Projeto Cidade Transversal - Ruptura

Sem sombra de dúvidas vivemos outro momento quando estamos na Cidade Transversal. Existe certo aniquilamento da psique da pessoa e, em seguida, um engrandecimento na própria estrutura emocional desta. Não sabemos, ao certo, o porquê da existência da Cidade Transversal, somente que o lugar existe como uma confluência da existência da realidade que está em nossa volta, mas, é algo muito mais além, pois interconecta as várias realidades que saibamos que existam ou não.

Observamos a cada dia que passa, se é que o tempo passa de alguma forma neste lugar, como as coisas vão se tornando cada vez mais complexas na Cidade Transversal. Vemos, por exemplo, questionamento perante a existência do ser e de como tal existência não invalida a própria vida por si. De como os sentimentos que os seres tem, em seus corações, ou almas, ou quaisquer coisas que tenham a mesma verificação humana, não podem ser combatidos e de que, volta e meia, eles estão ali para confrontá-los por uma vida inteira.

É inescapável a tentativa não fútil de tentar compreender aquilo o que somos, o que temos, para onde iremos e até que ponto podemos sobreviver. Em todas as espécies encontradas nos mais estranhos recônditos dos multiversos existentes, as perguntas são sempre as mesmas e isto acontece desde o humanoide mais primário – ou qualquer outro aparentemente próximo ao conceito de humanoide – até a raça energética mais avançada, as perguntas continuam as mesmas.

As coisas se complicam quanto mais ciência temos de nossa própria existência. O número de questões aumenta de uma maneira assustadora quando somos nós os próprios questionadores, mesmo que, em algum momento da evolução da espécie tenhamos parado no tempo com a crença de um ser superior, seja por causa de uma filosofia, seja por causa de uma religião ou qualquer outro pensamento que valha a pena ser constatado. Todas as espécies passaram pelos mesmos processos, tornando os universos algo estranhamente familiar.

Cada um passa por uma fase que, inexoravelmente, levará para outra fase e outra e outra e assim por diante, até o fim dos tempos, ou da própria civilização. Não podemos dizer que não exista um ser superior que nos vigia e quer o nosso bem, muito pelo contrário, ele existe e ele já passou também pela Cidade Transversal.

Este lugar já foi considerado por muitos, e ainda o vai ser, como uma espécie de purgatório, outros, como o passo quase final para o nirvana, para outros tantos como o Karadash Maroav e para alguns, apenas um local para se estar. Um local onde eles descobriram que pertencem a um universo muito maior que eles e que todos tem um objetivo a seguir em suas vidas. Cada lição é uma lição. Cada vida é uma vida. Cada amor é um amor.

Mas, como todos os lugares do universo, houve um tempo de cisão. Um momento breve e continuo e transcendental onde todo o momento de existência deixou de existir, onde o tempo parou de contar os segundos que fazem o espaço andar. Onde passado, presente e o futuro eram um só e nada mais eram do que o nada absoluto. Lembro-me ter passado por isso, lembro-me de ter seguido adiante e, como o próprio multiverso per se, contrai-me e expandi-me para rever os meus próprios erros, mas seguir em frente, sem pesar e dor.

Quem nunca passou por um momento assim? Quão grandioso o fosse, tão pequeno o fosse, mas, para a Cidade Transversal, não existem seres grandes ou pequenos, apenas seres. Que pensam, que sentem, que se envolvem, que evoluem e que se tornam muito mais daquilo que eles esperavam ser. E eles não tinham como escapar disto, pois este é o momento exato da vida e de toda a explicação a ela.

Estava face a face com este pequeno porém. Cumpria a minha única função aqui na Cidade Transversal no momento da ruptura e lembro como se ainda fosse hoje, o rasgo que eu senti na alma quando isto aconteceu.

(...)

Numa das partes mais distantes da Cidade Transversal caia uma chuva torrencial por entre os ermos dos grandes prédios e arranha-céus que cobriam quase todo o céu donde estava uma figura encapuzada que seguia freneticamente adiante de um beco escuro iluminado com parcas luzes brancas e vermelhas que davam um ar lúgubre ao lugar. Poderia ser noite ou dia, mas pouco importava naquele momento, pois a noite e o dia deram os seus devidos lugares a um momento outro de tempo.

Um eterno alvorecer ou entardecer deixava uma cor pálida no horizonte da Cidade e, dos mais antigos, aos mais novos, aquilo era uma novidade, pois nunca havia acontecido algo parecido naquele lugar. Era como se algo estivesse ali para acontecer. Um aviso de que mudanças estavam por vir e a chuva, a contínua chuva que não parava de cair servia para lavar as almas dos que estavam perdidos.

A figura olhou para a sua própria mão e uma espécie de luz saía de sua palma. De uma cor vermelho incandescente, números decaiam mais e mais, parecia ser uma espécie de contador de tempo, ou algo muito próximo daquilo. Ela então fechou os olhos e parecia se concentrar em algo, passou a mão por entre uma das paredes e com um sussurro, que parecia invocar alguma espécie de magia, uma porta que antes não existia apareceu por ali.

Com um movimento rápido retirou o capaz e deixou os seus cabelos livres quando assim adentrou no lugar. Com uma tez morena e longos cabelos negros e olhos tão escuro quanto as pérolas mais negras do mar, ela marchava vigorosamente por um outro corredor e, enquanto o fazia, podia ouvir as pesadas gotas de chuva percorrendo também o corredor e, para ela, aquilo era uma melodia que lhe trazia paz dentro de si.

Chegou, então, numa porta de madeira rústica que parecia ter sido feita a mão a longos anos atrás e ela estancou. Toda vez que passava por aquela porta alguma surpresa, agradável ou não, vinha a sua vida e aquilo mudava ela para todo o sempre, como toda mudança na vida. Tocou levemente os entalhes que perfaziam toda a estrutura da porta e lá havia algumas palavras escritas, em latim, disse uma pessoa certa vez para ela, ele sempre gostou de latim, uma das línguas mais diretas que existiam na espécie dele.

“Hominem etiam frugi flectit occasio” – “Em frente da arca aberta, o justo peca”

Era o que estava escrito e aquilo não poderia ser mais do que a pura verdade, certa acepção do que era aceito universalmente sobre os seres que vivem e respiram. Ela empurrou a porta e ficou frente a frente dele.

Os seus olhos pareciam semicerrados e quase mortos, a sua tez branca, barba também branca, dando-lhe um ar de sábio, mesmo não podendo ser considerado um e a muito já havia perdido todos os cabelos que estavam e sua cabeça, sorriu debilmente e levantou a sua mão direita que mostrava o mesmo marcador que tempo dela.

- Tempo... – E o contador diminuía a cada segundo. – Inexorável. Indivisível. Aquele que tece a nossa linha da vida e que nos guia rumo a um futuro, estamos no mesmo barco que muitos outros, mas, ainda assim, diferentes de todo o resto. O que planejamos para a nossa vida pode mudar drasticamente de uma hora para outra. E você sabe muito bem disto. – Falou numa voz suave que, por detrás, escondia um desgosto ímpar daquela situação. – Todos nós sabemos o que escolhemos de nossa vida, mas estas não podem ser feitas unilateralmente, se assim o for, o caos pode ser instalado.

- Como é o caso do que está acontecendo hoje da Cidade Transversal? – Perguntou a jovem, a sua voz estremecia a calma daquele sujeito, a quantos ciclos teria esquecido ela, mesmo esta não sendo ela? A quantos ciclos foi obrigado a lidar com outros “elas” das mais diferentes dimensões? Por que o universo é tão mesquinho, cruel, vil?

- Sim, como o evento cataclísmico que está por vir na Cidade Transversal. Foram destas escolhas que alguns fizeram, para o “bem” de todos, que o local está vivendo o seu maior momento de ruptura. Aqui não existem líderes para que escolhas possam ser feitas. A Cidade Transversal é o todo de um pouco e o pouco de um todo. Não existem eu sem nós e nós sem eu. Somos todos partes da Cidade, não somos nada sem ela, mas sem nós, ela não existiria. Forças uma decisão unilateral, faz com que toda a estrutura do espaço-tempo tente a dobrar àquilo, mas é como você tentar conter a emoção, que é impossível de ser prendido.

- E o que podemos fazer?

- Apenas conter uma parte daquilo que não podemos perder. – Disse ele. – Devemos tentar, junto com os outros que não decidiram por si mesmos, guardar tudo o que for necessário na Grande Biblioteca. Todo o conhecimento, tudo o que somos, tudo o que passamos a existir. A ruptura vai chegar, mas podemos nos prevenir quanto a isto. – Ele se levantou e analisou bilhões de dados que passavam rapidamente nas muitas telas que estavam na sala. – Dados e mais dados. Informações sem fim. A gravação de uma vida inteira num único dado. Mas aqui é uma interpretação surrealista daquilo o que realmente somos. É uma forma de tentar entender o que passa em nossa mente. A essência continua sendo essência que jamais pode ser extraída. E é só isto que podemos fazer.

- Nada mais?

- Por todo este tempo que vivi, tirei várias conclusões e, o que eu posso dizer é que, nada mais pode ser feito. E sabe o que é o pior de tudo? É saber o que está por vir e nada podendo fazer do contrário. Sabia que você iria aqui e teria muitas perguntas a fazer e, de uma forma ou de outra, eu poderia lhe responder por meio de enigmas, porque você é você e nada mais que isto.

- Senhor, o que você está dizendo?

- A ruptura da Cidade Transversal se deu não por meio de escolhas, estas são impossíveis de serem paradas, mas, porque, as pessoas são o que são. Na sua natureza, no seu ser, na sua essência, continuam a fazer os erros por meios tortuosos achando que estão certos e que, num futuro pregresso, verão os erros inacreditáveis que fizeram e não podem voltar atrás, porque o tempo não muda, o passado não muda, ninguém muda. – A sua voz estava completamente embargada e suspirou profundamente. – Cada um tem a sua oportunidade única neste único universo, mas, indivisivelmente, continuam a cometer os mesmos erros. Venho observando você há um longo tempo, minha querida, esperando o seu momento de ruptura, mas nunca chega, todas as versões e suas devidas representações chegam próximo à compreensão do ser, mas nunca o são.

Os olhos da moça se mexiam de uma forma contumaz. Ela estava tentando compreender aquela mudança de discurso que havia voltado diretamente para si mesma. Era como se toda a ruptura que estava por acontecer era por causa dela e somente ela poderia compreender o que viria a seguir.

- Não se esqueça que a Cidade Transversal é o seu próprio momento, que representa algo para você e somente para você terá algum significado. Este meu tempo passou ao longo dos ciclos. Sorrio toda vez que você vem a minha presença, e sinto um profundo pesar pelo meu eu ter passado o que passou, mas eu aprendi, enquanto que os outros ainda terão de aprender aquilo com você.

- Senhor?

- Todos nós tocamos PROFUNDAMENTE uns aos outros, mas somente alguns se deixam realmente serem tocados. Você nunca o permitiu que assim o fizesse, por algo que não conseguia compreender na época, mas, por agora, entendo infimamente. – Ele engoliu em seco, como se estivesse fazendo uma confissão para um padre ou alguém que conhecia a muito tempo e nunca teve a chance de se despedir realmente. – Agora, pergunto eu, porque não deixamos isto acontecer? Medo, covardia e de uma má-interpretação de nossos sentimentos e dos sentimentos alheios. Não queremos dar vazão aquilo que sentimos porque, quanto mais nos abrimos, mais frágeis nos tornamos. – Continuou ele. – E ninguém, em momento algum, quer se tornar frágil, dependente de alguém que, por menos que queira, vai te magoar profundamente. A ruptura estaria aí. Uma convergência do entendimento do que é a vida como um todo. Por longos ciclos perdi parte da minha alma porque os outros não compreendiam o que eu sou e, por isso, vim parar aqui. Não que eu seja algum sábio ou algum suprassumo ser, mas alguém que teve um breve vislumbre de doação espiritual que poucos assim o fizeram ao longo de suas vidas. Aqueles que querem escolher por si mesmos o destino da Cidade Transversal estão destinos ao fracasso inequívoco. Eles ainda não entenderam que a Cidade vive da doação daquilo o que somos e não daquilo o que queremos ser. Assim como é sentir. Doamos aquilo o que sentimos e não aquilo que escondemos sentir. Não devemos puxar e repuxar algo que está morto, mas compreender e aceitar de coração aquilo que nos é dado, poucos, em nosso planeta, tiveram vislumbre sobre esta ruptura e muitos tentam seguir em vão, pois são hipócritas por natureza. – Algumas parcas lágrimas pareciam percorrer o seu rosto velho e carcomido pela amargura que lhe pesava os anos que se passaram e que ele deixou de contar a muito tempo. – Gostaria de outros, de nossa espécie, pudesse ter sentido o que eu senti, mas como fazer isto, se ninguém quer fazê-lo?

- Posso lhe dizer que você me ensinou bem. Compreendo pequenos momentos dos vislumbres que tanto me diz, em todas às vezes que o senhor se sentou junto com todos nós e falou sobre o que estaria por vir e o que deveríamos fazer. E eu estou aqui, não estou? Não voltei atrás dos ensinamentos e sigo-o fielmente.

- Ninguém pode seguir ninguém fielmente. Apenas o absorver do pensamento é o bastante, pois é a partir daí que a semente poderá nascer, crescer e fortalecer. Nunca lhe pedi para me seguir, apenas me acompanhar na árdua jornada da vida e criar um fomento em seu próprio pensamento. Você terá que seguir em seus próprios pés para compreender o todo. – Falou ele enquanto parecia digitar um ou outro comando num dos painéis.

A moça parecia não compreender bem o que lhe fora dito, ou, pelo menos, não conseguia perceber as nuances em todo aquele assunto. Por que ela havia sido chamada, afinal? Por que ela estaria ali a não ser trabalhar para ele e impedir que a ruptura se seguisse?

- Você é a minha própria ruptura – Disse ele seguidamente. – Por anos você me persegue e eu persigo você. Por anos e por muitos multiversos, mais do que você pode contar, as nossas almas se cruzam de tal maneira que me aquebranta de uma forma inimaginável. Você configura aquilo que eu deveria passar para saber como eu deveria me doar aos outros e neste momento, a dor seria indescritível, mas, somente assim, daria um passo para frente. Compreenderia que poucos iriam me compreender em essência. E que eu usaria este momento de sabedoria para algo muito maior, a ruptura da Cidade Transversal.

- Senhor, o que você diz, metade não consigo compreender. Como eu posso ser algo importante para alguém que eu desconheço completamente?

- E é isto que você é... alguém que sempre me desconheceu e sempre fez as escolhas erradas... mas, isto não importa mais, pois a ruptura está por vir e não mais podemos impedir isto. Agora vá criança, vá fazer sua parte e junto o máximo de pessoas possíveis e leve-as para a Grande Biblioteca.

- E o senhor?

- Ainda tenho outras coisas para fazer... ainda temos um pouco de tempo, adeus.

Ela gostaria de poder falar mais alguma coisa, mas sabia que nada mais adiantaria, não sabia explicar direito o porquê, mas estava no amago do seu ser. Ao sair, trancando a porta, o velho ficou sentado próximo aos monitores, suspirou pesadamente e esfregou os dedos em suas têmporas.

- Um dia ela vai aprender... um dia ela irá saber realmente o que é

preciso de saber. Um dia, alguma versão dela deixará de ser infantil e fará as escolhas certas, ou nada disso... um dia... quem sabe.

(...)

A ruptura se sucedeu um pouco depois daquela conversa. Não saberia precisar ao certo em quantos dias, meses, ou até mesmo anos isto realmente aconteceu, mas simplesmente aconteceu. Perdemos muitas vidas, muitos ecos de um tempo infindável e que nunca mais retornaram, não, pelo menos, do jeito que era para ser.

Se um dia for necessário, contarei as batalhas que vieram na Ruptura, porque uma história precisa ser contada.