O EXCÊNTRICO DOUTOR
Abriu a porta, enquanto enxugava as mãos no avental auto secante, esbaforido do calor do fogão antiquado, peça única, adquirida sob as risadas dos seus pares da Universidade de Ciências Extraterrestres, e deu de cara com um metalo empertigado sobraçando um caixote de tamanho assustador:
_Senhor Humano Doutor Anésia P. M. Flavius? - E, ele sabia, as lentes fotosensíveis do robô já o haviam identificado de forma inequívoca pela análise espectroscópica de seu DNA, mas manteve a etiqueta e respondeu:
_Sim, por favor, seja breve, estou cozinhando! - Esta declaração anacrônica fez os posítrons do visitante darem um pequeno salto de desequilíbrio, mas nada que fose notado.
_Sua companheira atual, a Senhora Humana Capitã Anésia envia-lhe suas condolências e avisa que (e a voz com um leve toque de contralto bem humorado da esposa ecoou dos lábios estáticos do robô): "Foi você quem pediu, lembra, meu amor?!" - Sua retina, por favor. E o metalo esticou um validador ao olho direito do paralisado Doutor.
Aturdido, e prenunciando uma catástrofe, com o peito dolorido, e tentando não se lembrar da última vez em que extrafonara para a amada companheira de 50 anos de vida, (Quando lhe dissera, brincando, que não queria outro humano para passar sua eternidade, e que, acaso ela não alcançasse o espaço-tempo certo daquela vez, pelo menos enviasse suas células, para que ele a recriasse, e não fosse obrigado a ficar só eternamente ou, pior, optasse pelo retorno aos catálogos de solteiros) O Doutor Anésia Flavius abriu o caixote depositado no meio da enorme sala de estar, e, lá dentro, num invólucro translúcido, boiando no líquido pseudo aminiótico, estava o corpo incompleto de um ser humano, que, O Doutor sabia, era o clone de sua Anésia.
O que dera errado??? Eram tantas as variáveis e as possibilidades de perder-se nas viagens temporais! Ele, mais do que ninguém, sabia por experiência própria!
Sentiu a sala caindo sobre si, e a visão escurecendo lentamente...
O manual informava que seriam necessários mais alguns meses de gestação, e, então, o clone nasceria sem memórias, que despertariam assim que o chip em anexo fosse inoculado na corrente sanguínea, indo alojar-se no hipocampo.
Com um suspiro, ele se voltou, observando as holografias antigas espalhadas pelo ar, de braços abertos e olhar tristonho, os corpos torturados em cruzes esvoaçantes, e o e book permanentemente brilhando no livro dos Salmos: O Senhor é meu pastor, e nada me faltará!!!
Logo ele, tão avesso às novas tecnologias de clonagem e ressurreição!!!
Pensava, como crente num Deus maior, que aquilo não passava de uma aberração sem alma, e que os planos de seu deus não incluíam clones perpétuos, mesmo que aceitasse a eternidade como uma dádiva. Afinal, como a alma poderia ser recriada???
Achava que, a morte tendo sido banida, deveriam os seres inteligentes resignarem-se aos desígnios do Criador, quano fossem afastados para sempre.
"Até que a vida eterna os separe"! Não foram estes os votos proferidos quando da formalização de sua convivência com Anésia?
Relembrou seus ternos arfares dentro dele, suas unhas delicadas arranhando-lhe as costas, sua ironia altaneira e sua mordacidade humorística, bem como todas as vezes em que debruçaram-se juntos sobre uma nova teoria do Tempo, ou sobre uma nova cultura alienígena...
Veio-lhe à mente que, de todas as humanas terráqueas, ela era certamente uma das mais inteligentes e fisicamente atraentes para seus padrões exigentes, com suas carnes sobrando nas laterais, seus enormes e roliços bíceps e seus cabelos negros como a noite, que parecera derramar-se sobre toda ela, pintando-a no mais puro negrume luzidio que se podia imaginar ou desejar...
Suspirou novamente, de saudades físicas, emocionais, mentais, olfativas...
Como recusar o que ela lhe ofertava, de tão longe, onde (quando), possivelmente, já estaria enveredando por novas experiências sensório-corporais, nos seus intermináveis intercâmbios com as outras humanidades?
Bem, pensou, esta nova Anésia certamente levaria um susto ao se deparar com um Flavius bem diferente de suas memórias chipadas!
Ele tornava-se ateu, no exato momento em que decidia acolher o clone na sua vida, como acolhera Anésia, e ela a ele!
Seriam felizes para sempre?
Ela seria novamente uma Capitã da Esquadria Espaço-Temporal ou escolheria algo mais terreno?
Que novas possibilidades adviriam desta outra muher que teria que encontrar um lugar na sociedade, sem que a sombra da outra a tolhesse e delimitasse?
Teriam a eternidade toda para descobrir, riu-se ele, totalmente esquecido do Inferno e da Salvação, e ponderando sobre uma nova coleção de holografias que vira numa galeria, muito menos sanguinolentas e mais condizentes com suas novas convicções, do que as terríveis imagens mórbidas de dor que enxameavam na sala, as quais a sua Anésia realmente nunca apreciara...
E voltou correndo para a cozinha, onde a fumaça de um assado politicamente incorreto nestes novos tempos vegetarianos
enegrecia-se rapidamente, disparando os sensores anti incêndios.
Mal podia esperar pelas próximas reuniões na Universidade!
Seus colegas terráqueoas teriam muito que rir-se dele, imaginou, mas tomariam aquilo muito mais como outra extavagância de um Humano Extraterrestre do que como uma séria mudança de convicções.
Como, alías, haviam feito ao descobrirem-no seguidor das Religiões Mortas de 10 séculos atrás.