Projeto Cidade Transversal: Escute a Chuva
O vidro que estava a frente dele parecia frio ao toque e ele não ousou tocá-lo novamente. Toda vez que o fazia sentia uma arrepio ímpar percorrer todo o seu corpo até chegar num ponto cego que ele não compreendia bem onde era.
Os passos que ele fazia no carpete donde estava eram incomumente comuns, coisa que ele não esperava que viesse a acontecer de forma contínua e por igual. Sabia, na verdade entendia que aqueles sinais eram de que alguma coisa estranha estava acontecendo ali.
- Não é por menos. - Disse uma voz grossa e masculina por entre as sombras. - Que muitos não se deixam enganar com aquilo que lhe passa ao seu redor. Bem que tentamos melhorar a realidade como um todo, mas nem o todo pode ser melhorado. - E a voz se tornou mais suave com o passar do falatório.
Ele se virou e tentou procurar um corpo que a voz deveria ter, mas o que tinha a sua frente eram apenas sombras e nuances de luz. Ele se encostou na parede para ver se conseguia achar uma direção da voz.
- A realidade que nos envolve é uma mistura de sensações eletroquímicas e memórias que nossos cérebros tendem a interpretar e quando o fazem nos dá resultados assombrosos. - A voz ficou cada vez mais próxima e ele podia ver alguma coisa semelhante a uma silhueta a uns bons cinco metros diante dele. - O que é a realidade afinal de contas?
Naquele momento, algo inusitado veio a sua mente, ele conseguia ouvir a chuva que batia constantemente na janela que estava um pouco próxima a ele. Era algo que definitivamente que não deveria estar dando a atenção, mas o estava.
- Pode ser que esta seja a realidade que você deva acreditar, ou naquilo que você acha que deveria acreditar. Memórias, momentos, um tempo finito num trecho de uma estrada sem fim. - O corpo se sentou numa cama que estava na frente dele e, então, a voz suspirou. - E você escuta a chuva. Um momento na realidade que o prende das verdadeiras questões inerentes da própria vida e quantos questionamentos podem ser feito durante toda uma vida de uma pessoa?
Ele se sentia um tanto quanto confuso com aquela conversa e, até o presente momento, não tivera como proferir quaisquer coisas que o fossem. Tentava decoficar naquelas palavras o que deveria entender ou, pelo menos, aquilo que deveria saber, se é que sabe de alguma coisa.
- Existem diversas complicações... deveríamos começar com o onde? Se é que isto é realmente importante... com o por que? Ou então para o que? A gama de perguntas é quase tão infinita quanto a possibilidade da minha pessoa ser tão real quanto você imagina que eu sou. - Se pudesse vê-lo, talvez a figura estivesse sorrindo, ou talvez impondo um ar sarcástico por todo o seu ser.
Ele tocou no vidro, por um segundo, duvidando da sua credulidade do real ou daquela realidade que ele sabia que existia e lhe preenchia e, ao fundo, ele escuta a chuva.
- Sim, todos nós nos apegamos a algo dentro da nossa própria noção de realidade... e, talvez, nos negamos que exista toda uma nulidade da existência ao nosso redor. - E a voz disparou a rir de uma forma controlada e quase robótica. - E, por suas feições que consigo ver, parece que estou soando um tanto quanto místico e pouco consegue entender aquilo que eu realmente estou tentando passar para que entenda completamente... a realidade. São poucos que conseguem entender as nuances de toda esta experiência.
Pé ante pé, foi na direção da cama com a esperança que a luz pudesse identificar aquela figura que falava com ele, foi, então, que uma outra se apresentou quando tentou ficar mais próximo a cama. A silhueta parecia ser de uma mulher.
- Sempre querendo brincar... não é? - A voz era suave e quase melodiosa. - Você não sabe que as mentes destas criaturas são infinitamente inferiores a nossas e que não conseguem compreender completamente todo o nosso projeto?
- Bem que eles deveriam entender... já que parte deste lugar faz parte deles...
- Você sabe que muitos deles não compreendem. A lógica que permeia este lugar está muito além daquilo que a física deles consegue compreender. O poder deste lugar é incomparável e são poucos que conseguem chegar até aqui e entender o seu lugar neste lugar.
Ele que não sabia do que aquilo se tratava, agora estava completamente perdido. O que fazia ali? O que aqueles seres queriam? Quais os conhecimentos eles queriam tratar? E porque a chuva era tão importante?
- Eles não querem entender. - Disse a voz suave e melodiosa, provavelmente de uma mulher. - Deixe as coisas como estão. O momento deste já passou... tentamos ajudá-lo a compreender, mas a chance dele se esvaiu a cada momento.
E a porta um pouco depois da cama se abriu, iluminando todo o lugar e um homem, completamente careca e que parecia ter seus cinquenta anos, adentrou no recinto. Na cama uma jovem ruiva e um homem com a tez negra pareciam terem sidos pego de surpresa com a presença do careca.
- Por quanto tempo mais vocês vão brincar com ele? - Perguntou o homem careca, se aproximando da figura assustada e tocou-lhe o ombro. - A realidade é aquilo que você preenche no intimo de sua alma. - E, então, tocou o vidro e o mesmo parecia se mover de uma forma completamente fora da realidade. - Ela se distorce ao nosso redor, ao nosso bel prazer... - E estendeu a sua mão para o lado de fora do lugar, segurando tão somente uma gota d'água, trazendo-a para dentro do recinto. - Paz interior... compreende?
Ele olhou nos olhos do homem careca. Este vestia uma espécie de uniforme, diferente dos outros dois, parecia tão humano quanto a ele. O homem careca sorriu-lhe.
- Eu entendo...
- Vá em paz então...
E, então, a chuva sobreveio e os seus olhos se encheram de lágrimas. A sua esposa falecera no hospital e suas últimas palavras foram: "Nossa vida não foi seca e sim cheia de pingos alegres de uma chuva linda. Sempre me lembrarei do dia que fiquei com você, naquele terraço, naquela tarde chuvosa."
E a chuva continuava...