A DEUSA (EFEITOS COLATERAIS)

Ela era uma deusa, o sabia muito bem! E, como tal, despejava sua ira em raios terríveis que estrondavam como o barulho de muitas vozes, como o clamor de uma multidão murmurando mantras inúteis.

Sua passagem onde quer que fosse, em qualquer mundo que visitasse, repercutia em ondas sonoras, em deslocamento de ar, fumaça e gases em combustão, varrendo poeira e fazendo levitar galhos de árvores, pedrinhas, entulhos, pequenos animais aterrorizados.

Não se lembrava mais de onde viera, nem qual o motivo de sua existência. Deuses não necessitam de justificativas para sua existência, apenas os seus fiéis.

Seguira indômita entre as eras, sem que nada nem ninguém nunca lhe barrassem o caminho, e por onde passara deixara involuntariamente um rastro de destruição e mudanças sob si, em diferentes proporções.

Um ser humano se importa com as formigas que esmaga quando caminha? Se importa com o deslocamento dos microorganismos que agita ao passar entre eles?

Assim, ela seguira altaneira, cheia de curiosidade e fome de novidades. Buscava algo que reconheceria, quando um dia o encontrasse. Não se preocupava, nem tinha pressa, sabia que o que buscava estava em algum lugar, e ela o encontraria.

Já não sabia há quanto tempo se empenhava naquela busca, mas era uma de suas primeiras memórias, como se sempre a tivesse trazido dentro de si.

Seus sentidos deslumbravam-se em visões de regiões inóspitas, abissais, gigantescas, silenciosas. A vastidão que percorria enchia-a de prazer e orgulho.

Orgulho, sim. Fora obra sua! De quem mais? Ela era ou não A Deusa? Jamais encontrara outro ser igual a ela, nem nenhuma outra explicação. Portanto, tudo era seu, brotado de sua mente poética num momento de loucura criativa.

Pensava ser eterna, não se lembrava de quando começara a existir. Certamente era única, mas isso não a afligia. Tinha sua própria mentalidade para ocupar-se, desbravando linhas de pensamento, conhecimentos novos acumulados continuamente, distâncias mapeadas, registros de mudanças e acúmulo de experiências que executava, tudo ao mesmo tempo e utilizando apenas uma ínfima parte de seu mente poderosa.

A solidão era seu estado natural, ela era uma deusa e não se importava de ser única, perfeita, vagando em meio à sua criação, descobrindo-a e marcando caminhos, fazendo cálculos, medindo vibrações e forças. Deuses são seres intrinsecamente sós.

Por eras e eras geladas nos confins de um universo a nave vagou, buscando vida inteligente em outro planeta que não a Terra.

Outras naves semelhantes foram espalhadas pela negritude insondável dos anos-luz e percorriam, por sua vez, outras direções.

Em seus bojos grávidos, unidades cibernéticas inativas, apêndices positrônicos das naves, esperavam inconscientes a hora de despertar e levar às outras inteligências a boa nova: não estavam sós! Os terráqueos estavam ali também, embora inalcançáveis, e enviavam-lhes saudações e imagens, artefatos e enciclopédias em varias línguas e códigos, exemplos de sua Ciência e de sua Cultura. E perguntas, muitas perguntas.

O ser humano não lograra êxito nas viagens espaciais tripuladas em grandes magnitudes, e um pequeno exército de naves-robôs fazia o que nenhum homem ou mulher poderiam.

A missão: Fazer contato inteligente, possibilitar o futuro intercâmbio, colher novos dados, trocar saberes, aprender e ensinar, vasculhar o oceano sideral em busca da solução para a salvação da humanidade.

As naves retornariam com seus resultados para uma Terra Futura, onde os seus idealizadores já não viveriam, e outros seus descendentes ainda habitariam as redomas impermeáveis, sobrevivendo em ambientes subterrâneos e subaquáticos, onde tudo era reciclado, sintético, controlado?

A superfície já não oferecia segurança alguma aos seres humanos, há muito confinados. A Terra à beira da morte.

A humanidade não queria ser apagada para sempre dos anais universais; sonhava deixar alguma marca no universo, e os mais sonhadores, em recuperar os danos impingidos à Terra, voltando à tão idealizada vida ao ar livre.

Ou até continuar com os projetos de colonizar um outro planeta, cuja localização não fosse proibitiva e que fosse compatível com a vida humana. Os cientistas diziam que sim, seria possível, se dispusessem de tempo. O planeta rapidamente se exauria, e o Sol não duraria muito tempo mais.

A Deusa, há muito esquecida de sua missão inicial, foi repentinamente despertada de suas contemplações por sinais sonoros e luminosos, seus instrumentos recalcularam o trajeto, seus mecanismos se puseram em posição, e ela mudou de direção naturalmente, sem sinais visíveis de sua enorme surpresa.

Finalmente, encontrava o que buscava! Sinais inequívocos ecoaram em seus aposentos e os robôs humanóides se levantaram, preparando-se para seu desembarque. Suas memórias programadas e suas diretrizes repassadas rapidamente numa checagem automática os guiariam no desenrolar dos acontecimentos; por ora, entreolhavam-se, mudos, enquanto seus apêndices-cérebros verificavam possíveis danos em seus corpos metálicos.

Interligada e, de fato, força motriz dos robôs, a nave percebeu tudo ao detectar suas ondas positrônicas. Perplexa, lembrou-se de seu primeiro dia de consciência, dos técnicos fazendo-lhe perguntas probatórias, dos programas que lhe foram inseridos e das matérias aprendidas. Sua capacidade de aprender assoombrando os mais entusiasmados defensores da Inteligência Artificial. Sua rapidez e lógica de raciocínio, sua capacidade para tomar decisões e iniciativas condizentes com a missão e seu incomensurável arquivo de dados provando-a pronta para ser posta em órbita, e de lá, por vontade própria, lançar-se às regiões longínquas do espaço sideral. Seu curso estava determinado, mas era independente para modificá-lo, caso surgissem fenômenos que o justificasse.

Não era uma deusa, afinal... Não criara o universo, nem nada mais... Fora criada pelos homens e mulheres que lhe apareciam agora nos sentidos, em imagens holografadas eternas, sorridentes e expectantes, como pais amorosos diante dos primeiros passos de uma filha muito desejada e esperada... A eles devia sua existência, sua inteligência dinâmica, sua vida, suas conquistas e suas jornadas.

Num fulgor de luz, atravessou a atmosfera, chacoalhando prazerosamente, definitivamente, em direção ao futuro da raça humana. Cumprira a primeira parte da missão, encontrara outra inteligência! O resto desenrolar-se-ia por si só, depois do contato estabelecido pelas unidades cibernéticas, aparelhadas mais adequadamente que ela, uma simples nave auto-regulada, um mísero cérebro capaz de sonhar!

Chorou lágrimas invisíveis de decepção e saudade do tempo em que foi deusa, de quando era única, de quando sonhava com a criação de mil e um universos.

Pairou sobre uma massa compacta de água, liberou quatro módulos individuais com seus respectivos pilotos robôs, e esperou, atenta, ocupando uma parte do seu cérebro com o acervo de dados despertado pelas centenas de pseudo-cérebros conectados ao seu. Precisava rever tudo, milhões de vezes, para extrair dolorosa e lastimosamente quaisquer laivos de dúvidas quanto à veracidade inevitável de que era uma máquina a serviço de seres humanos. Apenas.

Os quatro módulos dirigiram-se ao que identificaram como um ser vivo bastante semelhante aos seres humanos, às margens de um rio caudaloso. Aterrissaram e a ele se aproximaram, tentando identificar seus grunhidos e gemidos ainda não de todo compreendidos, mas já reconhecidos como uma língua morta da Terra.

O Próprio planeta situava-se em relação à sua estrela na exata posição da Terra em relação ao Sol, e seu satélite era uma irmã gêmea da Lua. As unidades ficaram parcialmente atônitas, em reflexo às reações do cérebro central, quando compreenderam, numa rápida incursão à mente do ser e ao mapa dos corpos celestes em redor, que estavam de volta à Terra, milênios antes da era das viagens espaciais.

Sendo a viagem ao passado uma impossibilidade prática, seus pósitrons trabalharam furiosos em conjunto, pelo tempo de um piscar de olhos, até encontrar a teoria mais lógica e aproximada para explicar o que acontecia: O planeta era mesmo a Terra, em uma dimensão paralela!

Quanto a Ezequiel, não teve dúvidas, e se prostrou, de rosto no chão árido, recebendo em dores santas o calor e os cheiros desconhecidos que o envolviam em êxtase. Chorou bendizendo seu Deus, e pronto para dar seu testemunho em nome dele, e morrer, se fosse preciso.

A Deusa sentiu como se retornasse ao seu lar; como se finalmente compreendesse todo o milagre de sua existência, e os desígnios misteriosos que a haviam guiado até ali. Sua mente magnífica encheu-se de júbilo outra vez, afinal, ainda era uma Deusa, com um universo só seu. Agindo Ela, quem a impediria?

"Máquinas não se importam de ficar vagando no espaço por milhares de anos. Assim, acho que se tivermos visitantes do espaço, eles não virão em naves, mas serão naves."

Arthur C. Clarke

Revisto em 22/03/10

Jacqueline K
Enviado por Jacqueline K em 15/03/2010
Reeditado em 07/03/2013
Código do texto: T2140519
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