N-19 – O Subterrâneo
Em 2019 o ataque russo foi o estopim para a destruição da vida humana como conhecíamos. Quarenta e seis anos após o desastre, somente os mais fortes, os mais preparados, conseguiram sobreviver às dificuldades impostas pelo novo mundo. Um mundo devastado, sem recursos, onde as pessoas se organizaram em grupos e se digladiavam por suprimentos e território. A superfície se tornou inóspita demais, com uma diversidade de criaturas aberrantes que evoluíam suas características mais selvagens e seres de outros planetas, que nos exploraram e nos condicionaram a vidas subumanas. Milhares de pessoas migraram para o subsolo após a partida dos aliens, ocupando galerias de esgotos, metrôs e suas minas, procurando criar comunidades invisíveis às bestas da superfície e aos mercenários que saqueiam grupos menores.
Sob o solo, não temos templos, pois não há mais religião, nem temos delegacias ou supermercados. Vivemos à penumbra de luzes fracas de bicos de gás metano, que outrora também servira como combustível para a espécie que nos escravizou. A água mina das perfurações, vinda de leitos subterrâneos, mas não é de boa qualidade, devido à contaminação por metais pesados, usados no processo de mineração nas jazidas próximas. Em um determinado ponto dos túneis, cultivamos alguns legumes e hortaliças, abrindo claraboias no teto para a entrada de luz do sol e colocando grades para evitar a entrada das peçonhas que habitam a superfície. Nos túneis há pequenos roedores que não se contaminaram com o vírus e nós os caçamos para servir de alimento, pois são a única fonte de proteínas que existe nesse lugar. Construímos nossas casas com sucata do maquinário deixado para trás pelos aliens, unindo pedaços de chapa, cordas, arames e tudo o que teve serventia. Alguns membros mais habilidosos construíram instrumentos musicais rústicos, que regam as reuniões de diversão e descontração. À noite, os habitantes do subsolo se reúnem para jantar, conversar sobre o dia e contar estórias. Muitas são as lendas sobre setores que ficam abaixo do nosso, inexplorados. Os mais velhos falam sobre o espírito de um menino que caiu num fosso há anos atrás, que assombra o local. Também contam com ar de veracidade, que os túneis daquele lugar estão vivos, que respiram pelas vias das rochas e devoram aventureiros, os tragando para fendas subterrâneas muito profundas. Mas a mais assustadora é sobre uma fera que vivia nas minas, cuja respiração queima o que estiver ao redor, que os olhos acendem quando ele enxerga a presa e que dormia, enquanto aguardava o dia que seria despertada.
Certa vez, explorando os túneis, um dos habitantes encontrou um mapa das instalações das minas. Através desse mapa, conseguimos interligar alguns caminhos e encontrar equipamentos úteis, como ferramentas e armas. Mas, existe um setor, dois níveis abaixo do que vivemos, cuja porta foi lacrada com solda, onde nunca ninguém entrou. A imensa porta metálica cruzou o tempo enferrujando há anos e em alto relevo está escrito ‘Setor 27’, por onde escorre uma mancha viscosa. Pela espessura do metal, temos a impressão de que ela está ali para guardar algo que os aliens não queriam que saísse. Os adultos aconselham as crianças a não brincarem nas redondezas da entrada daquele setor, até mesmo porque fica muito profundo e não possui instalações de iluminação. Em um determinado dia, do que chamamos agora de ‘Ano quarenta e seis’, houve um pequeno tremor de terra e o gás, que é nossa principal fonte de energia, cessou. Alguns membros da comunidade que possuem conhecimento sobre mecânica, eletricidade, metalurgia e outras, foram convocados para tentar solucionar o problema e eu fui um desses convocados. Depois de conferir no mapa, mal podíamos acreditar que o encanamento seguia pelo setor isolado, que tanto temíamos pelas lendas que existiam sobre o local, onde nunca entramos para dar manutenção desde que as minas viraram abrigo para os humanos. Não tínhamos outra escolha, teríamos que, de algum jeito, entrar no Setor vinte e sete.
Vestimos roupas grossas de kevlar e capacetes totalmente fechados. Tínhamos que carregar tanques de oxigênio para respirar, pois o ar daquele lugar vedado há anos poderia estar com níveis tóxicos muito altos. Levamos também armas, ferramentas diversas e algum suprimento, pois não sabíamos quanto tempo levaria o conserto. Ao todo foram oito voluntários para a incursão. Quase todas as pessoas da comunidade foram à entrada do setor vinte e sete, para assistir a abertura daquela porta misteriosa, que causava tanto temor. Usamos thermite no aço maciço para criar uma abertura pouco maior que um homem. A escuridão nos aguardava.
Com lanternas e armas em punho, começamos a penetrar no túnel totalmente inexplorado. Alguns seres rastejantes, habitantes dali, começaram a se esgueirar pelas frestas das paredes. Aquele lugar tinha vida mutante, era necessário muito cuidado, pois talvez, nem todas as criaturas seriam inofensivas como aquelas. Procuramos seguir os tubos de cobre por onde fluía o gás, para assim chegar ao ponto supostamente danificado. O equipamento era pesado e nos locomovíamos lentamente. Inspecionando metro a metro, chegamos a um entroncamento dos túneis onde os tubos se dividiam. Então, resolvemos nos dividir em duas equipes para varrer uma maior área em menos tempo, já que o oxigênio era limitado. Segui com a equipe que tomou o caminho da direita. A escuridão parecia nos devorar com sua intensidade e nossos instintos nos alertavam cada vez mais, à medida que andávamos. Em certo ponto, o túnel culminou em uma galeria imensa cuja atmosfera era pesada, cheia de gases e chão lodoso, devido à umidade do local. Aquele lugar não tinha sido escavado por nenhuma máquina humana. Realmente, os seres alienígenas que exploraram aquele local, eram superiores em tecnologia. Não era possível enxergar muito adiante, então, procuramos nos concentrar no caminho que os tubos seguiam, quando finalmente descobrimos a ruptura. O gás vazava abundantemente, tornando a galeria inóspita e perigosa. Qualquer fagulha poderia dar ignição a uma explosão catastrófica. Todo cuidado era pouco. Um dos membros da minha equipe foi em busca dos outros para trazê-los ao local e iniciarmos os reparos.
Quando começamos os serviços, as máquinas fizeram algum barulho e curiosamente, logo após isso, sentimos um pequeno tremor no solo. Ficamos apreensivos, pois não tínhamos a mínima ideia do que poderia estar provocando aquele tremor. Continuamos o serviço, quando mais uma vez sentimos o chão se abalar, só que dessa vez eram abalos regulares e a intensidade se elevava a cada tremor. Aquilo era muito estranho, e ficamos em estado de alerta apressando o termino do serviço. De repente, um urro titânico ecoa na galeria, gerando um calafrio em nós, quando em meio à névoa química, surgiu um imenso lagarto, expelindo ar pelas narinas ossudas. Era um lagarto transmutado pelo vírus N-19. Uma criatura horrenda, com uns seis metros de altura, a cabeça meio descarnada e com escamas secas penduradas por baixo do pescoço, enormes dentes afiados que se cruzavam e costelas abertas, mostrando seus órgãos decrépitos, apodrecendo enquanto ele andava. A visão era aterradora. Era como ver a lenda que ouvíamos dos mais velhos, sobre a besta horrível que existia naquele setor, ganhar vida. Ele deve ter crescido ali dentro, já que não havia nenhuma entrada no local pela qual ele pudesse ter passado.
Recolhemos o equipamento o mais rápido possível, procurando não chamar a atenção do monstro e nos movemos discretamente, em direção ao túnel pelo qual entramos. Mas o instinto predador do animal era muito aguçado e o gigante mutante nos viu, investindo num ataque em nossa direção. Nossas roupas nos impediam de correr e não podíamos disparar as armas para não explodir a galeria com o gás que estava vazando, então eu tive a ideia de atirar minha lanterna para a direção contrária à nossa e por um momento deu certo. O monstro correu em busca da luz, pisando na lanterna com ferocidade e urrando assustadoramente. Enquanto ele estava distraido, nós continuamos a fuga andando o mais rápido que podíamos, mas a distração do titã durou pouco e ele novamente correu na nossa direção. Alcançamos a entrada do túnel, que era estreito demais para o monstro atravessar. Enquanto ele grunhia, guinchava e urrava tentando cavar, nós nos aproximamos da porta de aço, ultrapassando a mesma. Infelizmente ainda não havia acabado. O lagarto cadavérico estava conseguindo cavar o túnel para alargar ao seu tamanho e ele chegaria ali em questão de minutos. Rapidamente, tentamos começar a soldar de volta o pedaço de aço que cortamos com thermite, enquanto um de nós correu para alertar a comunidade. Mas, antes que pudéssemos encaixar a peça cortada, o imenso lagarto já raspava suas unhas na porta, causando um som de metal rasgando, aterrorizante. Depois de alguma luta, houve um silencio. O animal parecia ter desistido. Mas ele ainda estava ali. Era a concretização da lenda. Era uma coisa com que teríamos que lidar, cedo ou tarde.
Chegando de volta ao nosso setor, explicamos a situação para os habitantes e começamos imediatamente a criar um plano de ação para nos livrar daquele problema colossal. A ideia mais plausível era também a mais arriscada. Observando os mapas dos túneis, notamos que um deles levava a superfície. O plano seria entrar de volta no Setor vinte e sete, chamando a atenção do lagarto fazendo-o nos seguir para esse túnel, onde ele cavaria até a superfície. O problema seria sair à superfície e correr até a outra entrada. Ela ficava a uns cem metros da saída, mas tínhamos que arriscar. Novamente me voluntariei, e iniciamos a ação. Apenas um outro voluntário me acompanhou naquela missão insólita. Penetramos a escuridão mais uma vez, agora com a certeza do perigo. Equipamo-nos apenas com máscaras, armas pequenas e tanques de oxigênio, para facilitar nossa fuga. O túnel estava imenso devido à escavação do animal, com sistemas hidráulicos rompidos, eletro dutos quebrados e pendurados. Andamos até a galeria maior, onde começamos a procurar a entrada do outro túnel. Assim que o localizamos, o animal deu sinal de atividade. Mas dessa vez estávamos preparados. Gritamos e acenamos com as lanternas para chamar sua atenção e corremos em direção à saída que levava a superfície. Com toda a brutalidade de um titã, o lagarto correu em nossa direção, se chocando com a entrada do túnel no qual entramos. Escalamos rapidamente para o acesso à superfície e ele nos acompanhava, rosnando e cavando como uma máquina de perfuração. Ao chegar ao topo do túnel, continuamos correndo, quando o monstro finalmente emergiu da terra. A luz do sol parecia o cegar, ajudando a nossa fuga. Ele saiu do chão iniciando um trote estrondoso. Outras criaturas presentes na superfície começaram a segui-lo nos perseguindo, como se obedecessem a um mestre. Na superfície podíamos usar armas de fogo à vontade, então enquanto corríamos, atirávamos contra as criaturas menores para neutralizá-las, diminuindo a chance de sermos alcançados. No lagarto gigante, os tiros só serviam para deixá-lo mais irritado. Quando finalmente chegamos à outra entrada, alguns homens nos aguardavam dando cobertura com armas de grosso calibre. Entramos na abertura do túnel e o fechamos, para despistar o titã.
O monstro estava livre. Como numa profecia cumprida, a criatura havia despertado e partido, aterrorizando os da superfície e deixando o povo do subterrâneo em paz. E nas rodas de estórias que acontecem à noite, hoje eu conto esse episódio como mais uma lenda.