Projeto Cidade Transversal: Faces
Além de qualquer certeza, existe a dúvida, e nestas dúvidas existem aqueles que, simplesmente, não querem acreditar. Mas no que não acreditar? Por que não acreditar nas coisas que estão na nossa frente? O espaço é infinito, assim como o tempo, e ficamos maravilhados com isto, mas, muitas vezes, as facetas que estão inerentes em um ser vivo é algo ainda mais fascinante.
Devon havia chegado na Cidade Transversal de uma forma diferente dos demais. Alguns foram para lá como escolhidos, outros quando estavam em sonhos e tantos outros quando morreram, mas Devon foi para lá de escolha própria, pois não aguentava mais o lugar onde morava, da falsidade que as pessoas lhe transmitiam quando ele conversava olho a olho, toque a toque. Alma a alma. Porque aqueles haviam se tornado apenas um vazio depois de milhares de anos de evolução social?
Ele se sentia completamente sozinho no lugar onde estava e lutava desesperadamente para sair dali. Num momento estava no seu quarto, num outro num canto da Cidade Transversal. Os seus olhos não conseguiam traduzir tudo aquilo que estava ao seu redor, parecia não conceber que a realidade é apenas uma transição de lugar para o outro e a barreira que lhe cerca não é controlável por sua mente, ou pela mente de quaisquer outras pessoas.
Ao se levantar e fechar e abrir os olhos dezenas de vezes ainda não conseguia acreditar no lugar onde estava, mas, o mais interessante e aterrador para ele era a quantidade absurda de pessoas que ali estavam e de como eram diferentes cada uma delas. Estava com certo temor de sair do lugar onde estava até que alguém se aproximou dele.
- Devon, certo? – Perguntou uma moça aparentemente da mesma raça que ele. O que lhe atraíra fora aqueles longos cabelos negros e os seus olhos penetrantes. – Ele nos avisou que você chegaria a qualquer momento, neste lugar.
- Como? Onde?
- São perguntas comuns para os muitos visitantes da Cidade Transversal. Sim, este é o nome deste lugar onde você se encontra neste exato momento. E o como? Digamos que existia uma certa necessidade para que você estivesse neste lugar, neste exato momento, para que, assim, pudesse abrir a mente para as mais diversas possibilidades.
A voz que saia daquela boca era de um veludo ímpar e deixava Devon estonteado, mas era o seu sorriso, depois de cada sentença, que fazia ele se sentir mais leve, e, ao mesmo tempo, concentrado no dançar da boca e da língua daquela jovem. Era algo inexplicável, pois nunca havia se sentido daquela maneira próximo a qualquer outra da sua raça, sentia, na verdade, um certo desprezo por todos os outros.
- Sei que existem muitas dúvidas na sua mente, e, posso lhe dizer, muitas delas não serão respondidas, pois nem todos os mistérios que nos rodeiam podem ser revelados de forma apropriada, precisamos e necessitamos destes mistérios para conseguir enxergar a vida com outros olhos... mas, vamos... – Disse ela. – Vamos seguir em frente.
Devon se levantou e seguiu aquela jovem que tinha um “q” de menina. O seu corpo era esbelto e delineado, parecia, realmente, mais uma menina que uma mulher, mas o seu andar teso era seguro e incomum para uma menina da provável idade dela. Ela andava silenciosamente e um pouco a sua frente e mesmo que pudesse ser chamada de menina, tinha uma certa aura de mulher em todo o seu resto.
- As pessoas, na Cidade Transversal, vem e vão. Não existe uma explicação plausível do que realmente acontece aqui e do que deveria deixar de acontecer. Ela simplesmente existe para dar explicações e aplicar noções de como as pessoas não são tão grandes assim, mas, ainda assim, são o tesouro mais importante de todo o universo.
- Cada pessoa?
- Sim... cada pessoa. Cada um que você encontrou ao longo de sua vida dão-lhe uma assinatura, uma marca registrada de sua própria faceta. Você, antes de tudo, reconhece uma parte de si naquelas pessoas nas quais você conversa e isto lhe dá uma certa satisfação por ter pessoas iguais a você. Veja, por exemplo, os prédios que nos rodeiam agora. – E apontou para a avenida onde estavam e ao redor deles, existiam prédios dos mais diversos formatos e eixos, alguns conhecidos por Devon, outros bastante diferentes. – Estes prédios representam uma associação da realidade dos seres que estão em nossa volta. Uma espécie de espelho congruente da alma que transgredi o espaço-tempo. Somos um amontoado de pensamentos caóticos que querem, na sua integralidade, fazer parte do complexo da vida. – Disse de uma só vez e sem perder o folego. Devon ficou bestificado com tal nível de sabedoria que saía daquela boca linda e intransigente.
- Como você sabe disto tudo? – Perguntou ele impressionado.
- Todos que vem e vão para a Cidade Transversal sabem um pouco de tudo que precisa para ajudar um e outro que aqui se encontra. O que eu sei, passei por Ele antes, e Ele – apontando para o fim da Avenida onde uma Grande Casa, agora, aparentemente Abandonada – passou por uma Longa Jornada até chegar aqui. Vi-o por um breve momento de minha vida e soube que aqui eu ficaria.
- E o que vem a ser a Cidade Transversal?
- A representação de todas as consciências de todos os universos conhecidos e desconhecidos. – Disse num só folego. – As confluências dos pensamentos chegam aqui e é daqui que os sonhos que eu, você e quintilhões de pessoas dos amplos multiversos, temos todas as noites. Aqui é o ponto focal onde os sonhos e as realidades se tornam pares e amantes. Todo o eixo de uma vida transcende a este ponto. Quando lhe dizem que, ao morrer, você acaba por ver um flashback de sua vida, na realidade, você estaria passando por uma parte do terreno que constitui a Cidade Transversal. Todas as suas lembranças, tudo o que você foi e tudo o que você será, estará aqui, registrada de uma forma ou de outra. – E sorriu, dando o seu braço matreiramente e ele, de bom grado, segurou com um sorriso de volta. – Venha aqui. – Eles estavam na entrada da Grande Casa. E vários escritos e painéis estavam nos muros que rodeavam a Casa, onde um jardim majestoso se estendia para além do horizonte e uma pequena rua ia até a fronte da casa que se misturava de cores de prata, ouro e negro, cada qual mais puro que o outro, eles andaram por entre uma das paredes do muro e lá haviam desenhos, pichações, molduras ou escritos de diversos formas e línguas. – A história de cada um. Você tem duas histórias, uma no qual estará marcado para sempre na vida de cada pessoa e a outra que você registra em sua alma imortal e que, eventualmente, dá uma pequena passagem na Cidade Transversal.
- Aqui é o Céu? Eu morri, ou algo do tipo? – Agora Devon sentia um certo medo real, no qual sentia as suas mãos formigando e uma tontura, e se lembrou que antes de dormir, havia tomado pílulas demais para se desligar um pouco da sua realidade torturante que era a sua vida.
- Não. De forma alguma, esta nunca foi a nossa seara. Ali são outros que estão trabalhando para confortar a sua alma, julgá-la – caso você acredite no purgatório – ou, um breve momento de tortura, caso acredito numa forma de inferno. Este é um conceito no qual todas as raças tem, de uma forma ou de outro. E nossas searas são completamente separadas. Aqui lidamos com o presente da sua alma, não o passado de uma vida anterior ou o futuro de uma vida que virá. Tratamos do machucado da ferida que está aqui. – E apontou-lhe o dedo no coração de Devon – E agora. – E eles voltaram para frente da Grande Casa onde uma espécie de Vitral poderia ser visto um pouco ao longe. A figura de um homem careca e com uma roupa de cor negra e vermelha podia ser vista. – Ele foi um dos maiores dos Visitantes e ele me ensinou tanta coisa. – Disse com uma forma de referência com um sorriso no rosto. – Ele me explicou como somos um amontoado de Faces, de fronteiras e de que somente nos abrimos para cada um que queremos realmente bem... e nos disse, principalmente, que as pessoas ao nosso redor estão presas no paradigma que para darem, precisam receber.
- Ele era um sábio?
- Um filosofo-guerreiro. Uma alma atormentada por mais de 300 anos vida na Longa Jornada até o fim dos tempos. Ele foi temperado na escuridão do espaço e pelo ardor do tempo e nos mostrou que não existem escolhas certas ou erradas, apenas as escolhas que devemos seguir. Ele passou por aqui e peregrinou pelos locais mais íngremes da Cidade Transversal. Conhecei mais a si mesmo do que os outros Anteriores. Ele foi uma dádiva e uma maldição, como muitos gostam de dizer. Uma quantidade enorme de outros Visitantes vieram depois deles, não por escolha nossa, mas porque a Cidade Transversal assim o quis.
- Ele parece um Jaradiano. – Concluiu Devon depois de uma olhada mais acurada do Vitral. – Mas eu nunca vi ele antes.
- Porque ele não pertence a nossa realidade. O que é uma raça num lugar, se transforma em algo completamente diferente num outro. Ele é um humano, mas, os pensamentos deles transcendiam a limitação física de uma espécie. E ele, no final de tudo, fez o que tinha de fazer e a Cidade Transversal se transformou numa maré de faces. O que eu sou, e o que eu aparento ser para você, é algo que todos nós somos uns para os outros. Após a visita dele, a Cidade quis expor a sua real face para todos os que aqui visitavam, e ela moldou a sua nova máscara para a nova realidade que ela era.
- Acho que eu compreendo... – Disse Devon um pouco pensativo enquanto olhava para os olhos de um castanho escuro que tentava analisar os seus próprios. – Acho que eu sei o que você quer dizer com isso.
Os dois andavam enquanto continuavam a falar até chegarem numa espécie de bar onde se sentaram e cada qual ficaram se encarando.
- Nós nascemos sem faces. – Continuou ele. – Mas precisamos ser algo, em parte, daquilo que os outros nos esperam que sejamos e, assim, criamos subpersonalidades de nossos egos, mesmo que nunca queríamos fazer isto, mas precisamos. – Disse com uma voz embargada. – Somos brutos, a priori, mas nos mostramos bondosos e simpáticos quando nos afeiçoamos a alguém. Ou somos simpáticos para, depois, mostrar a nossa natureza no seu estado mais bruto. Temos de nos esconder para não nos machucamos demais, ou relevamos aquilo que somos.
- Se você observar bem, é isto que nos é no cotidiano, todos os dias. Nós queremos ser sinceros, mas não conseguimos, porque é assim que a realidade nos impõe que sejamos. Mas temos de abraçar esta diferença e nunca, jamais, desistir daquilo que somos...
Devon olhou mais profundamente nos olhos daquela jovem e teve de perguntar.
- Quem é você?
- Sou aquela que as nossas faces só compatibilizaram, mas não nos era possível nos unirmos. E você, por desistência da sua própria realidade, acabou por nos afastar por completo...
- E o que eu quero?
- Ser salvo... – Disse ela. – Não pensar negativamente sobre tudo o que você é. E aqui você está....
- Peço desculpas pelo que eu fiz...
- Você não precisa de desculpas, pois você fez o que tinha de fazê-lo, porque estava em seu coração. Não pude contribuir porque o meu coração não poderia ir além daquilo que eu queria que fosse. Não poderia trair a minha própria essência, mas saiba que, por mais tempo que eu deveria eu te amei.
- Não tanto quanto eu te amei, por todas as faces que você me mostrou e me impressionou...
Uma chuva fina começou a cair dos céus da Cidade Transversal, Devon e ela seguraram as mãos e a Cidade deixava correr lágrimas de alegria naquele momento único e singular.
“A alma é como várias camadas, as vezes somente as mais suculentas são mostradas, mas as mais lindas são aquelas que se escondem perto do amago do coração.”
Velho dito. – Autor desconhecido.