A VIDA ETERNA
Era um cheiro esquisito, meio doce-amargo, de suor abundante mas limpo, de quem está de banho recém tomado, que fez algum esforço e suou muito, por sobre o desodorante caro.
Ela arrepiou-se toda, de uma forma gostosa e surpreendentemente excitante, como quem vai descer na montanha-russa mais alta do mundo, mas tem medo de altura.
Não abriu os olhos... Para quê? Preferiu continuar aspirando aquele odor no silêncio da manhã, que principiava rompido no piado das aves e no rugir dos carros dentro do lusco-fusco do Sol querendo subir.
E ela, ainda sonolenta, tentava agarrar-se ao fiapo do sonho maravilhoso em que estivera por tantos anos, em suspensão, onde tudo era noite e jamais seria necessário sair de casa.
Estava só sempre, ela e Deus, diria sua mãe, mas ela sabia que estava absolutamente sozinha.
Ela e o cheiro, e o piar dos passarinhos, e o barulho dos canos de escapes dos carros, e a maciez do travesseiro, e o gosto de nicotina e álcool na língua seca; ela e seus quatro sentidos, que a visão esperasse!
Não queria abrir os olhos, quem sabe? Talvez o cheiro se fosse ao abrí-los, e não queria correr o risco.
Lembrou-se, primeiro, do abraço, quente, grande, afundando-a no peito largo e firme; em segundos, podia sentir a barba roçando-lhe o alto da cabeça, as mãos em suas costas e a respiração mentolada nas narinas, invadindo-a toda até ficar zonza...
O desejo pegou-a desprevenida, quase caiu da cama, teve um espasmo daqueles que se tem quando se sonha que se está caindo no vazio, mas caiu mesmo foi em si!
Era Ele! Ele que retornava, no cheiro matinal que penetrava pela janela, ou pelas frestas das portas, ou pelo sonho, ou pela fusão, ou pela vontade, ou pela saudade Dele!
Então, era possível?! Ele estava morto! Mas ela ainda sentia tudo aquilo ali, queimando-lhe as entranhas e fazendo-a lacrimejar, não de dor, mas de desespero febril e insatisfeito, de agonia na carne e na língua, no corpo todo.
Decidiu, então, abrir os olhos. O cheiro permaneceu, mais forte ainda. O dia tão esperado e odiado ao mesmo tempo já começara mesmo, e ela precisava voltar ao mundo dos vivos, ou, senão, ao mundo.
Percebeu que não havia mais som algum. Tudo silenciara.
Apenas o cheiro permanecia. Não queria mais sentí-lo! Trazia-lhe lembranças doces e dolorosas de um tempo em que tivera aquele cheiro entranhado nas roupas, nos cabelos, no apartamento, nas narinas e no sexo.
Não queria lembrar-se Dele! Não ainda!
Percebeu que as paredes tremiam, a luz do Sol na janela tremeluzia, e tudo ao redor desfazia-se lentamente, enquanto imagens brancas e brilhantes substituíam o seu apartamento, e viu-se solta no ar.
Agitou-se, voou em rodopios, ouviiu o vento ao seu redor, mas não o sentia nem pôde descer... Para onde?
Olhou lá embaixo: nada! Tudo era branco e brilhante e ela estava solta no ar, sem saber até quando, nem como retornar ao chão.
A voz que soprou-lhe seu nome não era a Dele, tinha a certeza. E as mãos que amparavam sua cabeça eram protetoramente enormes. Não era Ele! Novamente! Como? Estava definitivamente morto, estava morto, estava...?
_Abra os olhos... E ela abriu. Tudo foi um sonho? Perguntou, mas sua voz saiu grave demais, e tentou pigarrear, estranhando a sensação de incorporeidade e sentiu-se restrita apenas à visão e à audição.
_Não, não... Você não se lembra de nada? A experiência funcionou!
Sim... Sim! Ela agora se lembrava de tudo, aos poucos mas rapidamente. Fusão! Fora o último desejo deles, antes de matá-lo.
_Onde Ele está? Onde?! Não o sinto, não lembro do seu rosto, nem de nada mais, apenas de seu cheiro!!!
_Tenha paciência, seus sensores e receptores internos ainda não estão funcionando totalmente. E a memória dele vai chegar em alguns dias, ou meses, para que você aprenda a resgatá-la quando quiser. Entendeu? Por hora, espere, tente reconhecer o ambiente, e controlar seus novos membros.
_Antes, me diga, por favor, me diga: Quanto tempo se passou? Quando poderemos cloná-lo?
_O tempo mais ou menos previsto: 51 anos. Em um século ou um século e meio o clonaremos, não se preoucpe. Serão novamente homem e mulher, como no início.
_Mas, e a velhice? A morte? Já conseguiram a cura? Ou terei que esperar neste corpo metálico para todo o sempre?
_Não para todo o sempre, não... Claro que não! Estamos perto, sabe? Por enquanto, a única forma de imortalidade é tornar-se metalo mesmo. A clonagem ainda não é segura...
Ela resignou-se... Matara seu grande amor por amor, por ele não ter suportado mais sofrer com a velhice e as dores do câncer que devorara seus pulmões. Ela ficara, sadia e muito mais jovem do que ele, como guardiã de suas memórias, única forma de não perder sua personalidade, e, quando finalmente a metalização atingira o ápice, ali estava ela, a centésima velhinha a ter seu cérebro implantado num corpo cibernético, ou pelo menos, um chip que correspondia ao seu cérebro!
E agora, podia esperar, até que fosse possível viver para sempre, quando então, seriam ambos clonados e teriam suas vidas de volta, por toda a eternidade!
Ou até que estivesse tão fundida com as memórias dele que não conseguisse mais saber quem era, e enlouquecesse, como havia acontecido nas primeiras tentativas de aramazenagem dupla.
Que alternativa eles tiveram? Não era possível manter o chip/cérebro em bom estado se não implantado e em constante uso, do contrário, degeneração das memórias!
E mais uma vez, foi por amor que ela o aceitou dentro de si, onde, aliás, ele sempre estivera! E se ela enlouquecesse, que lhe importava? Fora louca antes Dele, sem Ele, e com Ele!
Que a vida eterna fosse um emaranhado de alucinações e rasgos de lucidez e de demência, não lhe importava; esperava, ao menos, poder senti-lo vir à tona vez em quando, e poderiam conversar nas holografias que fariam! Que loucura maior que essa?!
Teria sorrido, se tivesse lábios flexíveis, mas, como eram apenas um traço de valor menos que estético por onde emitia sua voz mecânica, o resultado foi um carcarejado grave que doeu nos ouvidos dos roboticistas ao seu redor, mas que foi plenamente entendido pela Robo-psicóloga que, amavelmente pegou-lhe na mão fria.
De hoje em diante, seria assim: jamais sozinha, não metafórica, mas literalmente, e Ele seria seu companheiro eterno!