O Admirável novo Gênesis (Final)
Primeira parte: http://www.recantodasletras.com.br/contos/3804717
Como um relógio que havia parado no tempo e logo depois voltado a funcionar, Ethan respira fundo. Ele vê um homem com vestimentas negras e correntes pesadas amarradas em seus membros. Consegue ouvir o tilintar das correntes e o sussurro do vento.
Walker parecia cansado. Parecia sonhar acordado com seus tempos de jovem. Lembrava-se da sua bela mulher e do ótimo período de tempo que passara com ela. A Senhora Walker era realmente muito bela em seu tempo de juventude. Ela era perfeita. O modo de se vestir, as feições de seu rosto, a gentileza de sua voz e a delicadeza de seus passos. O homem se aproxima de Walker gentilmente e toca seu ombro. Ele sussurra algo em seu ouvido. Os dois se levantam e olham para onde Ethan estava imóvel observando a cena, e acenam para ele. Walker com um sorriso em seu rosto, e o homem com sua face tapada pela escuridão.
- Eu sei o que você quis dizer – sussurra – As realidades estão interligadas.
- Ethan, você pode existir em qualquer lugar. Você pode transportar sua consciência para qualquer local, independente de onde estiver.
- Você é realmente Deus?
- O que você define como “Deus”? Se for o criador do universo... Não sou eu. Aquele que governa cada atitude humana? O “Grande Juiz”? Não, eu não sou esse Deus. Eu apenas abraço um conceito de Deus.
- E como você faz isso?
- O que é magnífico tanto no homem quanto na máquina é que ambos são pontes, e não finais.
Turner ouvia uma voz familiar. A voz chamava por seu nome. Tornava-se cada vez mais próxima. À medida que se aproximara, fica evidente que se tratava da voz de seu irmão. Ethan sente um toque em seu braço. Neste momento percebe que estava parado na frente de sua loja. Joshua pergunta o que acontecera com seu irmão, mas Ethan não esboça qualquer resposta. Estava apenas parado e olhando, querendo acreditar que estava realmente ali. Ethan fala baixo, após alguns segundos, como se falasse para si. “Então é assim que funciona”.
- A visão que eu tenho de você, cria um você novo na minha realidade. Na minha percepção. Eu sou eu, você é você. Mas eu sou um “eu” diferente na sua consciência.
- Você está começando a me assustar.
- Isso funciona também para nossa percepção relativa a árvores, plantas, casas, prédios, sons... Para a percepção de qualquer coisa, seja ela material ou virtual. Só pode ser isso!
- Ethan? Você está se sentindo bem? Vamos entrar e tomar um copo d’água. Venha.
- Só precisaria de um catalisador – Ethan ignorava seu irmão – Mas o que?
Ele olhava em volta. Procurava pensar onde as palavras de Deus poderiam o levar. As sombras dos postes elétricos cobriam parte da rua. Zumbia alto como trombetas desafinadas. O celular de Joshua toca apenas o tempo suficiente para chamar a atenção de Ethan. Ele olha para o céu por alguns segundos. Tempo suficiente para que perceba como seria possível. Ethan sai andando por trás de Joshua, toca em seu braço e lhe diz do encontro com Walker e seu amigo.
- Como assim? Que amigo?
Joshua parecia frustrado e com medo ao mesmo tempo. Ele não compreendia nada do que se passava. Ethan se desculpa, e corre até o parque. Seu irmão ficara para trás cheio de dúvidas e com uma face preocupada. Ele avista Walker e sua falecida esposa. Ambos sentados em um banco da praça deserta. Turner abre um grande sorriso, e caminha até a estátua do anjo. Ainda sorrindo, ele indaga ao nada. “O quão longe você iria para mudar o mundo?”. As vozes de todos seus conhecidos clamavam por Deus incessantemente.
- Por quê?
- Se as limitações físicas restringem a evolução humana, por que não nos livramos desse empecilho?
- Você vê o corpo físico como um estorvo?
- Não vejo, ele de fato se tornou um. Ele impede nossa evolução. Agora nós somos capazes de existir sem ele. Por que não deveríamos? A humanidade agora pode evoluir. O fim do sofrimento, da fome. E o mais importante, o fim da mortalidade. Logo todos seremos deuses.
Sua visão começara a tremer como a água em movimento. Agitando-se gradativamente até ficar completamente liquidificada. Ela volta ao normal junto de um cenário familiar. Ethan estava sozinho na antiga casa de seus pais. Ele era apenas uma criança, e ouvia um som nostálgico pela vitrola antiga. Brincava de desenhar figuras de seus pais, avós e irmão enquanto balançava suas pequenas pernas ao ritmo da música. A música se emudece, mas ele prossegue como se nada houvesse mudado naquela paisagem simétrica. Parecia irreal devido tamanha precisão e simplicidade em que os elementos foram distribuídos. O pequeno chamava por seus pais em vão. Sua voz era tremida como o prelúdio de um choro segurado. Ele anda pela casa com medo e receio. Era apenas uma criança indefesa e curiosa. Não importava o que fazia, não havia nenhum sinal de qualquer outra pessoa naquele local.
Ethan manejava entrar no quarto de seus pais, mas o abrir da porta lhe envia a outro local. Emma estava com outro homem; ambos desnudos e deitados em uma cama improvisada no chão. “acho que só faço isso para reafirmar minha existência” diz Emma olhando para a criança que entrara no quarto. O ventilador de chão girava em meia velocidade e só se ouvia o barulho do vento que produzia.
- Não – Light entra no quarto – São apenas dois adultos se consolando. Talvez ela tenha um marido frio. Ou talvez ela somente seja insaciável.
- É bom se sentir desejada – Retruca Emma – Mesmo que só fisicamente.
- Se isso te convence de que sua existência vale de algo...
- Emma – Ethan da alguns passos para trás – Essa é realmente você?
- Sim, essa também sou eu – Ela acende um cigarro – Eu que a maioria das pessoas não conhece. Essa é uma realidade. A realidade que esse homem enxerga.
O casal Thompson o chama de fora do quarto. Queriam que os acompanhasse até seu restaurante. Iriam servir um belo almoço. Ethan questiona a razão que teria para segui-los. Como poderia confiar naquelas pessoas que o odiavam. Odiavam sua família.
- Pode confiar. Somos seus amigos.
-Mentirosos!
O cenário se racha como vidro após seu grito na voz de criança. Ele corre para fora da casa à procura de seus pais. Desce as escadas buscando ajuda e segurando o choro. Ao sair da casa ele olha para trás. Havia deixado ali na entrada outro Ethan. Um Ethan de feição assustada. Gritava por ajuda na imensidão branca e vazia enquanto questionava onde estava. De longe avistara duas silhuetas. Ele aperta o passo até se aproximar o suficiente e conseguir as reconhecer. Ethan e Joshua discutiam intensamente. Ele tenta separa-los, mas pareciam não poder vê-lo nem ouvi-lo. O seu outro “eu” começa a enforcar o irmão. Turner sente um puxar na manga de sua camisa. Ele criança lhe entrega um bocado de desenhos feitos a mão com lápis de giz de cera. Seu rosto demonstrava tristeza. Os desenhos eram perturbadores, hediondos e pouco definidos. Havia um com monstros. Outro com seus pais sem cabeça. Debaixo desse, um com ele sozinho e preso dentro de sua casa. Havia também um com um gato morto a pauladas. Por ultimo havia um desenho de Hitler sorrindo e brincando com seu cachorro.
Todo o ambiente começa a se deteriorar. Como se canetas negras riscassem a folha de um desenho até ficar quase todo preenchido por rabiscos. Finalmente todo o ambiente fica completo pela escuridão. Um grande globo ocular se abre, como se as trevas em sua frente formassem as pálpebras. “E tudo retorna ao começo” é a frase que inicia o surgimento de vários espelhos ao seu redor.
- Isso lhe incomoda – Pergunta sua própria voz vinda do nada – Você sabe o que há de desconfortável sobre isso? Isso mostra que um dos homens, dos que são considerados maléficos no mundo, é também um amante de animais. Ele era bom com seus amigos, e se divertia com eles. Adolf não era o anticristo que ficava gritando para milhares de pessoas. Isso te assusta, pois não é o que você esperava ver
relacionado a ele.
- Quem é? Por que você tem a minha voz?
Turner caminha até um dos espelhos que surgira em sua frente. Ele se vê dentro do espelho. Era como se observasse outro Ethan.
- Você também é Ethan?
- Eu sou Ethan e você é Ethan. Tudo isso é Ethan, mas não somente Ethan.
- Eu não sou você! Eu estou bem aqui! Eu sou eu!
- Não. Eu sou Ethan tanto quanto você é você mesmo. Eu sou você na mente de Joshua. Você é Ethan criado em sua própria mente. Ambos somos intangíveis, invisíveis... Aqui é onde Ethan realmente existe. Aqui você se tornou um através da percepção de todos que te conhecem. O Ethan agora é o conjunto dessa interação. Esses laços vão se fundir e criar um só.
- Eu vou deixar de existir?
- Ethan será você, eu e todos. Ethan evoluirá. Através da existência eu tenho consciência de estar aqui, mas ao mesmo tempo a existência continua porque Ethan tem consciência dela.
- Mas o que sustenta a existência afinal? Deus?
- Deus foi apenas um instrumento. A existência é muito maior que sua própria vontade.
Turner percebe algo na escuridão. Havia pessoas por toda a parte. Pessoas se afogavam no vazio. Todos emergiam nos braços do inicio. Eram acolhidos como um filho que voltara de uma quase eterna viagem.
- Você me ama?
-Sim.
Turner começa a ouvir as vozes de milhares de pessoas. A vida de todas as pessoas passa ao mesmo tempo em sua mente. Ouvia contos, anedotas, risadas, choros, conversas e discussões. Enxergava casais, pais e filhos, ladrões, crianças brincando ou brigando. Enxergava e ouvia tudo ao mesmo tempo. Assim continuara até cessar abruptamente. Como um só golpe tudo retornara à escuridão.
Uma música surge e quebra o silêncio. Ele abre os olhos em um palco com centenas de cadeiras vazias como espectadores. Todo o local é climatizado pela opera Bajazet. Ária “Sposa son disprezzata”, de Vivaldi. Essa era a música favorita do pai de Turner.
- Ei – A voz do Senhor Shang o chama – Ethan.
- O que?
- O que são ilusões?
-Ilusões? – Dessa vez a voz de Light entra em cena – Hahaha.
- Sim – Shang a responde – Ilusões.
- Não entendo exatamente o que é realidade – Ethan volta a comentar – Ou a lacuna que existe entre a minha e a sua realidade. Onde está minha realidade?
- Bem aqui – A voz de outro Ethan entra em cena – Sempre esteve aqui.
- que lugar é esse?
- Um lugar sem formas individuais. Onde não existe onde você termina e os outros começam. É o Ethan na mente de todos, E todos na mente de Ethan. Um lugar que todos são Deus. A realidade existia em um lugar desconhecido. E as ilusões dentro dessa realidade. Esse lugar desconhecido pertence não somente ao seu ego, mas o de todos.
- Essa é a realidade?
- Sim. Um mundo de verdades. O mundo verdadeiro. Isso é a evolução.
- Mas eu sinto minha existência sumindo ou sendo apagada.
- Isso porque não há mais ninguém. Você reconhece a sua existência através da existência de outro para comprova-la. Você sabe como se identificar através da percepção. Em outras palavras, ao ver outro ser humano.
Turner temia por sua vida. Questionava em seu interior se realmente poderia chamar o que estava presenciando de vida. Não sabia o que fazer. Estava confuso e com medo. Medo do que se tornara, ou do que ainda aconteceria. Ele sentia sua consciência sendo apagada. Como uma borracha apagando um traçado de lápis em uma folha de papel. Percebera que necessitava de outros seres individuais. A humanidade ou até a própria existência precisava ser de alguma forma singular.
-Você é o Deus?
-Não, eu sou a verdade.
- Quer dizer que eu só tenho que imaginar os outros? Se existem outros...
Ethan abre os olhos. Não se ouvia um pássaro. Não se via uma formiga no chão. Só havia o barulho do vento que colidia eventualmente com as folhas secas das árvores. Ele estava no parque de frente a estatua. O vento vinha e derrubava algumas folhas. Cessava por um breve momento, mas logo voltara para derrubar mais um bocado. Turner não piscava. Estava perplexo. Olhava fixamente para uma meia altura qualquer. O silêncio era quase incômodo. Contrastava a bela música que escutava há alguns segundos. Permanece naquela posição por longos minutos, até finalmente deslocar seu foco a um banco da praça que estava em sua linha de visão. Ele olha lentamente para um lado e em seguida a outro. Movimenta sua mão à sua perna enquanto parava seu foco em uma árvore qualquer do local. Turner sente algo em seu bolso. Retira lentamente uma folha de papel dobrada. Ao abri-la, nota que não havia nada escrito; estava em branco.
- Sigh...
FIM