CAIXA DE RAIVA - Parte III: “Good bye cruel World”

A polícia não estava preparada para aquela situação. Há anos havia sido condicionada a outro estilo de treinamento, e mesmo que tivesse força de vontade, era constantemente distraída pela vontade súbita de matar, que suas Caixas de Raiva adaptadas intramuscularmente suscitavam.

- Tiras filhos da puta. Não sabem nem o que os atingiu. Dizia um abobalhado Clandestino recém-liberto por Fred.

Enquanto os outros que estavam deitados no chão de seu esconderijo – um apartamento no décimo primeiro andar cirurgicamente limpo no edifício Custom House – gargalhavam como se fossem babuínos famintos dividindo um só antílope.

- Silêncio, idiotas se não quiserem voltar para a pocilga da qual os tirei. Disse Fred irritado, porém com um tom tão refinado e ácido quanto seu aspecto de demônio da impulsividade.

"Calma, chefia", "fica frio", "num esquenta com isso", repetia a trupe que levava tatuada no braço direito o símbolo de um coração mordido. Ideia de Fred Jobs em uma alusão ao símbolo que seu avô utilizara em seus aparelhos eletrônicos num passado distante.

Assustados e com certa quantidade de Raiva Ideal pulsando internamente, logo um silêncio amedrontador tomou posse do apartamento. Silêncio que logo seria quebrado por um berro horrorizante.

- IMPOSSÍVEL. COMO? COMO? MALDITOS.

Os Clandestinos sobressaltaram-se ao ver Fred com as mãos na cabeça, abrindo mão da postura inerte e gritando desesperado.

Na tela do computador podia se ver uma reportagem, no mínimo inusitada. Enquanto filmavam a faixada do edifício presidencial, na parte inferior da tela se repetia a informação:

Atenção. O perigo já passou. Cidadãos americanos poderão descansar e retomar as suas vidas. Policial descobre como acabar com os assassinatos.

- Boa noite. Sou Jack Loyd e estamos ao vivo direto de Washington onde a policial Eve Suffer descobriu como acabar com os ataques terroristas. Eve é verdade isso?

Eve tomou o microfone das mãos do repórter apressadamente.

- Me escutem. Não há tempo para formalidades. Eu sei que todos ainda estão muito chocados com a morte do senhor presidente – Stuart havia atirado na própria garganta em uma crise de depressão – mas, ontem à noite eu entendi como acabar com as mortes...

Por um instante na mente de Eve surgira a lembrança da noite passada na qual movida pela fúria causada pelo controle que o vírus estabeleceu sobre seu aparelho, amarrara seu marido na cama e cortara a perna dele fora. Se debatendo de dor, ele soltou um grito de socorro histérico que ecoou por toda a casa acordando seus filhos. Um deles correra para ver o que acontecia. Desesperado e confuso o mais velho correu para abraçar a mãe, danificando seu aparelho com as lágrimas e escarro incessantes que lhe caíam do rosto. Eve voltara ao normal, e embora estivesse assustada com a cena, uma estranha alegria de ter feito tudo aquilo inconscientemente a fez raciocinar e ver que a culpa era da Caixa de Raiva.

-Quebrem todas as Caixas de Raiva, agora mesmo! Alguma coisa as esta controlando. Rápido!

Dito isso, todos os cidadãos arrancaram imediatamente seus aparelhos. Alguns com muito pesar, pois pensavam no grande investimento que haviam feito comprando peças, aplicativos e capas para proteger do clima chuvoso.

Dias depois a polícia encontrou o apartamento de Fred. E junto seu corpo. Os Clandestinos tomados de Raiva Ideal por causa das ofensas e de seu fracasso não pensaram duas vezes em liquidá-lo. Não possuíam Caixas de raiva. Apenas a perversidade inerente em seus corações. Talvez por isso, tenham arrancado e comido o coração de Fred como em um ritual pagão. Talvez, só queriam se libertar daquela hierarquia que lhes parecia completamente sem sentido.

Passaram-se dez anos desde que os cidadãos experimentaram o horror inexplicável daqueles acontecimentos, e muitos deles - principalmente os mais idosos e desocupados - ainda imaginavam que seu destino fora para sempre afetado pela perda daqueles milhares de pessoas. Outros, porém, não obstante houvesse em suas mentes um lugar guardado para as imagens dos corpos estirados no chão e um desejo ardente de rever muitos daqueles rostos, devido à correria da vida, os compromissos, as preocupações, bem como as novas vidas que abrilhantavam as casas com sua energia e novidade, estes rapidamente tinham suas almas seduzidas e apagada permanecia qualquer angústia, restando-lhes, apenas a possibilidade de mimetizar seus sentimentos no feriado do dia primeiro de Outubro. Batizando-o de The Wasted Rage Boxes Day – O Dia das Caixas de Raiva Despedaçadas.

Distante do dia a dia agora pacificado das cidades, podia se presenciar nas fazendas um otimismo empolgante dos agricultores e mesmo dos próprios fazendeiros. Podia se ver também, o prazer do empregado em ordenhar as vacas de forma manual quando acordava com disposição, e quando não, utilizava-se a forma mecânica: uma bomba de sucção. As medidas higiênicas precisariam ser tomadas de forma rígida, não se queria perder qualquer animal pela falta de cuidado com sua úbere, apenas aplicar os devidos procedimentos para que a dor não os incomodasse e se aproveitasse ao máximo a produtividade dos animais antes que eles virassem cozido. O leite extraído era enviado para uma fábrica que o desidrataria, ou comercializaria em mesmo estado, antes o submetendo a um rígido controle de qualidade. O leite era embalado e comercializado. À posteriori os cidadãos da cidade poderiam usufruir daquele alimento que antes não passava de secreção animal.

- Peter, estamos atrasados. Gritava Harry do seu carro, enquanto Suzy preparava o lanche do filho.

- Pronto, meu amor. Aqui está seu sanduíche.

- Obrigado, mamãe.

- Ah. Tem mais uma coisa. Que cabeça a minha.

Abriu a geladeira e viu no canto inferior esquerdo uma embalagem de papelão branca e azul com uma vaca desenhada de forma infantil e o nome Caixa de Leite em azul turquesa. Era mesmo um puro e branquíssimo leite. Não um refresco de maracujá, que ameniza a ansiedade através do placebo, tampouco café, a bebida dos pretensos intelectuais, que seguram suas xícaras em postura tipicamente fariseia. Mas leite da melhor qualidade.

- Já ia esquecendo que você precisa de muita Vitamina A, filhote.

A hora do recreio foi um tanto diferente para Peter dessa vez, e dividia os goles do leite, as mordidas concentradas em seu sanduíche com sua imaginação fértil. “Huum... mamãe faz o melhor sanduíche do mundo”, “esse leite está muito gostoso”, “vou comer tudo antes que alguém me peça”. Mais tarde a mesma vaca que propiciara aquele delicioso lanche, estaria sendo servida ao molho madeira no Parker’s Restaurant II.

É bem verdade que o Húbris deixara um saldo de mortos aterrorizante naquele país, e com toda certeza as mesmas estatísticas verteriam o sofrimento dos que se identificaram com o papel de vítima, em mero complemento informativo para algum jovem e ingênuo estudante, cuja mente e o espírito serão iludidos pela falsa impressão de humanidade, suscitada por aquelas sensações artificializadas dos elementos matemáticos e, talvez isto construa nada, além de uma necessidade de passar nas provas de História.

Naqueles dias, porém a inocência permanecerá tal como sempre foi: frágil e volátil. Inusitada e transitória. Um estado curiosamente decisivo, no qual os mais ridículos temores fortalecem o heroísmo de um homem, e as paixões de primavera o presenteiam com a inexata sabedoria de viver ou morrer.

FIM?

Tonny Araujo
Enviado por Tonny Araujo em 13/05/2013
Código do texto: T4288959
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