N-19 - Demônios Internos
Estamos no ano cinquenta e dois do novo calendário. Pouco mais de meio século após o cataclisma mundial, não é raro encontrar vestígios da vida humana corriqueira, por vezes até medíocre, que viviam as pessoas das gerações passadas. Depois de várias décadas, a sociedade humana começa a se reorganizar e se adaptar a nossa nova realidade. Faço parte de um grupo de buscas que tem a missão de encontrar sobreviventes ou objetos que ajudem a remontar os cenários e acontecimentos da nossa história já que, mesmo em meio ao caos, não podemos esquecê-la. A exploração diária me trouxe achados incríveis. Desde artefatos soterrados pelos escombros das cidades em ruínas, reservas de dinheiro de pessoas que achavam que isso serviria para alguma coisa no futuro, até relatos escritos, como este, achado no bolso da jaqueta dos restos de um homem, há muito morto com o crânio quebrado na parte superior, uma garrafa de vidro na mão esquerda e uma arma de fogo enferrujada na sua mão direita:
“Depois do incidente, começaram a me chamar de Ed, e desde então evito meu nome verdadeiro. Só me traz lembranças da pessoa que eu era, e das pessoas com quem eu convivia. É melhor Ed. Há quinze anos um vírus mutágeno se alastrou trazendo o inferno para a terra. Eu estava lá e ainda estou por aqui, mas, nada mais é como antes. Minha mente tem me pregado peças, ou... Será que a realidade pode ser tão absurda? Me nego a aceitar. Eu não estou falando dos infectados. Eles são explicáveis. A ciência explica tais aberrações. Sobre os seres do espaço também não há espanto, pois eu sou do time que acredita que somos insignificantes demais para sermos únicos num universo tão vasto. O que me atormenta é outro tipo de coisa. A natureza humana. Por exemplo, a minha natureza. Antes do ataque russo, eu era um contador, Imaginem. Um homem capaz apenas de fazer cálculos, preencher relatórios, etc. Céus! O que me tornei? Será que a necessidade de comer ou beber, pode nos transformar em monstros? Descobri da forma mais cruel que, sim.
Hoje eu estava dando cobertura a um pequeno grupo de saqueadores, quando fomos atacados por outra equipe, que dominava aquele território. Munições eram muito escassas, então os conflitos eram cada vez mais brutais, a base de facões, porretes, tacos de beisebol ou o que pudesse ser usado como uma arma. Retornávamos gradativamente à pré-história. Os vencemos com a selvageria necessária. Era um palco de sangue e suor como outros em que estive. Após amarrarmos os que restaram vivos, acendi um charuto que fumava um trago por vez. Charutos eram muito raros desde aquela época, então eu queria propagar o seu sabor por mais tempo na minha vida miserável. Já tínhamos o que queríamos daquele lugar, que eram apenas alguns suprimentos básicos. Matamos por suprimentos básicos. Era duro para um contador, ou para qualquer pessoa de boa índole que quisesse sobreviver. Seguimos de volta para nosso acampamento, sem saber que estávamos sendo seguidos. Um garoto. Ele era apenas um garoto. Esse menino nos seguiu e descobriu a nossa localização. Mas, sua inexperiência foi sua ruína. Um de nossos homens o avistou e gritou para que nós o perseguíssemos. Depois de cair numa vala, o pobre garoto não pôde fugir das minhas garras. O capturei sem dó, o encarando como o pior dos algozes e o conduzindo ao seu destino. Sentia um misto de fúria e desprezo, mas também o admirava pela sua coragem. O interrogamos para saber se alguém mais tinha visto onde nos estabelecemos, caso ele tivesse companhia, mas as respostas eram sempre negativas. Ele não corroborou com a hipótese de termos sido seguidos por mais alguém, mas mesmo assim tomei uma decisão infeliz. Olhei fixo em seus olhos e o chamei de inútil e intrometido, enquanto segurava uma lamina na sua garganta. Ele já se urinava e chorava, mas sem soluços e gritos e com os dentes cerrados, como um pequeno herói. A sua idade provava que ele foi forjado no caos do novo mundo. Nunca vivera numa era pacifica, sem bestas monstruosas e sem escravidão. Então, mais por medo e respeito do que por raiva e frieza, cortei sua garganta. Ele não merecia. Estava apenas lutando para proteger os seus, assim como qualquer um faria. Depois de mandar enterrá-lo, peguei uma garrafa de bebida, minha arma e vim até aqui onde, talvez, você me encontrou.”
Cada pedaço do quebra-cabeças encontrado, assim como esse relato, ajudará a remontar a história dos acontecimentos que nos assolam desde 2019, o ano zero da tragédia. A natureza selvagem do homem sempre o conduziu por caminhos tortuosos, deixando que interesses pessoais ou ganhos financeiros fossem maiores que o bem comum. Por isso acredito que meu trabalho seja importante, pois é necessário que a humanidade conheça a sua história, para que os erros não se repitam.