O Casulo.
O casulo, como era carinhosamente chamado, foi acionado. Uma câmera de crio-sono que permitia aos tripulantes ficarem em estase durante viagens muito longas, permanecendo na idade de quando foram congelados. A primeira coisa que Simon viu quando acordou foi um rosto velho e sorridente através do vidro embaçado. No final do processo, Simon saiu e logo foi coberto por um roupão branco pelo homem, que o enxugava e aquecia.
__Há quanto tempo dormi? –disse ainda batendo os dentes-
__Quarenta anos. Vocês foram acordados porque a Pioneira IV finalmente aterrissou.
__Aterrissou? –disse com os olhos arregalados de surpresa- Achamos um planeta para habitar!
__Sim Simon, finalmente encontramos. –deu um tapinha nas costas e deixou que se vestisse- Como está se sentindo?
__Bem, meio desnorteado…
Olhou finalmente ao redor, os casulos se abrindo, vários, centenas. As pessoas saiam e já eram atendidas por alguém. Alguns não tinham tanta sorte quanto Simon, vomitavam, sentiam uma fraqueza que mal aguentavam em pé, alguns não conseguiam se lembrar de nada, desmaiavam e outros ainda entraram em choque, mas logo eram atendidos pelos paramédicos da estação de crio-sono.
__Quarenta anos… Onde está meu irmão Solomon? –voltou a olhar o velho que sorria com os olhos cheios d’agua- Você… Solomon?
O homem o abraçou forte, sorrindo, a barba roçando o pescoço do irmão mais novo, de apenas vinte e um anos. Ele olhava as pessoas que saiam, todas elas eram recepcionadas pelos seus familiares. O abraço, ainda que carinhoso, doía suas costelas de tão apertado.
__Quarenta anos… –repetiu- Solomon, o que aconteceu? Você não foi para o crio-sono?
__Não, não pude. Eu estava na área de manutenção da nave, tivemos um grande problema com os geradores de gravidade, tinham picos e ficaram mal calibrados e…
__Entendo… –sorriu e apertou o rosto do irmão, puxando para cima e para baixo- Continua a mesma coisa, só com umas rugas aqui e ali. Está com quantos anos? Sessenta?
__Setenta. –retribuiu o sorriso e limpou as lagrimas com as costas da mão- Venha, vamos ao vestiário, precisa se vestir para conhecer nosso novo lar.
__Lar?
__Sim, vamos ter uma casa só nossa. Todo esse tempo que passei acordado consegui créditos suficientes para comprar um pedaço de terra e uma casa já pronta, além de uma pequena nave cargueira para trabalharmos.
__E Xinê? Onde está ela?
__Xinê… –disse em um suspiro- Xinê faleceu há cinco anos, em um acidente gravitacional… Você perdeu muita coisa, casamos eu e ela…
__Sinto muito… Xinê era uma boa amiga.
__Sim, e uma excelente esposa…
Andaram pelos corredores branco-gelo da nave que levava para os vestiários, estava quente e as pessoas já suavam e ofegavam ao andar de lá para cá, trazendo e levando os acordados para vestiários, enfermaria ou onde precisassem ir. Simon trombou com um ou dois rostos conhecidos, se cumprimentaram e sorriram, satisfeitos por terem acordado. O vestiário também estava lotado, homens distribuíam uniformes para aqueles que precisavam, Simon conseguiu o seu, um colante que cobria todo seu corpo, cinza e com uma pequena marca da Aliança Terrestre na altura do coração. O colante tinha pequenas placas de proteção e contava com um revestimento hermético para minimizar o contato da pele com a atmosfera.
__Não é exagero isso? –olhou seu reflexo no espelho com o colante-
__Não, pessoas que ficaram muito tempo no casulo tendem a enfraquecer, suas resistências diminuem. Daqui vamos direto para casa, lá eu tenho alguns sérum para passar nesse seu rostinho de bebê e logo logo você vai poder usar suas roupas “da moda”.
__Moda? Depois de quarenta anos? Nem imagino como possa estar.
__Olhe em volta. –Solomon riu, girando com os braços abertos- Essa vai ser a moda entre vocês durante um bom tempo. Novaesperança é um tanto diferente da nossa Terra.
__Novaesperança?
__Ah, é o nome provisório do planeta.
Caminharam entre os corredores estreitos da estação de crio-sono até saírem para a zona de extração, um imenso galpão com naves e pequenos veículos terrestres. Solomon levou Simon para uma nave em especial, grande, lembrava uma gota vista horizontalmente, de um metal azul escuro e com duas pequenas janelas na ponta. Era uma nave cargueira comum, conseguia carregar um peso considerável e era ideal para a colonização, podia carregar minérios, madeira e até água graças à versatilidade de seus compartimentos. Solomon acionou o botão holográfico na porta e um pequeno painel avermelhado surgiu, digitou rapidamente uma senha e uma porta cujas frestas eram quase invisíveis se abriu em um sopro agudo.
__Preciso arrumar essa porta. –disse sorrindo, deixando o irmão subir primeiro- Bati em uma arvore quando pousei uma vez, acho que deve ter empenado alguma coisinha… Não sei bem o que é.
__Dou uma olhada depois, não parece ser nada. –passou o polegar pela extensão da abertura- Nada que de para ver assim ao menos.
A nave levitou suavemente, emitindo um pequeno ruído rotatório, ao sair da zona de extração, as pequenas janelas se abriram e Simon pode ver Novaesperança, um céu azul com grandes nuvens brancas, limpas e claras. Uma floresta rala, com pequenos conjuntos de arvores de um verde-limão claro e brilhante graças ao reflexo do sol.
__O céu me lembra os vídeos que vi quando era criança… Da Terra. As arvores… Elas são diferentes não são?
__São sim. Tem menor concentração de clorofila, são mais fáceis de cortar, mas são pouco resistentes. Isso é bom, sinal de que não vamos usar muita madeira. Tem grandes montanhas mais ao sul, de minério e…
__Solomon… –Simon se soltou do banco acolchoado e se agachou ao lado do irmão, que pilotava a nave- De volta ao casulo… Onde estão o pai e a mãe? Já faleceram?
__Não… Não sei. –Solomon ligou o piloto automático e se desprendeu da poltrona- Eles também foram congelados, só eu fiquei de fora.
__E onde estão?
__Eles não tiveram a mesma sorte que você, o crio-sono foi feito para pessoas mais novas, antes dos vinte. Mamãe perdeu a memória e logo entrou em choque, que evoluiu para coma em poucos minutos. O choque em me ver mais velho… Eu sabia que eles deveriam ter tirado ela de lá, cuidado dela e só depois ter me visto. Papai… Ele não acordou. Está vivo, mas não acordou. Também não está em coma, só está… Dormindo.
__Eles continuam na nave? Digo, na capital?
__Sim.
__O casulo… é errado sabia? Nós não deveríamos ser encasulados, o crio-sono é como, eu não sei nem explicar. Tudo fica escuro e então você não é nada, mas você quer acordar, como quando dormimos demais e… Não é bem isso, é como se sentíssemos que deveríamos acordar, entende?
__Por isso que existem pessoas que ficam acordadas durante toda a viagem, não fomos feitos para viver dentro de uma nave, mas acostumamos. Estamos há o que, três gerações na nave, você nem mesmo sabe como é estar ao ar livre. Aqueles ambientes simulados nem mesmo chegam perto.
__É verdade, as nuvens… –pôs o rosto quase colado na janela, olhando o céu de nuvens brancas e claras- São muito mais bonitas ao vivo.
__Simon, eu quero te perguntar uma coisa. Nós tivemos um problema na Pioneira IV, não durou muito, foi coisa de minutos… –Solomon suspirou, encarando o irmão- Você se lembra de ter acordado?
__Acordado? Nesse meio tempo?
__Sim. O sistema de emergência foi ativado e todos os casulos foram abertos durante três minutos, muitos acordaram e logo foram congelados novamente. Havia… Pessoas… –Solomon procurava as palavras certas- Elas… Essas pessoas foram congeladas com uma feição de desespero no rosto.
__Acho que qualquer um que acorde de um crio-sono prefere nunca mais voltar e…
__Você era um deles. Seu rosto estava distorcido, parecia… Deformado. Mas você está bem agora é o que importa, não é? Você está bem?
__Onde quer chegar?
A nave chegou em seu destino no sopé de uma montanha, várias outras naves de carga chegavam ou saiam de lá, ao mergulhar entre grandes arvores de folhas quase transparentes, uma base instalada alguns quilômetros antes da montanha mostrava sua face. Era grande, com uma base de pouso na ala leste, tão grande que suportava quase uma centena de naves ao mesmo tempo. Simon olhou aquelas pessoas e naves, trabalhando, andando de um lugar para outro como formigas em suas rotinas diárias, em busca de alimento e sustento.
__Solomon… Há quanto tempo estamos em Novaesperança?
Solomon ficou calado por um momento, a nave pousou suavemente, sem nem mesmo balançar. O rosto velho e cansando foi esfregado por mãos calejadas e fracas. Solomon respirou fundo encarando seu irmão que buscava resposta para uma pergunta tão simples, mas tão complicada.
__Estamos há cinco anos em terra firme. –soltou todo o ar dos pulmões, encarando o irmão- Estamos há cinco anos… Xinê morreu na descompressão gravitacional, depois do pouso, enquanto a Pioneira se transformava na capital. Durante a movimentação das placas e áreas da nave, Xinê… Bem, não vou entrar em detalhes. –seus olhos cheios d’agua se fecharam com força- Olha Simon, tem coisas que você… É melhor você não saber meu irmão. Vamos voltar a nossa vida normal e…
__Solomon, qual é? Eu sou seu irmão! Sei que estou fora há muito tempo e…
__Simon, você não se lembra de nada mesmo? Não lembra de ter acordado nesse meio tempo?
__Eu já disse que não droga! –socou a poltrona, sentiu a vibração e a dor nos ossos, olhou para seu braço por um tempo tentando entender- Mas o quê…
__Vá com calma, seu corpo ainda não está acostumado a gravidade do planeta, além do que, seus músculos ainda devem estar fracos por causa do crio-sono.
Simon olhou ao redor, a nave ainda fechada, as pessoas do lado de fora correndo de um lado para o outro, trabalhando. Algo estava errado para Simon, mas ele não conseguia ver bem o que era. Olhou para o irmão que, apreensivo, o olhava de volta, como se esperasse por alguma coisa, algum sinal.
__Abre o jogo Solomon, o que há de errado? Porque você está assim, agindo dessa maneira?
__Simon… Você se lembra de quando erámos crianças? –olhou o irmão que estava suando, um tanto pálido, nervoso o encarando-
__Sim, claro!
__Qual era o nome do nosso gato? Aquele branco, que te arranhava quando você puxava o rabo dele?
__Era sn… Sn… Sno… Sno… Sno alguma coisa.
__E o nome da irmã da Xinê?
__Sa… Su… Que se foda! O que isso tem haver?
Solomon respirou fundo e esfregou os olhos, tentando conter as lagrimas que insistiam em incomodar seus olhos. Ele abraçou o irmão com força, depois o soltou, olhando em seus olhos.
__Vamos voltar. Vamos voltar… Você vai voltar para o crio-sono, vai ficar…
__Eu não vou voltar… –Simon foi interrompido por um forte espasmo na barriga, seguido de um vomito esbranquiçado- Solomon…
Solomon saltou na poltrona e digitou os comandos no painel holográfico, a nave zumbiu alto e levantou voo com imensa velocidade, Simon perdeu o equilíbrio e caiu, zonzo e com a visão turva. Quando a nave estabilizou, Solomon saltou da poltrona e correu até o irmão, o levantando e prendendo ao banco de passageiro.
__Eu sabia! Você estava pálido demais, seus olhos… Estão com um brilho tão apagado…
__Solomon, o que está acontecendo?
__Você é forte, mas os sintomas te pegaram também, do mesmo jeito. Meu Deus! Vai ser um caos na Capital, todos vocês devem estar assim e…
__Solomon, que porra está acontecendo?
__Você não está bem, você não está nada bem! Nenhum de vocês está! Por causa da descompressão! Tenho certeza! O expert em crio-sono disse que era seguro liberar vocês, mas eu sabia que ele estava errado! Eu sabia! Agora você e mamãe e…
Escuridão, apagaram as luzes, silêncio.
__Acorde! Acorde! Pelo amor de Deus acorde!
__Solomon?
Vácuo, nada, vazio.
__Acorde Simon! Porra fique acordado maldito!
Então a escuridão voltou, o nada estava ali novamente. Simon sabia, e muito bem, que seu sono não acabaria assim tão fácil, era tudo muito bom para ser verdade. Seus olhos se fecharam enquanto Solomon esbofeteava seu rosto e o balançava, mas não adiantava, adiantava?
Simon sabia que não. Sentiu o frio tomando conta do seu corpo, seus ossos implorando para que aquilo não acontecesse, mas ele nada podia fazer. Sua mente se entristeceu e aceitou mais uma vez o fardo do sono, mas desta vez, segurou firme na ideia de que estavam em terra firme, e que nome mais bonito é esse, Novaesperança. Foi tudo tão rápido, tudo tão utópico. A Pioneira IV tinha completado seu objetivo, mesmo que, para Simon, tocar a terra com os pés descalços fosse um sonho inalcançável.