NOSSO MUNDO CONQUISTADO
Meus pés doíam e sangravam, os calos já haviam se rompido há dias, não sabia como conseguia caminhar, apenas seguia como os outros em fila indiana sob o olhar metálico de nossos senhores. A minha frente ia uma jovem que talvez já tivesse sido bela um dia, mas agora era apenas um monte de ossos ambulante debaixo de uma pele suja e desbotada, atrás de mim um velho, pelo menos era o que parecia, mas talvez tivesse a minha idade, ele cambaleava de um lado para outro há horas e estava atrasando a marcha, de repente não agüentou mais e caiu. O que se seguiu eu já havia me acostumado a ver, um dos vigias, uma espécie de robô, cravou-lhe uma lança na barriga e o eviscerou ali mesmo, a morte não era imediata, mas era inevitável e longa, iguais aquele coitado havia vários pelo caminho e meu nariz já havia se acostumado com o cheiro de putrefação das carcaças dilaceradas sobre as quais pisávamos, às vezes ainda encontrávamos corpos agonizantes, implorando pela morte.
- Vou me jogar no próximo penhasco em que passarmos – disse uma voz de mulher atrás de mim, era a pessoa que havia herdado o lugar do velho na fila – não quero morrer dessa forma!
- Não vai adiantar – disse eu – eles vão suspendê-la no ar e com certeza deixá-la empalada em algum tronco de arvore para que leve dias para morrer, já vi isso acontecer.
- Mas se eu fizer isso à noite eles podem não ver.
- Esqueça, eles parecem enxergar em infravermelho, capturaram a mim e meu grupo a noite.
- E onde está seu grupo agora?
- Você está falando com ele – disse eu – os demais devem estar em um lugar melhor que esse.
Arrisquei a olhar para trás e ver minha interlocutora e me espantei, ela ainda estava bem apresentável, não muito magra, ainda mantinha quase toda a roupa e um par de botas, botas militares. A vida ainda brilhava em seus olhos, seu rosto ainda estava corado e o cabelo amarrado em uma bela trança.
- Seu grupo com certeza teve mais sorte que o meu – falei.
- Está enganado. Estão todos mortos agora, mas morreram lutando e não se debatendo como peixes fora d’água ou se escondendo como ratos. Na verdade muitos de nós estávamos tentando libertar outros como vocês.
- Bem, eu preferia ser rato a peixe, de qualquer forma nós dois somos peixes agora. Nosso destino parece ser mesmo a morte, que venha logo, já não me resta mais nada mesmo.
De repente ouvimos um grande zunido, os robôs vigias se colocaram em posição de sentido e grandes açoites surgiram em um de seus membros.
- Faça como eu – eu disse para minha nova amiga e rapidamente me agachei no chão abraçando as pernas. Ela aprendeu rápido e fez o mesmo.
Ouviu-e então um novo zunido e os robôs passaram a açoitar quem ainda estava de pé. Bem a nossa frente vimos um homem que não se abaixou sair da fila, ele foi então açoitado diversas vezes com mais violência até seu corpo se tornar um poço de sangue, mas como de praxe nossos algozes não o mataram, deixaram-no ali, respirando e esperando lentamente pelo fim.
- Por que simplesmente não nos matam e ficam com o planeta? – disse a mulher atrás de mim.
- Talvez não queiram o planeta, talvez queiram nos dar uma lição – essa idéia me ocorrera poucos meses depois da invasão.
- Como assim uma lição?
- Pense no que nós estávamos nos tornando. Se a raça humana um dia conseguisse se espalhar por outros mundos com sua sede de conquistas, suas armas e sua ganância, talvez seríamos os caras a serem temidos no universo. Eles devem ter mandado esses sujeitos aqui para se assegurar que isso não aconteça.
- Eles? – ela perguntou – não entendi o que quer dizer, você acredita que esses não são os verdadeiros invasores?
- Com certeza que não – disse olhando para os corpos mecânicos a nossa volta – esses são apenas algum tipo de soldados autômatos, programados para percorrer o universo em busca de ameaças, lembre-se que no início conseguimos destruir muitos deles, os verdadeiros invasores não se exporiam a tantos riscos.
- Você parece saber muito, o que fazia antes?
- Eu era médico veterinário, mas gostava de ler muita coisa, e você?
- Eu era enfermeira.
- Uma enfermeira em trajes militares, isso é incomum.
- Durante os últimos anos aprendi uns truques para sobreviver.
Os robôs ainda permaneciam com seus açoites armados em posição de sentido, pareciam esperar algo, as pessoas na fila apenas olhavam para o chão, todos queriam que acabasse logo o que quer que fosse.
E não demorou muito ouvimos novo zunido. Novos açoites e todos em marcha novamente. A nossa frente o caminho fazia uma curva fechada e tão logo as primeiras pessoas passaram por ela ouvimos gritos e lamentações.
- É, parece que o inferno é virando a próxima curva a esquerda – disse a enfermeira.
- Em breve saberemos.
Assim que passamos pela curva nos deparamos com o que parecia ser um campo de refugiados, devia haver milhares de pessoas, o cheiro era repugnante, mesmo a distância era possível visualizar vários corpos.
- Não é o inferno – disse eu – é um pouquinho pior.
Atrás do campo de refugiados estava um grande espaço aberto, parecia a pista de um antigo aeroporto, e nele um grande objeto brilhava refletindo o sol, muitas pessoas pareciam aguardar a vez de entrar dentro dele.
- Aquilo parece uma nave – para mim não poderia ser outra coisa.
- Acho que eles vão nos expulsar da Terra, seremos exilados em algum outro mundo.
Sim, eu pensava comigo, sejam lá quem eles eram estavam realmente nos expulsando de nosso lar. Fazia sentido, talvez alguma regra interestelar proibisse o extermínio completo de outras raças inteligentes, talvez agora nós, o que sobrou da humanidade, seríamos mandados para zoológicos alienígenas ou escravizados em algum planeta bizarro. Triste fim para a raça humana, será que tínhamos sido tão maus assim?
Adentramos o campo de refugiados, morte, miséria e desolação por todos os lados, nem um pesadelo seria tão grotesco. Os robôs deixaram de nos acompanhar e a fila indiana finalmente se desfez.
Olhei para a enfermeira e disse:
- Acho que vamos esperar pelo embarque.
Vista de frente a enfermeira era realmente linda, uma raridade, ainda mantinha vivo um olhar de tenacidade.
- Bem, talvez lá dentro a gente encontre os covardões que você falou – ela se referia a nave alienígena.
Procuramos um canto qualquer para dormir em meio a massa de desgraçados e nos colocamos bem juntos um do outro. Aquele corpo de mulher junto ao meu não despertava nada a não ser lembranças, tamanha a fraqueza do meu corpo. Mas adormeci, adormeci e sonhei com maçãs.
Pela manhã, na verdade não sei se era manhã, um zunido nos despertou, era a nossa hora, nos conduziram até a entrada da nave. A enfermeira tremia um pouco e eu agarrei sua mão.
- Pelo menos você não estará sozinha.
A turba seguia como uma marcha fúnebre, mulheres, homens, velhos e crianças, pareciam todos saídos de algum campo de concentração em Auschwitz. Os robôs nos vigiavam com seu olhar indiferente.
A porta da nave se abriu. Ouvi-se um grande murmúrio. Mesmo de longe pudemos visualizar lá dentro um ser diferente, não era um robô, parecia orgânico, mas é impossível descrevê-lo, realmente aquela criatura não era desse mundo, parecia nos encarar e, embora parecesse não ter nenhuma expressão, me pareceu que tinha repulsa e medo de nós.
- Seja lá quem for – disse a enfermeira – ele nos teme.
Não era só eu que tive a impressão. Na verdade todos a tiveram, ninguém na multidão demonstrava mais medo, seguíamos todos de cabeça erguida apesar de fracos. Quando passei pela criatura lancei-lhe um olhar inquisitor, posso estar enganado, mas acho que ele se encolheu um pouco. Essa constatação deu-me coragem e, continuando a olhar a criatura disse em voz alta:
- Morra de medo seu maldito, devia ter nos matado a todos quando puderam.
A criatura pareceu recuar um pouco frente aquela provocação.
- Realmente eles têm medo de nós – completou a enfermeira.
Atrás de nós um rangido, a porta da nave se fechava, olhei por sobre os ombros uma ultima vez a tempo de ver um pouco do azul do céu e da cor ocre da terra. A enfermeira apertou minha mão com mais força, ela parecia chorar.
- Adeus Terra – ela lamentou.
Sim, adeus Terra, esse planeta não nos pertencia mais.
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