamento do primeiro elo em um dia memorável.”
Charles Dickens, Grandes esperanças.
Qualquer dia que possa servir de vínculo com aquele acontecimento na vida de Amy parecia ter sido preenchido por um vazio, um branco. E Assim também parecia proceder com as outras pessoas que se encontravam espremidas naquele quarto de hospital. Parecia ser em torno de oito ou sete pessoas, cinco homens e, não sabia se estava devaneando ou tendo alucinações, mas via duas mulheres iguais. Alguns expressavam medo e preocupação, outros conseguiam ser mais sérios, mas todos estavam confusos.
Amy reconhecera aquele lugar, sabia que trabalhava ali, mas era como se não conseguisse formular nenhuma lembrança específica de maneira concreta, muito menos o que estava fazendo ali deitada e quem eram aquelas pessoas, isso lhe causou uma ponta de desespero. Era uma recém-formada em medicina, embora ainda não se desse conta disso devido a amnésia; era jovem e tinha um espírito que não se encaixava na sociedade comum, odiava o convencional, e acima de tudo era extremamente desconfiada. Seu primeiro ímpeto foi levantar bruscamente, porém sentiu a cabeça dolorida e gemeu de dor. Alguém apareceu por traz, e tapou sua boca, fazendo suas sobrancelhas se juntarem numa expressão de indignação seguida de raiva. Amy virou ou olhos para enxergar o rosto que estava próximo ao seu lado direito
__ Shhhh... Calma ai mocinha, acabamos de acordar e você já quer nos fazer dormir de novo ?
Sussurrou a face sombreada por um boné.
__ Você está assustando ela...
Uma dos clones loira se aproximou e puxou a mão do garoto que tapava sua boca.
__ Oi... Não podemos te explicar agora o que esta acontecendo, até porque mal sabemos, mas você precisa fazer silêncio. Existem coisas... – e engoliu em seco, como que para não vomitar as palavras. - animalescas lá fora, e aparentemente estamos sozinhos aqui. Podemos morrer a qualquer momento se nos ouvirem, entendeu?
Ela usava óculos e tinha um cabelo encaracolado e armado, exatamente idêntico ao da garota que se encontrava encostada na parede, chorando silenciosamente. O que diferenciava uma da outra era unicamente os óculos.
Amy não conseguia encontrar sentido naquelas palavras, nada ali parecia ter nexo, mas por algum instinto decidiu não questionar, só não pode deixar de lançar um olhar de desprezo ao moleque que a havia recepcionado com tanta cordialidade.
Desceu da cama devagar e caminhou até a porta onde um homem gordo e barbudo, com cara de poucos amigos, deu espaço para que ela olhasse através de uma abertura na porta.
A visão era ainda mais atordoante do que os ruídos que ouvira quando acordou, havia sangue nas paredes e no chão, corpos mutilados. Ela não fazia a menor ideia do porque estava ali e do que havia acontecido, mas depois daquela visão sabia que algum tipo de guerra havia gerado aquela carnificina lá fora, e uma ponta de desespero desorientador começou a surgir em seu peito.
De repente viu duas pessoas andando no corredor, estavam feridas e mancando. Virou para a garota de óculos e tentou não elevar a voz.
__ Sozinhos?
A maioria deles olhou para ela com uma mistura de dor, pena e surpresa.
__ O que vocês estão esperando para ajudar aquelas pessoas?!
Após um momento de silêncio a garota encostada na parede começou a chorar um pouco mais ruidosamente.
__ Cara essas mulheres vão matar a gente.
Disse o garoto que Amy havia desprezado desde o primeiro momento em que acordara ali.
__ Pelo amor de Deus, fiquem quietos...
Pronunciou-se outro gordo, aparentemente mais jovem, que suava incessantemente.
Nesse momento um homem, que trajava roupas de padre e trazia uma cruz ao pescoço despertou de uma das macas para completar um grupo nada amistoso.
__ Se eu fosse você não utilizaria o nome de Deus em vão filho... Principalmente em tempos assim.
Todos se assustaram. Embora fosse uma entidade religiosa, o padre não parecia ter referencias nada angelicais. Era velho, e de uma magreza um tanto exagerada, parecia ter covas nas bochechas, olhos fundos, cabelo e barba comprida e um semblante sério, suas roupas estavam gastas e sujas. E naquele momento de tensão soou mais como uma assombração.
__ Era só o que me faltava... – Lamentou o rapaz que havia sido interrompido.
Tudo parecia ficar cada vez mais confuso para Amy, e sua cabeça parecia estar a ponto de ebulição; até que um policial com uma espingarda na mão resolveu intervir com uma voz baixa, porém firme e solene.
__ Quietos... Escutem, não sei quem são vocês e não sei por que estou aqui, a única coisa que sei é que existem pessoas lá fora que com certeza não são enfermas – E fixou os olhos em Amy, direcionando suas explicações aos questionamentos que ela havia feito minutos atrás – Aconteceu algo neste hospital, e aquelas pessoas lá fora estão alucinadas e perigosas. Nós que acordamos primeiro tivemos a lastimável chance de ver uma dessas criaturas devorando um homem no chão, e depois disso... Depois de um tempo este homem se levantou com a mesma aparência grotesca e feroz que os outros.
Ao ouvir essas palavras Amy paralisou em uma expressão de asco. Precisava de dez segundos para assimilar tanta anormalidade ou ia entrar em pane. Parecia que estava emergida em uma capsula. Estava ali, mas era como se não fizesse parte do mesmo mundo que aquelas pessoas paranoicas. Havia olhado em volta e reparou que algumas pessoas traziam armas nas mãos, algumas improvisadas, e havia outras no chão. A garota encostada na parede, além de chorar descontroladamente, usava patins e uma roupa de garçonete. Ela estava zonza e não sabia o porquê, será que ao invés de um hospital ela estava em um sanatório? Tinha quase certeza de que estava certa sobre a primeira opção, mas naquele momento pareceu incerta de tudo na sua vida, tudo estava em branco, ou melhor, tudo era escuridão, e mal sabia ela que aquele breu onde ela havia acordado se perpetuaria por muito tempo, e se tornaria cada vez mais escuro e profundo.
De repente um barulho torturador fez Amy despertar de sua transe. Rosnados, gemidos e socos na porta pareciam querer invadir a sala, e num instante tudo virou alvoroço.
__ Conseguiu o que queria fantasminha?!
Gritou o garoto insolente, sacaneando a pele pálida de Amy.
Todos ficaram em pânico. O silêncio e os sussurros foram substituídos por gritos, choro e pavor. Que diabo estava acontecendo naquele lugar? O coração de Amy parecia querer saltar de seu peito. Os homens tentavam segurar a porta. As duas clones se abraçavam, segurando um pé de cabra cada uma. O policial apontava freneticamente a arma para a porta. De repente, o padre, que até então parecia ser o único não desesperado, levantou-se e bradou.
__ Saiam da frente !
__ Fala sério, vai exorcizá-los padre ?
O garoto de boné parecia jamais se cansar das piadas. O padre simplesmente o ignorou.
O policial distribuiu as armas que estavam no chão para as pessoas que estavam desarmadas, dentre os itens havia até panelas, ele parecia muito hábil e centrado. Mas foi aí que as coisas começaram a desandar, não que já não estivessem desandadas, mas deste momento em diante o caos tomou proporções enormes tão rapidamente, que não houve se quer nem mais um minuto de pensamentos e devaneios para Amy.
Assim que pegou um machado o padre levantou da maca empurrando todos que estavam a sua frente. Ele parecia ter uma força sobrenatural.
__ Devemos aceitar aquilo que Deus nos enviou com prontidão !
E foi tudo o que ele disse até ter afastado todos da porta com seus braços que pareciam ser de titânio, e então abriu a porta do inferno.
Embora estivesse armado, apenas seu forte empurrão conseguia afastar por alguns metros as criaturas bizarras que se aproximavam. Eram dez pessoas no total perambulando pelo corredor, a maioria parecia ser pacientes, com uma camisola verde rasgada e extremamente ensanguentada. Dois tinham os aparelhos respiratórios ainda pendurados nos rostos dilacerados, e outros arrastavam mangueiras presas as veias dos braços, o que tornava a visão ainda mais torturadora.
O policial era o único com arma de fogo, e por sorte tinha uma mira muito boa. Oscilou, porém, quando deparou-se com uma criança, uma menina, que não fosse pela face demoníaca que trazia agora, seria muito bonita. Tinha traços muito delicados e rosto fino, contudo não tinha cabelo, estava completamente careca, e muito magra, deveria estar passando por um tratamento de câncer. Quando Amy a avistou, sentiu uma pontada, como se a conhecesse, como que sentisse obrigação de protegê-la. Ela quis gritar para impedir o policial de machucá-la, mas durante essas frações de segundos em que tiveram para analisar a garota, que embora aparentasse ter entre 10 e 12 anos, tinha força de um homem adulto, atacou o policial histericamente, agarrando sua blusa e tentando abocanhar seu peito, e então o grito de súplica de Amy a favor da garota, foi substituído por um de pavor. O policial por sua vez, ainda hesitou um pouco. Sempre fora um homem durão, mas naquele momento, embora não aparentasse, sentiu vontade de chorar. Imaginou quem era aquela garota, pensou na trajetória dela até ali, quantas coisas já deveria ter enfrentado na vida, o quanto teve de ser forte, para se transformar em uma aberração e morrer de forma tão grotesca. Infelizmente ele não teve outra escolha, sabia que se a evitasse por muito tempo, outra criatura ainda mais forte, poderia alcança-lo enquanto ele se ocupava em manter a garota longe, isso poderia ser fatal, e ele não tinha mais tempo para sentimentalismo. Empurrou a garota com muita força e explodiu-lhe a cabeça em um tiro certeiro.
O barbudo rabugento pareceu, de repente, muito habilidoso, ele trazia duas massas improvisadas nas mãos e desferia golpes certeiros naquelas pessoas sanguinárias. Se é que se podia chamar de pessoas. Batia tão forte que era possível ouvir os ossos das criaturas se quebrando, ele atingia tudo o que aparecia pela frente. Porém ficou horrorizado ao perceber que a maioria das criaturas, as quais ele havia acertado golpes capazes de matar na hora, estavam se levantando, com braços, pernas e até pescoços quebrados, e atacando novamente. Era inacreditável, uma fatalidade que parecia não haver explicação. De repente olhou para a garota careca que o policial acabara de matar. E entendeu tudo. Gritou para todos que por algum motivo inexplicável, eles só morriam com golpes na cabeça, e se quisessem resistir era assim que deveriam desferi-los. E assim executou duas das coisas que vinham em sua direção de uma só vez.
Amy assistia a tudo e não acreditava. Ela mesma, que minutos atrás defendia aquelas criaturas, agora não hesitava em atacá-los, pois tinha um pressentimento desesperador de que aquelas coisas estavam loucas para mordê-los, e pelo sangue e corpos mutilados no chão, não seria apenas uma mordida raivosa, seria uma completa refeição canibalesca.
De repente viram o padre voltando e atacando alguns zumbis que vinham atrás dele. Ele havia corrido até o fim do corredor, onde uma quantidade muito maior de canibais do que a que estavam enfrentando o avistara.
__ Você vai pro inferno padre maldito!
Rogou o barbudo das massas, aliviando o pensamento de todos naquele momento em que pareciam estar chegando perto de acabar temporariamente com a matança.
CONTINUA...