Pequena chuva na Cidade da Primavera
A chuva em Spring City tingia suas ruas de espelhos coloridos, o neon dançante do bar produzia ondas de verde e vermelho, padronizadas e pulsantes. O bar era conhecido como Thanks Given, ou Ação de graças, era uma piada de seu proprietário, Santa, ou mais conhecido como Papai Noel. Ele era um homem grande, uma vez musculoso como um mister universo, hoje gordo como um boi para o abate. Seu rosto era branco como leite graças a um caso sério de vitiligo que lhe cobria metade do torço até a testa. Seus cabelos grisalhos e barba grande, além de sua fama como “doador”, lhe rendeu esse apelido.
Um homem estava sentado no bar, em frente a Papai Noel, vestindo um blazer negro pesado e impecável, óculos escuros lhe cobrindo os olhos até a sobrancelha, um cabelo negro, curto, penteado como a moda dos executivos atuais. Braços cruzados sobre o balcão, uma caneca de cerveja esquentando, perdendo o gás em sua frente enquanto ele tediosamente aguardava Papai Noel atender alguns clientes.
Meia hora depois, a cerveja sem ser tocada uma única vez, Papai Noel a recolheu e se pôs a frente do homem, que nem sequer esboçou um sorriso ou qualquer outra expressão em sua face jovem e lisa.
__Você viu? No C.E? (Cyber Espaço)
__O colosso? Sim. –Papai Noel deu um longo suspirou e encheu outra caneca, pousando-a em frente ao homem- ICE que não acaba mais, Black-ICE. Já levou um monte de Netrunners, um monte mesmo, pelo que soube. Fritos, derretidos, alguns simplesmente catatônicos. Sabe? Vivo, mas como uma planta.
__E os budistas?
__Tem eles também, andam dizendo que é a porra do Nirvana lá. Não acredito nesse mumbo jambo, seja lá de que religião venha essa baboseira.
__Só isso? Nenhum presente para mim? –o homem fez um leve movimento, seu rosto liso mostrou um leve traço na testa, uma ruga mínima-
__Para você? –Papai Noel sorriu, uma gota de suor escorreu do canto da testa- Claro. Ninguém sabe o que é esse colosso cara, ninguém. As megacorporações não disseram nada, os militares não se pronunciaram, nada! Esse colosso é ainda maior que aquele de cinco anos atrás, e ele simplesmente sumiu! Sabe o que estou dizendo cara? Esse vai sumir também.
__Não vai. –o homem segurou a caneca, os óculos escuros sem vida refletiam o rosto contorcido e preocupado do bar man- Esse não vai. E o Ovo Papai Noel?
__Ovo? –o rosto liso esboçou um sorriso que mais parecia uma linha reta, as bochechas mal se moviam- Sim, sim! O Ovo. –Papai Noel tirou o suor da testa, olhou para os lados e sorriu- Ele vai chegar em um container, aqui mesmo em Spring City.
__Por quê?
__Porque o quê? Porque aqui? Porque é para cá que ele vai ser levado, para a N.M.T.
__Uma corporação então Papai Noel, e você disse que elas não sabiam de nada.
__Mas não sabem! –Papai Noel fez uma pausa, seu rosto tentou esconder o pavor- Espere…
O homem se levantou e tocou o ombro do barman, o peso o curvou um pouco, seu rosto tentava ficar calmo, esconder o medo daquele homem de terno, mas não adiantava. A Ação de Graças não seria a mesma sem ele.
__Você é um homem muito influente Papai Noel, muito esperto também. Mas agora você está sabendo demais não é mesmo? Vamos fazer o seguinte, se qualquer informação vazar, a corporação não vai ter piedade, mesmo que sua influencia seja grande, estamos entendidos?
__Sim! Sim senhor!
__Agora me diga, o que realmente sabe sobre o colosso no C.E?
__Tudo bem, eu digo. Aproveite um pouco mais sua cerveja…
O homem sentou, mas não tocou a caneca. Os óculos escuros encaravam o rosto do homem gordo e suado, a tensão criava novas rugas a cada momento que passava.
__Os budistas dizem que é o Nirvana. Um paraiso. Dizem que ele surgiu graças as suas preces.
__Ambos sabemos que é mentira.
__Será?
O homem deixou um pouco da sobrancelha sair do óculos, Papai Noel sorriu recolhendo a caneca.
__Mumbo Jambo ou não, parece que os que estão mais certos até agora sobre esse colosso são os cyber religiosos, ao menos eles tentam dar alguma explicação.
__Nenhum Netrunner? Nenhum mesmo?
__Nenhum conseguiu, se conseguisse, saberia.
__Tudo bem Papai Noel, quem?
__Quem o quê?
__Você sabe que os budistas estão perto de alguma coisa, qual deles?
A chuva acertou as lentes negras de seus óculos, sentia a agua fria entre seus cabelos, escorrendo pela nuca e tocando a camisa de seda. Fechou o velcro ao redor do pescoço e ajeitou o blazer. Um sedan preto fosco o aguardava, as janelas levantadas e farol desligado. Caminhou lentamente, as poças vibrando cores a cada pegada que dava. Abriu a porta e entrou no banco de passageiro, o motorista não fez contato visual. Uma voz do banco traseiro ecoou rouca e forte pelo carro.
__Algum nome?
__Sim, mas direi apenas ao CEO.
__Não é preciso.
Um zumbido e o parabrisa ficou pintado de vermelho, o peito do homem com vários furos minúsculos, como uma peneira. As agulhas fizeram um som de chuva no vidro, caindo sobre o painel, vermelhas e quentes. O blazer agora tinha um tom bordô, o óculos continuou firme em seu rosto, do seu lábio fino e liso brotou uma considerável linha de sangue, que o velcro fechado impediu que entrasse na camisa de seda.
__No tempo do meu vô –a voz continuou- diziam que homens mortos não contavam histórias. É ótimo o fato de não estarmos naquele tempo.
O motorista ligou o carro, nenhuma luz apareceu no painel. Aos olhos do motorista, um HUD mostrava todos os dados do veículos, velocidade, calor, combustível e a data.
02:45 – 01/12/2075