Projeto Cidade Transversal: O Sorriso
O tempo voa. O tempo é um bandido. O tempo cura todos os males... o tempo acaba... foram com estas palavras que lhe foi relevado onde eu estava. Não estava muito bem situado como ou porque vim parar neste lugar. Um lugar, lhe explicaram, resolvia todos os nossos problemas e nos dava vários outros novos nos quais não podíamos voltar atrás.
Observou as inúmeras pessoas ao seu redor e via o contingente quase infinito delas que ali existem.
- Pelos Profetas – pensou ele. – Como pode existir esse número de seres num lugar como este? Na verdade, que diabos de lugar é este afinal?
Enquanto caminhava viu que, além dos prédios existentes que ele compreendia que eram possíveis de serem construídos, outros quão sem números de prédios, se é que ele podia chamar assim, eram totalmente estranhos. Como foram erguidos, ele não podia dar nenhuma certeza, a começar se o próprio lugar existia de fato.
Alguém tocou-lhe o ombro e ele instintivamente se virou.
- Confuso? – Perguntou um homem que estava a sua frente. Ele parecia ter uma idade relativamente avançada, mas os seus olhos transmitiam uma jovialidade ímpar. O homem sorriu e dera-lhe uma tapa em seu ombro. – Não se preocupe, aqueles que aqui chegam sempre tem um pequeno problema de desorientação. – O homem então apontou para os dois seguirem num caminho a frente.
- As coisas são como são. Por cada escolha que fazemos e, se as escolhas são o que são, elas nos levam a algum lugar. E é aqui que alguns chegam. Neste lugar central onde as coisas são o que deveriam ser e, de fato, grande parte será. Ah, desculpe-me, fui um tanto quanto mal-educado, meu nome é Nico, Nico Vera, sou, o que você poderia dizer, um dos guardiões deste lugar e não, por favor. – Disse meneando a cabeça negativamente com um sorriso. – Você não precisa dizer o seu, nós conhecemos ele, nós conhecemos o legado que ele o é.
- Você não conhece o legado que um nome pode vir a ser? Toda a pessoa possui um nome que caracteriza a si próprio. Sim, certo, você pode dizer que é uma escolha aleatória que o seu pai e sua mãe fazem assim que você nasce, mas, na verdade, existe uma pequena linha, um fio invisível que faz com que sejamos parte daqueles nomes que nos é escolhido. Outras tantas vezes, devemos escolher novos nomes para nós mesmos e seguir um novo caminho, mas este não é o caso, pois, aqui, não é a minha história que eu devo contar.
Os dois já haviam atravessado uns bons cinco quarteirões e quanto mais andavam mais e mais estranhas as ruas ficavam. De um lado havia um prédio de, pelo menos, 1000 andares e que ocupava uns oito quarteirões, do outro um enorme descampado parecia ocupar quase um horizonte inteiro.
- Se existe uma explicação plausível para este lugar? – Perguntou Nico espantado com o homem que estava do seu lado. – Sim, claro que existe. Para tudo há uma explicação, mas será que precisamos de explicação para tudo? Devemos explicar o porquê amamos? O porquê admiramos demais uma determinada pessoa, coisa ou ato? Ou o porquê odiamos tanto não sabermos de nada ou quando alguém tenta passar uma rasteira sob nós? Existem explicações e explicações e muitas delas não nos é realmente dadas.
Eles estavam agora próximos a um coreto numa enorme praça. O céu estava numa tonalidade azul piscina indescritivelmente estranho, onde naves espaciais, dragões e pessoas voavam livremente. A frente deles a praça se estendia como que uma enorme lagoa onde várias espécies de seres humanoides pareciam estar distraídas de tudo e de todos, cada qual fazendo coisas que deveriam fazer ou nada faziam, apenas sentados num banco ou a sombra de uma árvore.
- Mas porque? – Perguntou o homem enquanto se sentava num banco. – Qual é o proposito deste lugar? Por que eu estou aqui?
- Para entender as suas próprias escolhas. Para entender o significado que foi a sua vida.
- Espere um pouco... eu estou morto? – Perguntou ele indignado. – Como eu posso...
Nico o interrompeu com uma risada e depois se sentou do lado dele.
- Se você estivesse morto, o quão ruim isto seria para você depois de todas as escolhas que fez? Você resmungava, por um momento, sobre a sua vida e sobre todos ao seu redor. De quão infeliz você o era e, agora, acharia ruim por estar morto?
- Eu... não é bem assim... mesmo que eu mal dissesse que não gostava da minha vida, que preferia a morte do que estar vivo, não era bem assim que eu queria estar, eu tinha muito pela frente...
- Então, você poderia dizer que estava satisfeito com a sua vida?
- Claro que não.
- Por que?
- Porque as coisas não saíram do jeito que eu queria que tivessem saído... de tudo o que eu fiz, ou do que eu deixei de fazer, acabei indo para o lugar errado, por todas as escolhas que eu tomei... e me vi, em parte, num beco sem saída.
- Mas infeliz?
- Pelo que eu passei, por um momento, era feliz... nunca pensei que pudesse ter conhecido alguém que fosse indescritível em quaisquer palavras que eu conhecesse. Por mais que eu tentasse, sempre via uma nuance nova que nela existia. Sentia-a renovado por sua presença, pelo seu cheiro, pelo seu olhar.
Nico dera um sorriso e, em seguida, espreguiçou-se por sob o banco. Respirou longamente e ficou apreciando um pouco a paisagem.
- Muitas vezes, os humanos são engraçados. Batalham por seus homens e suas mulheres. Enchem-lhes de elogios e carinhos, mas, depois, enchem-se disso, é como se o prêmio não valesse mais a pena. Antes sequiosos, ficam desleixados. Antes amorosos, viram pessoas apáticas. Não sei se este foi o seu caso, mas já vi dezenas de centenas de milhões de casos parecidos assim.
- Não posso deixar de concordar. – E também se encostou no banco. – Não que eu não tenha batalhado por sobre ela, mas eu fiquei em dúvida cruel por muitas vezes do que eu deveria fazer. O meu coração dizia uma coisa, mas o meu cérebro era totalmente contra quaisquer escolhas que eu fizesse. Por mais que eu fosse contra mim mesmo, não conseguia deixar de vislumbrar ela. Pode me chamar de tolo se quiser.
- Ninguém é tolo ou sábio o bastante. Tudo o que temos é tudo o que somos. Queremos, sempre, ter alguém por igual ao nosso lado, pois, muitas vezes, somos egoístas conosco. Queremos alguém por igual para ser o nosso espelho de nossas escolhas e não alguém contrario a nós. – Disse Nico. – E sempre somos temerosos com opiniões abjetas dos outros. Os humanos tem essa tendência natural de levar em conta a opinião dos outros, sem que isso, concretamente, nos dê algo de volta.
Algumas nuvens agora encobriam o local onde eles estavam deixando um pouco mais escuro. O homem pode ver que existiam vagalumes das mais diversas cores vagando por entre as muitas árvores que havia no parque. Então começou uma chuva fina obrigando os dois a ficarem abrigados por sob o coreto.
- O que você pensava afinal?
- Como assim?
- O que você pensava sobre a pessoa? Sobre o momento, se é que tinham algum? Se deixou levar pelo fracasso que seria uma escolha sua? Depois de meses e meses de análise das mais diversas variáveis que tangenciavam na sua mente?
- Desde o primeiro momento que a vi... eu pensei numa infinidade de razões, de movimentos sobre o que ela era e a sua existência. Nunca pensei que, pelo que ela era, eu pudesse sentir um ardor sem igual no coração. Não estava mais tanto esperançoso por quaisquer motivações sobre relacionamentos de qualquer tamanho. Na verdade nunca tive pretensões de nada. Eu seguiria o meu caminho e, com sorte, encontraria alguém no qual eu pudesse não depositar esperanças, mas de amar verdadeiramente.
- E não é isto que tentamos sempre fazer? Que a humanidade teimosamente é tendência a fazer...?
- Certamente..
- Mas você estava falando sobre ela...
- Sim... – A chuva começou a engrossar cada vez mais, mas o coreto era grande o bastante para não deixar a chuva molhá-los, então os dois ficaram no meio do local, sentados, enquanto viam as outras pessoas se abrigarem por debaixo de árvores e outros coretos. – Maravilhosa, magnifica, estonteante, mas, como qualquer outra pessoa, tinha os seus defeitos...
- Todos nós temos os nossos defeitos. Não existe perfeição, por qualquer que ela seja ou o que quer que faça, não existe perfeição. – Disse Nico. – A perfeição é a perfeita piada para aqueles que querem achar que estão acima de quaisquer outras pessoas. Podemos apenas seguir um sonho, um sonho no qual nem sempre pode ser alcançado. – Concluiu ele. – Ela, pelo visto, foi muito importante para você.
- Ela o foi... digo... ela o é. Por que você fala dela como se estivesse no passado?
- Desculpe, na verdade o tempo deste lugar me deixa um pouco perdido. Os eventos que aconteceram, talvez nunca hão de ocorrer ou já ocorreram e, você está aqui para tentar entender o porque. – Nico se levantou e tocou numa única gota de chuva, carregando-a vagarosamente por entre os dedos e, em seguida, colocando-a entre os dois formando uma minúscula, quase milimétrica, poça d´agua. Da pequeníssima poça ela começou a ficar maior, ficando do tamanho de um balde raso que refletia, naquele momento, a imagem dos dois. – Neste lugar vemos os reflexos de todos os eventos possíveis, se assim observamos bem o que acontece conosco.
- Eu estou morto ou não estou?
- Vamos dizer que, aqui, é apenas uma fase de transição de realidade – Respondeu Nico. – Onde o foco de um todo se encontra aqui. Temos a oportunidade de pensar a respeito daquilo que somos... vide... por exemplo, o reflexo que foi, ou é, ou será, a sua vida. Sinto, o tempo, como todo o tempo o é, confunde muito quando se passa tanto tempo sem imaginar como ele funciona. E, respondendo a sua pergunta, você imagina que está morto? Ou você quer que eu lhe dê uma tapa na cara para provar que este momento de agora é a realidade na qual você está vivendo?
- E como eu posso considerar isto? – E apontou com a cabeça ao redor donde estavam.
- Naquilo que você achar melhor, - respondeu Nico. – Como uma vez você mesmo falou, a única limitação humana é a sua ilimitada imaginação. – Disse por último enquanto observava a poça d’agua no meio dos dois. Imagens se contorciam e se formavam ao longo de pequenas ondas que pareciam que iriam entornar a água daquela poça.
O homem observou também aquelas imagens que se formavam. Para ele era difícil imaginar que poderia ver algo de diferente daquilo que já vira antes em sonhos mal acabados, em palavras que não foram propriamente ditas e anseios que não foram apaziguados. Mais que isso, parecia que podia ouvir risadas, ver um belo sorriso e aquilo lhe cortou o coração. Sentia um duplo sentimento naquele momento, era como se pudesse tocar, mas, ao mesmo tempo, era completamente proibido de fazê-lo. A sua mente começou a tirar-lhe a realidade donde estava e mergulhar naquela poça, de voltar ao passado e desfazer os todos os males que criou para si, não ser a mente fechada, o coração maldito que fez de si mesmo.
O sorriso... aquele feitiço que lhe fez cair pedaço por pedaço por sob si mesmo. Antes achasse que fosse completamente inquebrantável, mas não passava de um ser como outro qualquer, como outro qualquer.
- É assim que você se vê não é? – Perguntou Nico enquanto as imagens continuavam a ir e vir.
- Sou apenas mais um na multidão. Mais um que se achava invencível e que não precisava de ninguém, nunca precisei, até perceber o quão errado eu estava, de estabelecer contato com a mais incrível das criaturas que existiu na face da Terra para mim. Pelos Deuses, eu arrancaria o meu coração por ela, isso é um tanto meloso, eu sei, mas é assim que as coisas são, não são?
- Claro que não poderia ser diferente, - Disse Nico. – No próprio amor está a nossa maior fraqueza e a nossa maior força. É nele que reside todos os nossos sonhos e anseios. Medos e sentimentos puro. A nossa esperança e nosso temor. É nele que conseguimos conseguir tudo que queremos, mas, também, que podemos ser destruídos no menor movimento. Aquele que ama pode também odiar tão plenamente...
As imagens continuavam a se transformar cada vez mais, algumas lhe eram bem conhecidas, outras ele nunca tinha visto em sua vida, ou...
- Nico, o que são essas...
- Imagens? São eventos que poderiam ter sido, ou que poderão ser... tudo depende das escolhas que se farão... do seu próprio eu sobre o que pensa sobre ela.
- Mas as decisões não cabem tão somente a mim, cabem?
- Claro que não... a vida é um cabide de escolhas, sem serem certas ou erradas, apenas são escolhas, que, por sorte, podem encaixar-se como engrenagens perfeitas na vida de outras pessoas. Nisto só depende da escolha de cada um e de como cada um a batalha nesta luta atroz que é a vida para conseguir o seu intento.
- Compreendo. – O seu olhar ainda vagava por aquelas imagens e vira, por um momento, algo muito mais além que conseguiria imaginar e sentiu algo no coração. Não era um sentimento de pesar de algo perdido, mas uma alegria que estava escondida e que não era usada por muito tempo. – Depende dos dois, mas, também, temos que nos fazer valer. – E sorriu.
- Exatamente. – Disse Nico, - Este é um dos motivos por você está aqui, para compreender que no seu próprio egoísmo você pode por tudo a perder. Não se perca nesta noção de realidade que você é somente você. A sua alma sempre será solitária até que encontre outra que a complemente e tornem-se uma só. Neste momento... você pode se decidir, pois, aqui, você encontrou o seu objetivo.
- Abrir o meu coração...
- Sim...
- Por ela...
- Exatamente...
- Onde o tempo é o bandido que cura qualquer ferida...
Então o homem acordou suado, a sua respiração estava completamente entrecortada. Será que tudo aquilo fora um sonho que a sua mente vislumbrara para ele? Será que tinha imaginado aquilo tudo? Mas, foi então, que sentira um perfume que a muito não havia sentido. Ouvia sons, barulhos, formas, pessoas e um rosto... e o perfume... um perfume adocicado, de pitanga preta...
E um sorriso que lhe fez voltar à realidade. Um sorriso de segunda chance. E, também, ele sorriu como nunca tinha feito antes.