Projeto Cidade Transversal - Uma Noite Longa

- Silêncio. – Foi o que uma voz doce e gentil soou por entre lábios delicados para um vulto que estava ali próximo a sua cama. – Silêncio. Não pode ver que eu estou tentando dormir? – Falou assim não como uma pergunta propriamente dita, mas quase como uma afirmação.

O quarto donde estava era bem protegido para contra o frio que permeava lá fora. Uma nevasca caía na Cidade Transversal já fazia duas semanas e muitos dos transeuntes do lugar estavam em suas casas. Se bem que a palavra casa não poderia ser bem posta naquele lugar, mas, ainda assim.

Na verdade o vulto não estava fazendo barulho algum, estava apenas observando a dona daquela voz suave dormir até que ela acordou de supetão, como se algum tipo de pesadelo estivesse perseguindo ela, e, pelo visto, era aquilo mesmo e já fazia algum tempo.

- Droga. – Disse a moça, ficando sentada encoberta com um edredom. – Droga, droga, droga... será que eu não posso dormir em paz por um só segundo? Será que você precisa estar aqui até neste momento?

Tão pouco o ser vivia ali, do lado dela. Em suas andanças pela Cidade ela percebera muitos outros seres, as vezes humanos, as vezes anjos, as vezes alienígenas – estes últimos ela havia visto em filmes e seriados que alguém muito especial havia lhe mostrado a tempos – e outros que sequer ela poderia explicar perfeitamente, mesmo com os seus óculos.

O lugar, como nenhum outro, era por demais fantástico, era, sem sombra de dúvida completamente diferente de tudo aquilo que ela já havia visto antes, mas, ainda assim, ela se sentia como se fizesse parte daquele lugar, daquele mundo, daquele universo em particular.

E o ser? Era apenas a segunda vez que ele aparecia ali e, de tempos em tempos, a envolvia em seus braços sedosos como nuvens para que assim pudesse voltar para os campos dos sonhos diferentes dos pesadelos que lhe perturbavam. De verdade, sempre estivera ali, mas, visível, apenas duas vezes.

- Você não poderia ir perturbar outra pessoa? Por que você continua aqui hein? – E esfregou os olhos meio para tirar o muito do sono que não pudera recuperar. – Deve ter o que? Um milhão de pessoas por aí para você perturbar, mas vem logo me encher o saco?

A neve continuava a cair do lado de fora da casa onde ela estava. Era uma casa devidamente simples, dois quartos, uma cozinha, uma sala de estar e, até mesmo, uma garagem cheia de quinquilharias. Desde que chegara ali ficara naquele lugar e sabia que era seu, mas não conseguia entender o porquê.

Os seres que ali moravam naquela vizinhança a tratavam como se fosse uma velha conhecida de longa data. Sempre era um bom dia ali, uma boa tarde acola e uma boa noite e até mais ver. Era uma vida diferente de tudo que já havia presenciado até então e perguntara – para si mesma – se aquilo era uma espécie de paraíso.

Fora parada por um ser com um olhar duro e orelhas pontudas no mesmo instante, mas não de forma brusca e sim como se fosse algo gentil. E disse: - Ninguém vem a Cidade Transversal para conhecer o Paraíso, este lugar esta fora de nossa alçada. O que você veio fazer aqui, o que procura, uma razão, um significado, um desejo ou uma rebeldia, não é nem você e nem a minha pessoa que irá lhe dizer. – Ele parou por alguns instantes enquanto um carro de doze rodas passava do lado deles, fazendo um barulho fenomenal – Mas sim, estes elementos, estes anseios, irão acontecer, sem ao menor sinal que você estava esperando que isto viesse acontecer.

Dera então um sorriso, tirando a forma carrancuda de sua face e respirou profundamente: - Muitos passam a vida toda tentando compreender a Cidade Transversal, nem mesmo Os Poderes Que São entendem completamente a extensão deste lugar. Outros passam poucas horas, dias, meses, saem daqui e nunca mais são vistos, alguns somem por desespero mesmo, mas a grande maioria volta para o seu devido lugar e deixa algo, um presente para os que aqui ficam, para ajudar a compreender a nossa jornada.

Sem que ela pudesse perceber os dois estavam caminhando na rua que não era asfaltada, mas calçada de paralelepípedos e areia, na verdade agora ela havia percebido que onde morava tudo era bem rústico, diferente daquilo que estava acostumada na cidade grande.

As folhas nas árvores denunciavam o outono havia começado a algum tempo e que, em breve, começaria o inverno. Dali donde estavam ela podia ver uma pracinha onde crianças brincavam livres, leves e soltas, onde ela dera um soluço de surpresa.

Uma criança de olhos castanho-esverdeados, cabelos lisos e a pele de uma tez morena, corria junto com outras crianças e que nem percebiam os adultos ao redor delas. Uma lágrima escorreu por sua face.

- Elas pertencem a outra realidade. – Disse o homem detendo o avanço da moça. – As crianças veem a Cidade Transversal diferente daquilo como nós vemos. Elas não podem nos enxergar por mais que tentemos interagir com elas, com exceção daquelas que vêm com suas famílias, pais, mães, irmãos mais velhos, que precisam, unidos, encontrar suas respostas.

- Mas ela é?

- Sim, em algum momento da sua vida, ela poderia ter sido. Mas por covardia do destino algo poderia ter dado errado e nada disso veio a acontecer. – Ele levantou o dedo em riste e fez um negativo – Não me pergunte como eu sei, eu apenas sei. Todos nós temos os nossos problemas, as nossas grandes decisões e que, por muitas vezes, afetam não tão somente as nossas pessoas, e sim todos ao nosso redor. Por mais que meçamos nossas palavras, que façamos as nossas ações da forma mais delicada possível, sempre haverá uma repercussão, muitas vezes positiva, outras negativas.

- Das escolhas...

- Tudo reside nelas. Todas as nossas vidas, no passado, no presente e no futuro, são em nossas escolhas que o futuro delas se tornam, se viram, se transformam! Muitos dizem que as nossas vidas já estão predestinadas por algum motivo maior, mas acredite, temos o livre arbítrio, só que este presente tem graves consequências.

- Você bem que poderia realmente escolher estar em outro lugar não?

– Perguntou ela um pouco enfezada enquanto se levantava e calçava um par de chinelos – Ou será que você não tem escolha alguma?

O ser não falara nada, apenas observava ela andar de lá para cá como se estivesse agoniada com alguma coisa. Ouviu ela suspirar uma, duas, três, quatro vezes, mas nada dissera.

- Seria bom se você falasse alguma coisa. Odeio gente que fica assim, sem falar nada sabe? Sei lá. Diz alguma coisa poxa.

- Escolhas... – Foi tudo o que o vulto disse.

Uma torrente de imagens permeou a mente da moça. Um por do sol. As vozes de pessoas conhecidas. Um choro incontido. A primeira vez com alguém especial. Palavras mal ditas e as bem ditas. Um sorriso. Um beijo. Uma criança. Abraços. Presentes e tudo o mais e ela caiu em prantos.

- Por que você fez isso?

- Porque você precisa lembrar. Das escolhas que fez, das escolhas que faz. Alguns têm sérios problemas para demonstrar aquilo que pensa, que sente por mais que tente e quanto mais pressionamos menores são as chances de obtemos alguma resposta. Tudo ao seu tempo.

- Mas e quando o tempo é em demasia hein? E quando damos todo o tempo do mundo e nada de mudar? Nada de resposta! Apenas tudo ficar do mesmo jeito. Tudo ficar frio. Tudo ficar cada vez mais distante? O que eu devo fazer? Esperar? Sentar e esperar?

- Não devemos fazer mudanças sobre pessoas nas quais estas são diferente daquilo que pensamos que elas fossem. Se você muda a perspectiva de alguém, está mudando a seu favor, ao seu modo, ao seu gosto, ao seu jeito. E porque quer fazer isto? Em toda a evolução da sua espécie, as diferenças é que fizeram notar os grandes saltos, sejam biológicos, sejam sociais! A maior mudança, antes de mudar os outros, deve partir de você!

- Eu até tentei mudar, mas vi que era impossível. Libertei-me, deixei-o livre para ser o que bem entender.

- Neste momento é que tudo mudou. Dali em diante as coisas podem ser pior, ou melhor. Esta sua decisão é que poderia ter levado a futuro ou outro. Claro que você não tem como saber isto porque não tem o dom da presciência. – O vulto parecia observar alguma coisa andando na rua, era um ponto preto que era meio iluminado por um dos postes que ali estavam. – Uma mudança brusca em toda a conjuntura pode te deixar livre daquilo que você não procura. A desistência de si é a pior escolha que se pode fazer.

- Eiiiii, eu não desisti de mim. Nunquinha, jamais, nem por um segundo. Você está muito equivocado.

- Será? A vida estagnada. Reclamações sobre aquilo que é. Daquilo que é. Das decisões que deixou de fazer. De ser apenas uma passageira do ônibus que carrega a sua vida? Será mesmo que não desistiu de si? Será que está tão cega que não consegue mais enxergar a realidade de toda uma situação? Como você me vê?

- Como um vulto, claro... negro, envolto por uma manta.

- Você vê aquilo que precisa ver. O negrume que me envolve é apenas um escudo para verdadeira luz, para aquilo que se faz necessário ver.

- É a resposta para aquilo que eu estou atrás? Da Cidade Transversal?

- Se você acha que sim, pode ter certeza que não é exatamente isso. Nada na vida vem fácil, nem as respostas que estão em sua face. – Disse o vulto enquanto esticava algo que parecia ser o seu braço na direção da moça que parecia conseguir distinguir uma silhueta de uma pessoa por detrás da manta. O braço, antes em puro negrume, se tornava cada vez mais humano e parecia receber uma cor de pele cada vez mais alva. – Isto tudo pode ser apenas um pesadelo ou o começo de um lindo sonho.

A mão do vulto estava fechada e ela se aproximou com a sua mão em formato de concha. A pessoa a sua frente deixou cair um brinco com um desenho peculiar, uma asa branca e uma asa negra.

- Ele pode não saber se expressar completamente em palavras ditas, mas de outras formas sim. Ele sabe o quão poderoso um objeto pode ser. Uma asa para te guiar quando a escuridão for tamanha e quando a luz lhe ofuscar em demasia. Agora durma.

(...)

A moça acordava aos poucos. Gotas de chuva batiam suavemente no vidro do quarto onde ela estava e a primeira coisa que pensou porque estaria chovendo. Ao abrir os olhos e levar as suas mãos até eles sentira algo. Era o seu brinco com asas pretas e brancas seguro em sua mão.

- Mas o que? – Perguntou ela com uma voz entre lúcida e ainda meio grogue. Virou-se e encontrou alguém olhando para ela, dizendo-lhe: - Te amo sua chata.

Teria sido a Cidade Transversal o seu sonho mais louco?