Planeta Fungi, um caso de desequilíbrio e reequilíbrio ambiental

Antes o nome daquele planeta era apenas HZT5n1833bd:

- Parece mais nome de droga sintética experimental – observou meu amigo Oriega – dessas feitas para deixar a pessoa doidona, nóia, pra viajar mesmo, tá ligado?

Não, eu não estava ligado. Pelo menos não tão ligado como Oriega estava, aliás, como Oriega era. De todos os exobiólogos na Agência, ele era sem dúvidas o mais falastrão, o mais chato, o mais insuportável e, com toda certeza, a melhor companhia nas viagens interestelares.

- Lucas meu jovem – dizia ele – você tem que aprender que esses astrônomos não sabem batizar planetas, nem esses exploradores, o nome de um planeta se dá pelo que se encontra nele.

- Ou no caso – respondi – do que colocamos nele, como esse mundo a que vamos agora, planeta Fungi, não é muito criativo você tem que admitir.

- Bem, estavam querendo chamar planeta Champignon, planeta Shiitake, planeta Hiratake ou mesmo planeta Trufa, pelo menos Fungi não vai atrair nenhum amante da gastronomia, já pensou uma invasão de chefs de cozinha e porcos fuçando terreno desconhecido em busca de alguma trufa de sabor exótico?

- De qualquer forma não é atrás de iguarias que vamos não é?

- De jeito nenhum, nosso negócio é com os ursos. Malditos ursos!

Os ursos a que Oriega se referia não eram os grandes e belos mamíferos originados das latitudes setentrionais do planeta Terra, infelizmente, na verdade estávamos atrás de tardígrados, na verdade tardígrados invasores. Mas como Oriega bem disse:

- Na verdade nosso problema maior não são os tardígrados, são os exploradores, todos porcos, vão a um novo planeta como se fosse ao banheiro de um espaçoporto, não tem a mínima higiene, já mandei para a Agência algumas sugestões, mas eles ignoram todas.

Oriega tinha razão, o exploradores, e seus hábitos pouco higiênicos para dizer assim, estavam sem querer disseminando várias espécies terrestres pela Galáxia, uma delas era o tardígrado, e isso colocava em risco o frágil equilíbrio da exobiologia dos planetas recém-descobertos.

- Quero ver quando acharmos um mundo habitado por uma civilização inteligente – disse Oriega – aí sim o jogo vai virar.

Oriega tinha uma teoria, segundo ele planetas onde houvesse vida inteligente também abrigariam criaturas biologicamente mais diversas e mais resistentes, assim como na Terra, e essas criaturas teriam mais chances de colonizar ambientes alienígenas.

- Imagina só insetos extraterrestres passeando nas florestas de nossos mundos, ou lesmas gigantes alienígenas jantando nossas crianças! Seria o reverso da medalha!

- Bem, até agora isso não aconteceu – disse eu – por enquanto são nossas criaturas que estão jantando as crianças dos outros.

Esse era um fenômeno que acontecia em muitos mundos, criaturas terrestres transportadas como clandestinas colonizavam mundos alienígenas na primeira oportunidade, e às vezes isso trazia prejuízo para as espécies autóctones. Era o caso do planeta Fungi.

- Planeta HZT5n1833bd – comecei a ler meu relatório mais uma vez, já que estávamos próximos do tal planeta – denominado planeta Fungi depois que uma praga de fungos dominou o planeta, provavelmente levados por uma equipe de exploradores há seis anos padrão.

- E sabe como isso aconteceu? – perguntou Oriega, mesmo que eu dissesse que já sabia ele diria de qualquer forma, por isso fiquei calado e passei a ouvir seu discurso – Os babacas saiam para coletar amostras de solo e das formas de vida daquele planeta, formas de vida muito interessantes por sinal, organismos unicelulares gigantes, alguns de várias toneladas, o interessante nelas é que seu código genético era baseado em cadeias longas de polímeros, e não ácido nucléico como o nosso, e cada organismo, por maior que fosse, tinha apenas um filamento genético bem no interior de seus corpos formados por uma única célula gigante. Toda sua estrutura era formada por açucares complexos e proteínas, deveriam ser até comestíveis. E infelizmente o são.

- Os exploradores pelo menos não estavam interessados neles como comida não é.

- Não senhor, para aqueles idiotas rações sintéticas com gosto de mijo já basta, eles queriam algo que pudessem vender, como algum novo insumo cosmético ou coisa do tipo. Mas a grandes amebas de HZT5n1833bd, e era isso que eram, grandes amebas, eram bem desinteressantes. Bem, eles até que seguiram algumas normas básicas, esterilizavam seus uniformes e robôs, tinham cuidado para que a entrada na atmosfera do planeta produzisse bastante calor para esterilizar também o casco da nave, mas cometeram a pior das falhas! Uma das pazinhas que usavam para coletar amostras não era esterilizada, ela entrava e saia da nave à vontade, e daí sabemos o que aconteceu.

Sim, pensei comigo, sabemos o que aconteceu, uma simples pá de coleta de amostras contaminou um ecossistema alienígena inteiro. Qualquer ambiente onde o ser humano habita, seja um planeta, um continente, uma ilha, uma cidade ou o interior de uma casa ou espaçonave, é compartilhado com milhões de microorganismos, e dentro da nave dos exploradores não era diferente, esporos de fungos estavam em suspensão no interior da nave, e esses esporos adoraram os restos de matéria orgânica na pequena pá, e da pá eles foram para todo o planeta.

- Menos de seis anos padrão! – exclamou Oriega – Isso não é fantástico? Sem competição e com comida a vontade os fungos dominaram todo o planeta, e não apenas fungos, também algumas algas microscópicas, por isso aquele planeta agora está cheio de oxigênio, o suficiente para provocar combustão espontânea nas florestas de cogumelos que agora dominam o lugar, é tanto oxigênio que se peidarmos nossos rabos podem até explodir.

Exageros a parte ele estava certo, o percentual de oxigênio aumentava muito com a presença das algas, e isso, mais que os fungos, havia contribuído para alta taxa de extinção das espécies nativas, em sua maioria anaeróbicas, e contribuído para que florestas de cogumelos crescessem sobre a matéria morta que ia se acumulando. Resumindo, HZT5n1833bd estava apodrecendo, dando origem ao planeta Fungi e toda uma nova biota.

- E agora temos lá florestas de cogumelos – continuou Oriega – campos de algas e ursos d’água.

Nos aproximamos do planeta Fungi, um planeta de tamanho pouco maior que a antiga Terra, mas bem menos denso, com uma gravidade bem mais fraca. Ele rodeava uma anã vermelha, na verdade mais alaranjada do que vermelha, e era o único planeta com vida em sua zona habitável, ao longe o planeta não era muito interessante, era marrom esverdeado, coloração devida sobretudo ás algas e aos fungos que infestavam aquele mundo. Adentramos a atmosfera, iríamos pousar numa zona iluminada, mas próxima ao crepúsculo, pois a temperatura ambiente naquele mundo era bem alta, e a umidade também, ambiente perfeito para fungos, algas e tardígrados.

Ao nos aproximarmos da superfície contemplamos mais uma vez o milagre da vida. Os primeiros enviados da Agência não exageravam, eram florestas de fungos sim, muitos com vários metros de altura, semelhantes a árvores, com caules largos e vigorosos.

- É a baixa gravidade – disse Oriega – por isso crescem tanto. É pensar que tudo isso pode um dia ter sido parte da frieira do pé da alguém.

O topo dos cogumelos, por mais estranho que possa parecer, era coberto de substâncias verdes ou verde-azuladas.

- São as algas – Oriega não parava de falar, ele parecia pensar falando – algumas já desenvolveram simbiose com os fungos, produzindo líquens, outras só se aproveitam mesmo da estrutura do fungo para ficar no topo.

Sobrevoamos uma grande área, florestas de cogumelos e lagos verdes, água coberta de algas, até encontrarmos uma clareira formada por grandes cogumelos caídos, e pousarmos.

Vestimos os trajes espaciais, equipamos nosso pequeno veículo multiterreno, e saímos a campo.

- Me sinto engraçado – falei para Oriega – bem leve, sei que a gravidade não é tão alta, mas não imaginei que fosse tão baixa.

- Não é só a gravidade – ele respondeu – a densidade da atmosfera aqui é muito alta, estamos em meio a um oceano de ar.

De fato nossos movimentos eram um pouco lentos, mas nada que atrapalhasse, era questão de se acostumar e colocar a devida força para cada gesto, logo nos acostumamos e até achamos mais fácil.

- Agora onde estão nossos amiguinhos? – perguntou Oriega.

Logo logo avistamos a resposta para sua pergunta.

- Veja! – apontei – a mais ou menos duzentos metros a noroeste.

Nosso veículo seguiu nessa direção e, sem nos aproximarmos muito, nós os avistamos.

- São ursos d’água, sem dúvida. – disse Oriega.

E realmente ali eles quase faziam jus aos nomes, pois aqueles aram tardígrados bem grandes, alguns tinham quase um metro de comprimento.

- Como pode isso? – perguntei – Era para serem quase microscópicos.

Oriega riu.

- Mais uma vez a baixa gravidade – disse ele – e a alta densidade dessa atmosfera aliada a um grande suprimento de oxigênio, além do mais não há predadores, pelo menos por enquanto, então esses bichinhos podem crescer a vontade e se transformarem nesses monstrinhos aí.

De certa forma era interessante vê-los pastar. Pareciam na verdade mais com pequenos herbívoros do que ursos.

- Agora vamos ver o que essas criaturinhas estão comendo.

Os tardígrados pareciam não se importar muito com nossa presença, descemos do veículo e recolhemos algumas amostras, incluindo também um dos próprios animais. Depois de algumas horas voltamos para nave e para nosso laboratório. Não cometemos o mesmo erro dos exploradores e esterilizamos tudo, da mesma forma que fizemos ao sair, mas sabíamos, como bons biólogos que éramos, que talvez isso não bastasse, a vida sempre dava um jeito.

Horas mais tarde, debruçados sobre nossos equipamentos no laboratório, Oriega disse sorrindo:

- Lucas, veja que interessante – ele estava realmente feliz – esses fragmentos, as formas de vida desse planeta, ainda estão aqui, e em grande quantidade.

- Também vi isso – disse – Criaturas formadas por polissacarídeos, sem núcleo definido.

- Sim, parece que estão se adaptando bem ao novo ambiente, aliás, parece que estão até prosperando.

- Mas como isso é possível? – perguntei?

- Talvez seja simples, há mais oferta de alimento agora com as algas, elas são mais eficientes em transformar a luz dessa estrela laranja em energia química, e os fungos por sua vez são mais eficientes em converter essas novas moléculas em substâncias simples...

- ... que são usadas como alimentos pelas criaturas nativas – completei.

- Exatamente – disse Oriega - Elas não desapareceram com pensávamos, apenas se adaptaram. Talvez a chegada dos fungos e das algas tenha sido benéfica afinal.

- Mas, e os tardigrados?

- Bem, eles são os predadores aqui, fazem o papel de verdadeiros ursos afinal, se não fosse por eles talvez não existissem as florestas de fungos, eles se alimentam dessas criaturas unicelulares gigantes, impedindo que elas destruam as florestas de cogumelos.

- Então não há nenhuma praga nesse ambiente afinal.

- E o que parece, esse planeta está encontrando seu equilíbrio. Talvez daqui há alguns milhões de anos tudo isso evolua e encontraremos, melhor, outros encontrarão, tardígrados dentes de sabre por essas bandas.

- Bem, pelo menos será interessante, mas agora me diga uma coisa Oriega, como acha que os tardígrados chegaram, também pela pá dos exploradores?

- Bem, boa pergunta, acho que não, talvez estivessem presos ao casco da nave deles, talvez eles tenham feito um favor a este mundo o contaminando com os fungos, caso contrário os tardígrados teriam devorado toda a população de criaturas nativas. Pelo menos com os fungos e as algas elas puderam se proliferar mesmo com a predação do urso d’água.

Era interessante mesmo, o tardígrado, um animalzinho por quem ninguém dá nada e vive tranquilamente em qualquer jardim, era o bichinho mais resistente do planeta Terra, poderia bem sobreviver a um viagem interestelar agarrado ao casco de uma nave, mesmo exposto a radiação e ao vácuo do espaço, e por isso era uma praga em qualquer planeta, ali pelo menos ele poderia evoluir em paz.

- Estou satisfeito – falou Oriega – não foi uma viagem perdida afinal, mais alguns dias e já poderemos preparar nosso relatório para a Agência e partir.

- Sim, e sobrará tempo para avaliar aquele outro planeta, o tal planeta Tomjerry.

- Ah, aquela planeta está em avançado desequilíbrio ecológico. Também pudera, foi concebido como planeta agrícola, mas alguém deixou que um casal de ratos viajasse como clandestinos em uma nave.

- E outra pessoa teve a brilhante ideia de levar gatos para caçar os ratos.

- Sim, e agora aquele mundo é um jogo de gato e rato, só espero que agora não levem cães pra lá.

- A propósito – falei – o nome original do planeta era GTT2c7226bd, alguma ideia de por que o chamam de planeta Tomjerry?

- Bem – respondeu Oriega – parece se referir a Tom e Jerry, dois Deuses do mundo antigo, um era um gato e o outro um rato, mas não sou tão bom assim em história antiga como sou em biologia. Agora vamos ao trabalho, cada planeta há seu tempo.

Sim, cada planeta há seu tempo, e agora era hora de nos ocuparmos do planeta Fungi, o planeta Tomjerry fica para outra história.

FIM

Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 16/02/2016
Código do texto: T5545102
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