Igual, virtual e invertida
Eu tinha ido à casa dos meus tios em Juquitiba, passar uma temporada. Uma casa enorme e antiga, cheia de cacarecos e toda suja de pó, ao menos no antigo porão. Foi lá que minha aventura começou.
Desci as escadas, e vi muita, mas muita coisa – móveis antigos, um rádio, um piano que até apertei umas teclas, obviamente desafinadas, um monte de coisinhas no chão. Meus tios faziam o estilo de acumuladores, aqueles que não se livram de nada. Conforme eu avançava no porão, o caminho ia ficando mais denso, mais coisas atrapalhando. Vi moedas antigas, peguei todas. Eu era meio perverso, sabe? Um moleque de 16 anos mal educado, que trapaceava onde pudesse. Tenho vergonha do meu passado, mas não de mostrá-lo.
Algumas coisas no chão me pinicavam os pés descalços. Soldadinhos de chumbo, carrinhos de madeira, tudo que você pudesse imaginar havia naquele porão. E eu avançando. Tive que me espremer para continuar o caminho, e minha prima gritava para que eu fosse jantar. Me fazia de surdo para dar a desculpa depois de não ter ouvido. Afinal, eu não tinha andado tudo aquilo para voltar mais tarde. Conseguia, agora com o isqueiro – pois eu fumava escondido dos meus pais – ver o caminho, pois a única luz que vinha era através da porta de entrada do local, entreaberta. Na escuridão parcial, tateava as coisas, pois via apenas um metro diante de mim. Vi uma parede de tijolos, sabia que tinha chegado ao final, mas no caminho eu estava sempre procurando coisas interessantes para possivelmente vender. Eu precisava de dinheiro para levar minhas namoradinhas no cinema, para os meus cigarros, e a minha bebida. Em 1975, leitor, a fiscalização não era tão intensa como é hoje.
Cheguei à parede e olhei para a esquerda. Havia ainda mais um pequeno caminho a ser percorrido, até chegar ao outro canto. O caminho era livre, fácil, não deu muito trabalho. Mas eu percebi que algo brilhava, e fui indo. Ao fim, havia um espelho de grandes dimensões, aqueles espelhos antigos, talvez de 1940, 1942. Ele era muito bonito, embora um pouco empoeirado. Tirei a camisa e limpei. Conseguia ver minha imagem perfeitamente. Mas algo não estava certo – o espelho era muito bom, talvez de prata bem polida, aqueles espelhos caríssimos. Só que o canto direito superior estava distorcido. Não estava quebrado, apenas distorcido. Levantei o isqueiro até ali e percebi que a chama ficava torta. Deve ser por isso que foi abandonado ali, minha tia deve tê-lo comprado, e quando percebeu o defeito era tarde demais. Código de defesa do consumidor em 1940? Não me faça rir.
Deixei a chama acesa ali, e percebi que ela começou a dançar. Algo não estava certo, não estava. Eu não movia a mão, e a chama cambaleava de um lado para o outro. Pensei que, talvez, minha irmã tivesse ligado o rádio no andar de cima e as vibrações estivessem chegando e fazendo o espelho tremer. Toquei nele e nada senti. Mas, como eu era um cético, não acreditei que algo especial estivesse acontecendo. Apenas pensei que fosse alguma impressão, ou algo atrás de mim acontecendo. Eu toquei com a mão esquerda, realmente curioso, ali naquele canto e, de repente, o espelho fez um efeito de gota caindo na água, com uma grande onda circular partindo do centro. O espelho ficou totalmente liso, o defeito não existia mais após a onda se dispersar nos cantos. Eu toquei o centro do espelho e a onda apareceu novamente. Eu não poderia evitar – qualquer pessoa racional teria chamado mais alguém para ver aquilo, mas eu decidi entrar. Dei um pulo na direção do espelho, e senti um grande frio, como se um metal líquido à temperatura ambiente tivesse meu corpo envolto numa gelada atmosfera. A chama apagou, e quando eu percebi caí do outro lado. É, do outro lado. Era idêntico à casa da minha tia, o mesmo porão. Virei me para trás, e percebi que tudo estava normal. Toquei no espelho e ele estava sólido. Tudo era apenas uma grande impressão. Pois bem, fiz o caminho de volta, que parecia diferente, as coisas pareciam limpas e organizadas. Subi as escadas e adentrei a casa novamente.
Fui até a cozinha, e vi um homem cozinhando. Quem era aquele homem? O novo mordomo da minha tia? Eu fiz um barulho qualquer pisando no chão de madeira e ele se virou para mim. Olhou assustado.
-Quem é você? Onde está Márcia?
-Que Márcia, amigo? Meu nome é Márcio.
-Por acaso você é o irmão gêmeo dela que eu nunca vi? Venha aqui e dê um abraço no tio!
O “tio” era incrivelmente parecido com minha tia. Bem, quem era eu para negar um abraço a um coroa necessitado.
-Vamos conversar depois! Chame Márcia aqui, novo amigo.
-E a tia Joana, onde está?
-Que tia Joana? Minha esposa se chama Bruna – o nome do meu tio é Bruno –
-Ei tio, eu digo meu nome e você diz o seu, é uma brincadeira que eu aprendi. Márcio!
-João!
Naquele momento as coisas começaram a fazer sentido. É, leitor, eu estava no mundo inverso dos espelhos.
Minha tia Joana era sem graça, pouco afetuosa e não cozinhava. O reflexo dela fazia exatamente o contrário. A casa era toda ao contrário. Não, nada de negativo, coisas de ponta cabeça, imagine um grande espelho na sua sala. Era apenas sua sala, refletida. Era incrível como tudo era fiel à realidade. O retrato da família, todos de sexos opostos – eu perdi meu pai quando era criança, e no retrato minha mãe, com feição masculina, me abraçava. Ou melhor, abraçava Márcia. Eu tinha que encontrar essa Márcia e conversar um pouco com ela. Quem sabe me entenderia.
-Quem é você? – me perguntou Roberta, ou melhor, minha prima inversa, Roberto.
-Meu nome é Márcio, me separei da minha irmã após o nascimento.
-Ora, bem vindo Márcio! Vocês são incrivelmente parecidos.
-Onde está Márcia?
-Está lá em cima.
E subi as escadas. No meio do caminho, encontrei uma menina que até ficava bonitinha assim – meu outro primo, Guilherme, que deveria com certeza ser Guilhermina naquele lado do Universo. Não falou muito, apenas desceu as escadas, um pouco impressionada. Eu era um verdadeiro estranho no ninho.
Foi só o momento de empurrar um pouco a porta, para que ela rangesse. Eu gostava daquela porta porque ela era a única da casa que não rangia. Estava lá, deitada na cama. Eu me impressionei – tinha cabelos longos, um bumbum generoso, estava de barriga para baixo lendo uma revista. Odeio revistas.
-Ei...
-Meu Deus, quem é você, um invasor?
Ela veio para cima de mim e me acertou um soco na cara, e continuaria batendo se eu não segurasse. Apesar de ser um cara de pau, eu nunca cultuei a violência. Eu tateei muito bem o espelho antes de subir, e ele estava liso. Eu não tinha como voltar. Eu sabia que precisaria da ajuda da minha “imagem” para escapar daquele inferno. Sem documento, sem dinheiro nem identidade, uma pessoa que simplesmente surgiu num mundo invertido. Sabe-se lá o que poderia estar me esperando do lado de fora.
-Não, eu não sou um invasor. Eu sou você.
A menina, quero dizer, eu fiquei pálido. Em choque. Outra coisa que eu não fazia – ficar assustado. Eu mantinha a calma o tempo todo.
-Então é verdade...
-O que é verdade?
-De que existe um outro mundo, no canto do universo, de que no limite cilíndrico proposto por Einstein a matéria se refletiria e se tornaria outra, só que reversa!
Fazia sentido.
-Eu percebo como você é igual a mim... Mas é diferente! Você é o meu contrário, mas ainda somos a mesma pessoa!
-Como você sabe tudo isso?
Ela, subitamente, me beijou. Deu um beijo longo de língua, molhado, como jamais qualquer uma das vadias que eu namorava teria me dado - todas visando ganhar um rolê grátis - de maneira intensa. Eu me impressionei e senti algo estranho.
-Desculpe... Eu só precisava estabelecer contato direito com minha própria imagem.
A imagem dela? Porra, todos sabem que ela é a minha imagem!
-Não faz mal... Você só precisa me ajudar. Onde você descobriu sobre tudo isso?
Eu te ajudo, Aicrám. É este seu nome? Oicrám?
-Não, Márcia. Acho que as letras não se invertem, como nos espelhos. Eu sou Márcio, mesmo – só que, na verdade, no mundo dela, as letras estavam invertidas para mim, mas perfeitamente legíveis para ela.
-Mas sua camisa está ao contrário!
Para ela, as letras “normais” da minha camiseta, é que estavam ao contrário.
-Que demais!
Ela ficou histérica. Eu percebi que tinha se apaixonado por mim, à primeira vista. Eu era a concretização das suas supostas leituras, a realização das suas fantasias, eu era, de fato, a cara metade dela, como duas peças de quebra-cabeça, dois compostos químicos isômeros, duas metades da maçã. Não é romântico, leitor?
-Venha, vou te mostrar!
Ela trancou a porta e buscou um livro antigo dentro da sua cômoda. Um pouco empoeirado, datava estranhamente de 1394.
-Em que ano estamos?
-1435!
-Eu estava em 1975, do “meu lado”.
-Muito curioso. Acho que isso tem algo a ver com a velha teoria dos números, ou seja, quando dois anos forem recíprocos, as dimensões se colidirão e o caos será instaurado!
-Veja aqui, a cientista Alberta Einstein escreveu, em 1382...
-Alberta Einstein? Isso quer dizer que, todos os cientistas daqui são mulheres?
-Nem todos, alguns são homens. Mas aqui, as mulheres trabalham e os homens cuidam da casa.
Meu mundo caiu.
-Mas temos grandes pessoas, tais como Rose Parker...
-O homem que se recusou a dar espaço de ônibus no Apartheid negro?
-Sim, como adivinhou?
Sim, leitor. Naquela dimensão, quem sofreu a escravidão eram os brancos, e os grandes senhores de terras eram os negros. Senti um pouco de justiça nisso, sei lá. Percebi também que ela era perfeitamente o meu oposto – doce, delicada, interessada, um pouco agressiva, mas muito amorosa, e repudiava perversões. Não restavam dúvidas, aquilo estava complexo demais para ser um sonho louco. Caí em mim mesmo.
-Venha, vem conhecer isso aqui comigo.
E eu fui. Olhei para o livro e li.
Snortéleitna e snotórpitna soa saçarg saditrevni sagrac saus odnet aunitnoc argen airétam a e ,sedatem saud me odidivid sam oter é ordnilic o ,lena ed otamrof met oãN .odal ortuo on ,ajes uo ,otsopo on odatluser ,laicapse arbod amu me odamoter é ,odassevarta res oa ,euq sam ,is ertne etnacot oãn ,etimil mu met ordnilic esse ,otnatertnE .sacisíf sa mavasnep omoc ,aciréfse oãn e ,acirdnílic amrof atnesepa osrevinU o ,sasiuqsep samitlú sa moc odroca ed...
-Márcia, você pode ler este parágrafo para mim?
-Claro! Diz que, de acordo com as últimas pesquisas, o Universo apresenta forma cilíndrica, e não esférica, como pensavam as físicas. Entretanto, esse cilindro tem um limite, não tocante entre si, mas que, ao ser atravessado, é retomado em uma dobra espacial, resultado no oposto, ou seja, no outro lado. Não tem formato de anel, o cilindro é reto mas dividido em duas metades, e a matéria negra continua tendo suas cargas invertidas graças aos antiprótons e antielétrons...
-Pode parar, eu já entendi. Eu preciso que você leia para mim, deste lado eu sou incapaz de ler.
Ela lia o livro de trás para frente, começando pelo fim da última página. Era estranho demais. Da direita para a esquerda, subindo a linha...
-Mas isso é desnecessário, apenas o estudo técnico que lá do seu lado você deve conhecer. Vamos ao que interessa! Aqui, no capítulo doze – ao menos os números eram iguais e progressivos, porque contagem regressiva seria demais – diz que é possível adentrar o outro lado do universo. Duas maneiras: atravessando o final do Universo, que longe demais está de nós, e apenas deveria ser chegado na velocidade da luz, onde toda a matéria se transformaria em energia, ou por um buraco de minhoca em qualquer dobra espacial a ser calculada no futuro, pois a aparelhagem atual não tem esta precisão. Também estipulam-se pequenos rasgos no Universo, em toda parte, e que a Teoria da Imagem explique qualquer coisa, a respeito da situação fictícia de alguém adentrar o próprio reflexo em um lago ou em um espelho...
-Márcia, eu vim aqui graças a um espelho.
-O espelho que temos lá no porão? Ora, não tem nada demais, depois de ler este capítulo eu fui lá ver se dava certo, mas não funcionou...
-Tem que ter alguma coisa aí, leia para mim, por favor. Eu sinto que algo não está certo.
-Meninos, venham jantar! – gritou o meu tio, tia, sei lá.
-Vamos lá. Mas não se esqueça da minha discrição, para eles eu sou seu irmão gêmeo. Eles podem não entender o que está acontecendo.
-O pessoal aqui em casa sempre disse que essa história do espelho era baboseira, fantasia... Mas eu vejo que é verdade! Mas não se preocupe, imagem! Vou fazer o que você pede.
Ela deixou o livro no quarto e nós descemos. Lá nós jantamos, e eu inventei que tinha sido abandonado em um orfanato após uma das enfermeiras ter confundido eu e minha irmã, aquela coisa de berçário, e que eu acabara caindo em mãos erradas, rastreei minha família, essa coisa de Casos de Família. Após o jantar, me foi arranjada uma cama – no quarto da minha imagem, é claro – e lá eu aprendi um pouco mais. Adormecemos, antes ela do que eu, pois eu sentia que algo não estava certo.
No dia seguinte, eu acordei com ela em cima de mim.
-Ei, imagem, eu tive um sonho muito doido!
Eu um pouco tonto ainda, perguntei:
-E como ele era?
-Você não sentiu uma conexão, algo diferente e bom após me beijar?
-Não.
Na verdade, eu senti sim. Eu me senti completo, como se uma euforia total tomasse conta de mim, eu me senti uma unidade com você, como se nada pudesse me atingir, algo perfeito, intocável, a ordem do universo restaurada, em perfeita harmonia com o cosmos e toda a existência fosse terminada e selada de maneira inerte à tudo que pudesse atrapalhar. Pensei isso, enquanto ela falava isso. Foi incrível. Ela me beijou de novo e eu me senti completo. Mas eu estava me sentindo mais completo, quem sabe meu corpo tivesse enfrentado o choque do primeiro contato e agora estivesse acostumado e pronto para estabelecer conexão fechada e total. Não conseguíamos parar de nos beijar. Não confunda isso com amor, leitor. Eu não a amava, tinha a conhecido ontem, apesar de estar apaixonado por mim mesmo. Aquilo era simplesmente o impulso criativo, como já dizia o Dr. Romário de Araújo Mello em seu livro Embriologia da Alma.
-Eu preciso, eu tenho que, eu quero você!
Nós tiramos a roupa e fizemos amor. Não foi apenas o prazer terreno, foi algo divino. Não se engane não, estou falando de algo maior que a própria criação, não digo apenas de endorfinas e hormônios que acelerassem meu corpo, falo do universo entrando em ordem dentro daquele quarto. Foi bom e terminamos ao mesmo tempo, como tinha de ser.
-Eu nunca pensei que poderia ser tão incrível – dissemos, ao mesmo tempo.
Nós deitamos juntos, e ficamos abraçados. Dormimos novamente, e acordamos às 21h, que na verdade, tinha aparência de nove horas da manhã. Ela estava sentada na cama, de costas para mim, olhando para o fim da cama. Eu a abracei por trás.
-Porque está acontecendo isso?
-O que?
-Seu... pé...
Meus dois pés estavam ficando escuros totalmente pretos, de cor de carvão. Não sentia dor, formigamento, nada. Mas ele perdeu os traços. Era apenas uma massa que lembrava uma base. Eu me levantei e ainda podia andar.
-Não... eu sabia!
Ela foi correndo até o livro e abriu nas primeiras as páginas – últimas, para ela.
-Esse último capítulo do estudo... a teoria estava certa!
-O que está acontecendo? – eu me aproximei e pedi que ela lesse.
-É esperado que, se uma matéria normal do outro lado atravesse para esse, ela se desnature, se destrua, tornando-se a matéria escura que nós conhecemos hoje. Só que, quando um corpo totalmente imerso ao lado não pertencente, este torna-se massa comum e perde-se para sempre. Estipula-se um prazo de algumas voltas de elétrons em volta do núcleo de cada átomo da massa, e quando todos os elétrons tiverem dado essas voltas progressivamente, o corpo será absorvido e só voltará a ser o que era antes caso seja devolvido ao lado original, só que na forma atômica, ou seja, a massa arremessada de volta será explodida como uma estrela morta em uma supernova.
-Márcio... Um dia serviu para pegar seus pés e parte da canela. Em uma semana, você terá se tornado matéria escura. Se você não for embora, você vai morrer!
-Nós temos que achar a saída antes que seja tarde.
Fomos até o espelho e nada. Tocamos, apertamos, eu imitei a situação com uma vela, mas aquele espelho não tinha a rachadura. O engraçado é que, quando ela ficava em frente a qualquer espelho, graças a minha presença daquele lado, ela se enxergava como eu, e eu como ela.
-Merda! O livro não fala nada mais sobre as falhas que existem na Terra, apenas as do limite do universo e dos túneis existentes nas galáxias!
-Eu estou perdido.
Mas ela não ia deixar. Por dois motivos: ela não poderia me deixar morrer, e ela não poderia morrer também.
-O capitulo dez fala que a hora é das duas massas. Um carbono destruído aqui é destruído lá, uma vida nascida aqui é uma vida nascida lá, e uma morte aqui é uma morte lá. Se você morrer aqui, além de eu morrer junto, eu não sei o que pode ocorrer com a estrutura do universo.
De repente, todos os relógios velhos, que estavam lá dentro, começaram a tocar e girar novamente. Giravam no sentido horário.
-Eles estão girando ao contrário! - que, para ela, o sentido correto era o anti-horário – Agora eu entendo. Sua presença aqui está desestabilizando a ordem cósmica, e o universo está tentando se arranjar para que você seja permitido. Eu não sei o que pode acontecer, por Deus!
A religião era mesma. A fé é a mesma, em todos os humanos.
-Mas e aquela história de restauração, de harmonia enquanto estávamos juntos?
-Márcio, nós somos a mesma pessoa, na nossa unidade. Nós, juntos, restauramos nossa própria origem, mas destruímos a ordem universal. Esta é a nossa sina – não podemos ficar juntos, nossa união destrói o universo!
-Mas, e se fossemos um só?
-Um só... Não há nada no livro sobre isso, mas eu acredito que seríamos um ser híbrido – perfeitamente em ordem com o universo e consigo mesmo, e que pudesse transitar livremente entre as duas realidades.
-Tem jeito de fazermos isso?
-Não, não tem. Se estivéssemos falando de simplesmente matéria, pegar um pouco de água do seu universo, misturar com a água daqui e depois congelar, tornando uma coisa só... Acho que seria possível, mas somos seres viventes, não há como.
Eu queria que tivesse jeito. Aquilo era incrível demais, a solução dos meus problemas, me juntar com ela e me tornar um humano só, perfeito, sem conflitos, internos nem externos. Essa é a definição da felicidade.
-Mas a resposta pode estar por aí...
-Onde?
-Este livro é apenas um arranjado da teoria. A original se encontra em poder da Universidade, que fica no centro. Quem sabe, lendo o documento, teremos acesso ao seu mundo novamente.
E lá fomos para a Universidade no carro do meu tio. Um repórter, pelo rádio, dizia que todos os relógios estavam enlouquecidos e andando no sentido inverso. Meus joelhos estavam ficando escuros.
Sim, os carros tinham o volante do lado direito. Dirigir do lado esquerdo que era estranho. Acho que na Inglaterra do outro lado do universo, eles dirigissem do lado esquerdo. Meu tio dirigiu uns trinta minutos, até chegarmos em São Paulo.
-Obrigado tio, a gente se vira aqui.
E fomos, de metrô, até a USP, ou PSU- Paulo São Universidade, como estava a sigla. Engraçado que os metrôs ficavam em cima da terra, e não sobre ela e, em contrapartida, os carros apenas andavam em túneis, pelo menos dentro da área urbana. Conseguimos entrar no campus e fomos até o departamento de Física. Adentramos, e até agora ninguém tinha nos parado. Até que fomos até a biblioteca – uma catraca nos impedia de continuar. Fomos até a bibliotecária responsável.
-Por favor, o número de registro na biblioteca.
-Não somos estudantes – eu disse – Temos que ver um dos escritos aí dentro.
-Sinto muito, se vocês não forem alunos, não podem ter acesso aos livros...
-Mas nós precisamos, existe uma questão importante nisso...
Márcia olhou para o relógio, que havia parado de tocar. E de mexer. Achou que aquele estivesse sem pilha e, enquanto eu e a bibliotecária argumentávamos, ela foi até o relógio, que era de parede. Pegou o nas mãos, parecia intacto. De repente...
-Márcio...
O relógio estava pastoso, como na pintura de Salvador Dalí, como um queijo derretido escorrendo das mãos da minha outra metade. A bibliotecária viu, e de prontidão nos liberou a catraca.
-Vão logo, vão!
Ela largou o relógio no chão e veio comigo. Procuramos rapidamente pela teoria, e levamos alguns minutos para achar em meio aquela infinidade de obras. Mas achamos. E tinha três vezes o tamanho do livro da Márcia.
-E agora, como vamos achar?
-Deve ter um índice. Procure por “abrir fenda espacial”, ou algo assim.
Folheamos aquilo durante muito tempo. Os termos técnicos disfarçavam os conteúdos, não conseguíamos encontrar a resposta, e o universo estava começando a ruir. Sentados, eu me estirei um pouco para trás, pois estava cansado. Minha camisa levantou um pouco e eu percebi que a mancha escura já alcançava meu umbigo.
-Você não disse que eu teria uma semana?! – perguntei.
-Eu não calculei direito... A matéria deve se converter em velocidade crescente... Acho que temos até o final do dia, apenas!
Ela começou a procurar desesperadamente. Após uma longa meia hora...
-Veja, achei algo do tipo. As fendas espaciais não podem ser abertas, após a grande explosão e o firmamento do Universo, estas já foram estabelecidas. Novas fendas, não necessariamente que levassem ao inverso da realidade, poderiam ser abertas em caso de perturbação do cosmos. Calcula-se que seja possível descobrir essas fendas através da matemática... Nós já lemos isso!
-Pule essa parte, tem mais escrito, vamos!
-Espere, estou vendo... aqui... função derivada... cálculo de matéria... identificar uma fenda através de recurso biológico! Isso!
-Leia, pode ser nossa única saída.
-O material genético dos indivíduos está em dupla hélice, no DNA. Se fosse possível juntar as informações genéticas de dois indivíduos simétricos, ou seja, o correspondente deste de outro lado do firmamento; casando-as em uma única solução e derramá-las numa fenda, a ordem sofreria uma oscilação forçada e a fenda se abriria. Assim, uma fenda, embora existente, mas não disponível nesta dimensão, seria aberta por algum tempo, necessário o bastante para que matéria atravessasse e se tornasse matéria escura do outro lado. É nisso que se baseia o surgimento de matéria escura, oscilações espontâneas onde matéria penetrou... É isso! Temos que juntar-nos, de alguma forma! Só que onde encontraremos a fenda?
-A fenda... O espelho!
Saímos correndo da biblioteca. A bibliotecária não estava mais lá, sua cadeira estava vazia. Toda a biblioteca estava vazia, na verdade. Alguns alunos estudavam e liam ao chegarmos, mas todos já haviam fugido. Saímos à porta e vimos o céu escuro, como se observa nas imagens espaciais. E eu estava me tornando antimatéria cada vez mais rápido. Atingiu meus primeiros órgãos vitais, e eu comecei a sentir dor. Estava correndo com Márcia de volta para sua casa, mas a pé não conseguiríamos, e eu tentei explicar para ela no caminho.
-Precisamos de um carro, mas eu não sei dirigir.
-Eu sei... Só precisamos arranjar...
Eu senti fraqueza e caí. Eu avisei que não podia mais andar, e Márcia precisou me arrastar. Chegamos ao estacionamento da faculdade, e vimos algumas pessoas correndo, ligando carros e fugindo. Ela chegou a um senhor de terno que estava colocando a chave no contato de um Opala.
-Exatamente a potência que precisamos – falou bem baixinho, ela.
-Espere, senhor! Somos estudantes, e meu amigo teve as pernas queimadas! O que está acontecendo?
-Está dando nos noticiários que a atmosfera se rompeu, e que o ar está se esvaindo para o universo. Não estão sentindo um vento saído do chão, como se algo o estivesse puxando?
-Na verdade sim, mas deixe-me ver uma coisa...
Foi o tempo de ela dar um murro na cara dele e arrancá-lo do carro à força. Eu andei um pouco e me coloquei no banco do motorista, ela pulou do outro lado.
-Ei, é meu!
Saímos em disparada.
-Precisamos chegar a tempo, se você se tornar antimatéria completa aqui, a terra ira romper, literalmente!
-Nós vamos conseguir, e...
Foi quando um carro cruzou a nossa frente. Um pequeno inseto, no chão, se segurava para não ser sugado para cima. Foi quando suas pernas se soltaram dos pedregulhos do asfalto e ele começou a subir.
-Márcia, nós vamos bater! – e fez-se um silêncio. Eu pude apenas levar as mãos ao rosto e esperar pelo pior. Mas eu esperei um bom tempo e nada ocorreu. Eu abaixei minhas mãos.
-Márcia... Márcia?
Márcia estava estática. Eu abaixei seus braços, virei seu rosto. Ela continuava com a mesma expressão facial, de desespero. Abri a porta com dificuldade, mas consegui sair do carro. O outro carro também parou. O inseto não subia mais. Foi quando eu decidi tirar meu relógio. Ele ficou estático no ar. O tempo havia parado.
Eu voltei para o carro, e tentei acelerar, mudar o curso, nada funcionou. Eu não queria que o carro batesse.
Aquilo era resultado do rombo no espaço que minha presença havia gerado. O livro dizia que qualquer coisa poderia acontecer. Eu poderia tentar ir ao espelho, mas o tempo poderia voltar e levar a vida de Márcia com ele. Eu fui até o carro que estávamos, e tentei empurrá-lo para trás, mas não consegui – a energia que o carro tinha adquirido era muito alta, a eu não poderia tirá-lo dali, a não ser que colocasse força o contrário o suficiente. E o que representa uma pessoa de 70kg frente a um carro de mais de uma tonelada, à alta velocidade? Sentei, pensei, enquanto o tempo não dava a cara. Foi quando senti uma luz
-Já sei.
Eu abri a porta do carro e tirei Márcia dele. Fui até o outro, quebrei o vidro, e tirei a pessoa que dirigia, deixando-a a uma distância segura. Levei Márcia para longe, e com ela eu esperei. Fiquei quase quinze minutos naquele timefreeze. De repente, o tempo voltou – não romanticamente, como nos filmes, que as coisas adquirem sua velocidade lentamente, mas realmente no instante. Os carros se acertaram, e Márcia gritou. Quando percebeu que estava segura, me abraçou e começou a chorar. Tudo estava na escuridão, com apenas os postes acesos.
-Por favor, nos tire desse pesadelo, meu amor...
Arrombamos um carro, e e conseguimos dirigir até a casa. Chegamos lá, e a escuridão já alcançava acima de meu umbigo. A dor era intensa.
-Veja, aí está a raiz do mal! - disse meu tio – Peguem-no!
-Parem, vocês não entendem!
-Entendo sim, foi só ele aparecer que as coisas começaram a mudar! Ele é alguma espécie de feiticeiro!
-Por favor titio, largue dessas histórias, não são verdade!
-E o que é verdade, o céu negro ou o ar indo embora? Talvez se o matarmos, tudo voltará ao normal!
-Não, vocês não podem! Corra, Márcio!
E eu corri. Ela segurou meu tio, e eu precisei dar um soco na cara de Roberto, para que eu pudesse ir até o porão.
-Márcia, só nós dois abriremos o portal!
Ela conseguiu tirar o tio do caminho e ir comigo até lá embaixo. Meus braços já estavam ficando pretos, também. A duras penas, chegamos ao espelho.
-Como combinaremos nosso material genético?
Eu peguei um apoio de vela que tinha uma pequena ponta dupla, e pedi para picar Márcia. Ela logo aceitou, piquei-lhe o punho, fazendo sangue sair.
-Deixei que escorra no espelho!
E enquanto escorria, reuni minhas últimas forças e dei uma forte cabeçada no espelho, fazendo-o se quebrar, e derramando meu sangue também. De repente, os cacos se reuniram novamente, e eu podia ver o outro lado. Dei um beijo em Márcia, e mergulhei. Ao estar quase adentrando, eu ouvi:
-Eu te amo.
E caí do outro lado, após a viagem gelada, que transformou as partes lesadas do meu corpo em matéria comum novamente. Subi correndo, e vi minha tia sentada na mesa e minha irmã gritando por mim.
-Porque demorou tanto? – o tempo havia paralisado lá, enquanto eu estava do outro lado.
E assim os dias se passaram. Voltei ao espelho algumas vezes, e tentei tocá-lo, mas de nada adiantou. Fui embora após algumas semanas.
Um ano depois, eram férias novamente, e eu fui visitar minha tia novamente. Com saudades de Márcia, desci até o porão apenas para relembrar novamente. Fui até o espelho e vi um bilhete no chão.
-O portal está aberto e eu estou esperando por você.
Eu adentrei novamente e voltei ao mundo de Márcia. Lá também eram suas férias, e tudo parecia normal. Sem alertar ninguém, subi até o quarto dela sem entender como o portal se abrira novamente. Abri a porta e lá estava ela com um bebê no colo.
-Márcio, você voltou... Este é seu filho.
Eu não pude acreditar. Eu tive um filho comigo mesmo, e ele era idêntico a mim, afinal, o meu DNA e o de Márcia eram os mesmos.
-Está vendo, Márcio? Ele é a combinação perfeita dos nossos genes, ele que permitiu que eu abrisse o portal novamente, ele é a chave para o portal!
Não pude me conter. Dei um grande abraço nela e beijei meu filho. Eu chamei Márcia para conhecer o meu universo, e ela teve o mesmo choque que eu tive.
No outro mundo, tudo foi considerado apenas um fenômeno espacial a ser estudado, e as coisas voltaram à normalidade. Ninguém ficou sabendo da verdade.
E assim, nos víamos todos os dias, Márcia sempre abria o portal para me visitar. E os dias, semanas, meses e anos passaram. Eu me casei com Márcia no mundo dela e no meu. Hoje eu sou médico e ela, jornalista. Júlio está com dezesseis anos, e todos os dias nos reunimos. Não é uma vida normal – mas é a vida harmonizada conforme as regras do universo.