CAIXA DE RAIVA - Parte II: Don’t bite the heart!
De um enorme arranha-céu construído na Pensilvânia Street em Washington, edificado sob as ruínas da Casa Branca, qualquer cidadão que, por um segundo se quer parasse para vislumbrar a magnitude da construção, podia olhar também a figura de Stuart ILL, um homem comedido, tendo conseguido a façanha de ter poucos comentários arrogantes seus arquivados pela mídia.
Stuart, não obstante aqui não se faça uma descrição minuciosa sobre seus gostos e traços físicos, era amante dos cavanhaques e dos charutos Davidoff, motivo pelo qual comprara as ações de quase todas as fábricas deste na Rússia.
-Sabe por que detesto filosofia, Chief? Sabe, não sabe?
Chief era o vice-presidente e estava aguardando Stuart sair de perto da vidraça e se virar para poder tratar de assuntos burocráticos. Surpreendido com a indagação, respondeu:
-Ora, senhor Presidente, acho que é algo inevitável. Filosofar...
-Sim, sei que é preciso. Interrompeu. – Não foi isso que perguntei. Bem, é injusto cobrar de você o meu ponto de vista, mas deixe-me explicar, sim?
-Estou curioso, senhor. Por favor.
-Veja bem, todos os filósofos que existiram nesse mundo-cão descobriram coisas incríveis separando um tempo significativo para transformar bobagem em hipótese, e daí axiomas. Certo?
-Acho que sim, senhor. Mas o que...
-Vivemos em um momento em que não se tem tempo para bobagens. Não se tem tempo para pensar em um mundo sub e supralunar. Temos?
-Não, senhor. Instigado pelo desafio repentino proposto e pelo desejo de parecer eloquente, Chief prosseguiu - Mas, se odeia tanto essa tal falta de utilidade da filosofia, por que está filosofando?
-Exatamente. Este câncer nos impeliu durante toda a história a acreditar que nos daria a liberdade se a perseguíssemos, se lhe déssemos credibilidade, e para que? Para nos tornar escravos.
-Nunca tinha parado para pensar nisso. Refletiu Chief, um pouco embaraçado e confuso.
-Não importa. Mas, perceba que se há uma saída deste labirinto, seria combater fogo contra fogo.
-Voltei a não entender absolutamente coisa alguma, senhor. Disse o vice-presidente franzindo o cenho.
-Quando criei a Caixa de Raiva me deparei com uma pergunta: "toda raiva nasceria e terminaria somente no ato imediato da agressão?" A resposta que obtive foi "não". Então, filosoficamente, percebi que há uma espécie de conflito entre seres humanos através da mente. O que chamo de Raiva Ideal.
-Sim, sim, naturalmente.
-Esse é um tipo de raiva que cresce ou decresce causando consequências imprevisíveis à sociedade e ao indivíduo.
-E como controlá-la?
-Com filosofia: a prisão mais convincente que existe. Respondeu o presidente, dando uma baforada na vidraça.
-Paradoxal, não acha?
-Isso também é baboseira da filosofia. Escute, as leis que criei controlam os desejos de manifestação de raiva através de leis objetivas. As pessoas que adquirem a Caixa têm mais do que a possibilidade de liberá-la, têm a possibilidade de consumi-la. Os pobres demônios que trabalham muito, mas não têm essa condição, morrem por canalizar dentro de si o pior estado que a Raiva Real pode ter: a Raiva Ideal. Não há nada pior do que algo mal resolvido dentro de si próprio, não é mesmo?
-E ainda assim, odeia a filosofia? Isso para mim parece brilhante. Sabe senhor, para falar a verdade, nunca imaginei que filosofar fosse tão produtivo, senhor.
-Viu? Sempre quem fica com os créditos é a maldita filosofia. Sorriu e sentou em seu assento.
-Bem, senhor toda essa conversa é interessante, mas venho tratar de outros assuntos. E aviso que é de seu pleno interesse.
-Prossiga.
-Fred Jobs foi solto.
Um tom amarelado e um suor de forma ininterrupta começaram a possuir a pele de Stuart por causa daquela informação dada com tanta objetividade.
Fred Jobs havia trabalhado em conjunto com Stuart na construção da Caixa de Raiva, porém sua paixão pela tecnologia herdada do avô, Steve Jobs, tomaria rumos completamente diferentes.
Stuart notou que Fred possuía algum tipo de distúrbio em um dos almoços no Parker’s Restaurant onde costumeiramente realizavam suas reuniões para discutir os avanços do projeto. Em um dos momentos do diálogo, Fred defendeu apaixonadamente a ideia de que deveria ser adicionado um dínamo interconectado entre a máquina e o córtex cerebral, enviando cargas elétricas mais fortes do que as enviadas pelo cérebro, que modificassem automaticamente os sentimentos e comportamentos dos indivíduos. Impelindo-os à inevitável e total eliminação uns dos outros.
-Está louco? Indagou-o, Stuart, espantado naquele dia – O que você é, algum tipo de anarquista cibernético?
-Sabia que ia discordar. Mas pense no progresso que iriamos fazer. Àqueles que sobrevivessem aos comandos, seriam os mais aptos a estar sob nosso controle e cumprir nossas ordens com plena eficácia, Stuart. Você nunca mais voltaria a comer bife com fritas, motherfucker.
-Até outro dia Fred. Tenho alguns assuntos a tratar...
-Espere ainda não terminei!
-Até!
Despediu-se ILL, que mais tarde iria contatar o FBI, denunciando anonimamente seu sócio de terrorismo. Quando as autoridades chegaram a seu apartamento, além de vários equipamentos eletrônicos e armas desmontadas, Fred teve a grande má sorte de estar fazendo um "lanchinho" neste mesmo dia. A droga foi apreendida, Fred preso e sentenciado em 20 anos na Red Rock Correctional Center da qual foi solto por bom comportamento, cumprindo, apenas pouco mais que um terço da pena. Isso claramente arquitetado desde o instante em que as algemas frias apertaram seus pulsos.
Ano após ano, Fred canalizara dentro de sua mente perturbada uma grande quantidade de Raiva Ideal através de uma frase que de maneira monologada, retumbava em sua cabeça: "A diversão do homem é o inferno de outro", "a diversão do homem é o inferno de outro", "a diversão... do homem..." Sentado no meio da cela e paralisado pelo ódio, este mantra funesto garantia-lhe um sentido vital, lembrando a angustiante existência dos entediados e ansiosos.
- Calma, senhor, o tempo que este sujeito ficou detido deve ter lhe ensinado qual é o seu devido lugar. Pode ter certeza, senhor.
- Chief, você, às vezes é tão ingênuo.
- Mas senhor?
- Reforce a segurança. Rápido.
Passaram-se exatos seis meses desde que o presidente Stuart ILL e seu vice-presidente Chief Lester tiveram aquela conversa. Porém, tanto tempo era o bastante para que o cotidiano corrido propiciado pelas suas tarefas políticas os fizesse esquecer o perigo eminente que rondava os Estados Unidos.
À beira do final de Abril, um clima pesado envolvia a cidade de Boston. Chuviscos prediziam o desabar de um temporal, e a fumaça obscurecida dos carros a diesel se misturava com o aspecto apocalíptico da chuva torrencial que viria. Enquanto alguns se deliciavam com um jogo de futebol americano [1] entre times clássicos, algumas pessoas se preocupavam em construir seu futuro, estudando, trabalhando, ou fazendo exatamente o contrário.
O dono de um bar limpava o balcão atento aos movimentos do Dallas Boys, e tinha tanta confiança na vitória de seu time predileto que se iludia achando ter previsto todos os movimentos. Depois que estes aconteciam, claro.
- "It’s your last trying, Bob". Marque esse touchdown, seu filho da mãe. Exclamava ele como se o jogador o estivesse ouvindo.
Faltavam apenas trinta segundos para o fim do jogo entre o Sharks e o Dallas Boys com vantagem de um ponto de diferença para os Sharks, se Bob conseguisse passar pelos gigantes da defesa e marcasse os dois pontos os Dallas levariam essa.
Vinte segundos para terminar o jogo. Os jogadores já estão em suas devidas linhas.
Quinze segundos. O Quarterback grita a jogada e lança a bola. Dez segundos. Bob agarra a bola. Nove segundos. Passa pela linha de defesa. Cinco segundos, esquiva de quase todos os linebackers, e é atingido na perna direita por um deles, caindo depois da linha com a bola na mão.
Fim de jogo. O Dallas Boys era vencedor.
Um grito histérico percorreu o quarteirão inteiro e em conjunto o som de um tiro foi abafado. Quando os torcedores do time vencedor saíram às ruas para festejar presenciaram uma cena jamais prevista: Uma garota em pé em frente ao corpo de seu namorado segurava uma arma na Harvard Square. Um silêncio desconcertante tomara o lugar do frenesi dos fanáticos.
Pouco a pouco as expressões de espanto se modificavam, e uma apatia pairava sobre o ambiente. Não tardou para que empurrões e insultos acontecessem. Se estapeando, torcedores do time adversário cruzavam uma rua em frente, e foi o bastante para que um ódio descontrolado se apoderasse daquela situação. Os policiais que chegavam, à priori para evitar aquele banho de sangue, começavam a sentir prazer na cena e entraram na briga também. Olhos vazados, pernas baleadas, faces quase totalmente desfiguradas e um saldo de mortos assombroso, foi o resultado daquela tarde enegrecida.
Mais tarde o Celular Presidencial vibraria.
- Stuart ILL, pois não? Em seguida uma voz rouca respondeu:
- Curioso. Em outros tempos uma secretária me atenderia, diria que você está muito ocupado em uma reunião de negócios, quando na verdade estaria transando com você, meu caro ILL. O presente é mesmo brilhante. Mas nosso futuro está apenas começando.
- É você, Fred? Seu desgraçado. Foi você o responsável por aquela chacina, não foi? Seu monte de merda.
- Não, não fui eu. Na verdade, fui eu sim. Desenvolvi um vírus...
Enquanto Stuart falava com Fred, tentava se comunicar com o FBI.
- Tomei a liberdade de batizá-lo. Chama-se Húbris. Gostaria de te falar mais a respeito, mas tenho muito trabalho a fazer. Lembra-se dos Clandestinos que prendeu? Bem, muitos deles compactuam com este profeta.
- Do que você está falando seu doente mental?
- Bom, tenho muito trabalho pela frente...
- Espere.
- Arrivederci.
- Espere maldi... Era tarde demais.
- Droga. "Não consegui falar com o FBI".
Lamentou e lamentaria Stuart durante todo o dia.
Nas esquinas da cidade, podia se ouvir um clamor fervoroso e emotivo, destilando doses de otimismo, como uma vacina espiritual.
Cidadãos americanos é preciso ter fé em nosso Senhor, pois são chegados os últimos dias. Mais de 15% de nossos irmãos tiveram as vidas ceifadas por Satanás. Oremos pelas almas de nossos entes que se foram e tenhamos piedade dos pecadores. Gostaria que orassem também pela vida deste pastor, pois ontem à noite... assassinei meus dois filhos sem saber o mo... O motivo. Acho que fui possuído pelo mal, meus irmãos. Mas minhas lágrimas não vão trazer meus filhos de volta, não é mesmo? Ore...Mos. Senhor tende piedade...
Fred Jobs conseguira ter acesso ao Computador Cabeça sem muito esforço. No começo do projeto das Caixas de Raiva tudo o que menos queria era um aparelho que inspecionasse todas as atividades dos demais dispositivos e pudesse fazer a manutenção de suas informações legais, no entanto como precisava que Stuart vencesse as eleições para dar continuidade ao projeto, não fez objeção alguma. Embora, não tenha chegado a trabalhar no Computador, lembrava que no projeto, ILL o havia apresentado as bases propostas do protótipo, e eram tradicionalmente as mesmas de um computador comum, a única ressalva era que este possuiria um programa avançado que arquivaria todas as informações realizadas pelas Caixas através da ajuda de um nano chip.
O que Fred tinha que fazer era obter o IP do Computador, o código de segurança e implantar um vírus que fosse enviado às máquinas dos cidadãos, em vez dos reparos teóricos do Computador. Foi o que fez. Mesmo os profissionais que ficavam encarregados da segurança do Computador Cabeça não sabiam o que estava acontecendo.
Foi, então que um medo extremo e sem precedentes tomou conta dos Estados Unidos.
O sistema que antes era visto como perfeito e o ápice da civilização, agora estava provando o gosto amargo da decadência. Os telejornais tentavam em vão acalmar os cidadãos, pois mesmo os apresentadores dividiam seu tempo ao vivo entre suas falas e cotoveladas.
[1] Boxer, MMA e Futebol Americano eram os únicos esportes patrocinados pelo governo por motivos óbvios. Bem óbvios.