A mosca
Liberdade: palavra que não existia naquele idioma ou, caso existisse, tinha apenas um significado vago naquele mundo esdrúxulo e sem vida. As pessoas apresentavam passadas unânimes em toda a superfície da Cidade. Os telões mostravam apenas as mais sofisticadas propagandas das indústrias pertencentes ao Governo.
Questionar: verbo que não se podia conjugar naquele lugar. Na realidade, pode ser conjugado em apenas um caso particular: “Questionar a Autoridade é destruir a civilização”. As únicas formas de vida animais existentes em tal época eram vermes e pequenos mamíferos, que rastejavam ou viviam em tocas no solo ácido e sem vida; as plantas, por sua vez, já nasciam secas. Não tinham acesso a nenhuma gosta d’água em pH adequado para um bom desenvolvimento de suas raízes ou nem mesmo um fio de raio solar, visto que as nuvens negras e densas escureciam a tudo; ademais, tudo era um vazio e uma eterna penumbra.
Sentava-se próximo à varanda de sua casa, de onde podia observar toda a dinâmica fúnebre da cidade. O vento fraco não soprara tão belo, seus olhos não viam a linda paisagem de antes, em um tempo anterior àquele. Vestia-se com um vestido longo e sem cor, fumava um charuto – o que era contra a lei – e além disso, cometia o maior pecado de seu tempo: questionava e encontrava os erros mais precisos no sistema. E nem mesmo as grandes riquezas provindas das luas de Saturno ou os mais desenvolvidos trilhos movidos através de campos magnéticos seriam capazes de convencê-la de que tal civilização havia chegado a um nível mais alto do que as de outros tempos, outrora selvagens.
Ela desvirtuava a juventude, destruía os bons costumes, desobedecia a Lei Suprema, tentara mil vezes conjugar o verbo “questionar” ou dar um belo e verdadeiro significado à palavra “liberdade”. Ela não era nada mais do que uma mosca que chega a pousar em nossos corpos ou feridas quando estão fétidos. Uma mosca que incomoda dia e noite e nos indica a podridão do Ser.