A Chave do Inferno
- Saiam daqui. AGORA. - disse o deus babilônico, quase rugindo. Apni e Kushna não entendiam o tom de seu líder e deus supremo na Torre de Guerra de Anshar.
- Milorde, o que...?
Marduk afastara-se da mesa principal, onde estavam dispostos inúmeros mapas com todo tipo de informações de Paradísia e diversos outros mundos. Marduk era um deus alto, aproximando-se dos 3 metros de altura, de pele cinza, um corpo completamente musculoso, de rosto rude, porém majestoso, ornado apenas com duas fileiras de pequenos chifres àcima de suas têmporas e mais duas no queixo. Em seus olhos, sempre queimavam o poder. O deus supremo do panteão babilônico abrira seus braços e olhava para o nada, como se estivesse esperando algo. Era uma pena. Ele gostava daqueles dois conselheiros há séculos. Mas não costumava dar a mesma ordem duas vezes.
E então, a Torre de Guerra de Anshar explode, alvejada com um meteorito flamejante caído dos céus.
***
Uriel estava impaciente. Poderia esperar por milênios se necessário, mas não por aquilo. Não poderia ficar apenas de braços cruzados enquanto os inimigos de Demiurgo uivariam nos portões da Cidade de Prata. Porém, não podia fazer aquilo sem falar com seus irmãos.
O Anjo Apócrifo estava na Torre do Arrependimento, uma das mais altas alas do Castelo e Distrito de Júpiter, e a mais próxima do Solarium. Ali era seu lar, ali era seu destino ficar, sempre guardando os portões da Casa de Deus. No entanto, naquele dia, o Anjo do Arrependimento não estaria em seu lar. Caminhou para uma das varandas, podendo vislumbrar todos os outros distritos da Cidade de Prata dali, abriu seus braços e seus oito pares de asas luminosas, e alçou vôo, acolhendo o vento em seu rosto. Seu destino hoje era o próprio Solarium.
O Solarium fica, geograficamente, no ponto mais alto do Castelo e Distrito de Júpiter. Ele se estende numa torre quase infinita ao olho nu, subindo acima de incontáveis camadas de nuvens, sendo que ninguém já conseguiu definir a forma da Morada de Deus. Uriel, entretanto, buscava não almejar tamanha ofensa à seu Senhor, mas sim um contato direto com seus irmãos. Esforçava suas asas ao máximo num vôo direto para o topo. Quanto mais subia, já alcançando centenas de quilômetros de altura, seu coração se enchia de amor e adoração, um sentimento quase incontido para seres como ele. O esforço da subida já parecia imenso, pois as energias espirituais que o laçavam deixavam-no saber, também, que estava nos portões do Solarium. Eis que antes de conseguir atravessá-los, ele ouvira uma voz, quase uma canção, em sua mente. E então, aproximara-se mais da torre, e pousara em uma das suas imensas varandas, ornadas de materiais belíssimos, inexistentes em qualquer Plano, que só podiam ser descritos como a criatividade do próprio Demiurgo. E lá estava um anjo.
― Saudações, Anjo Apócrifo do Arrependimento.
― Saudações. Desejo encontrar com meu irmão Miguel.
― Pois não. Por aqui. ― e ambos deslizaram, então, adentro do que seria a mais alta ala do Castelo e Distrito de Júpiter antes do Solarium. O lugar ainda era de proporções colossais, obrigando os dois anjos à voarem por seus corredores, que não obedeciam à uma simetria comum para caminhantes, e sim para seres alados. Os dois seguiram por corredores verticais e horizontais, todos de uma beleza sem igual em qualquer estrutura já vista. Eis que então chegaram à um corredor com um imenso tapete vermelho ornado com materiais semelhantes à ouro e rubis, terminando em imensos portões dourados. Os portões abriram-se lentamente, silenciosos, mas trazendo uma aura de majestade e poder que fizera o jovem anjo ajoelhar-se antes de entrar.
― São Miguel, apresento para Vossa Alta Presença o Anjo do Arrependimento, o Guardião dos Portões do Solarium, o Destruidor dos Exércitos de Senaquerib, o Detentor das Chaves do Inferno, a Chama de Demiurgo, o Patrono das Artes, Uriel.
― Olá, Uriel.
― Olá, Miguel.
― Pode sair, meu jovem. ― disse o Apócrifo para o jovem anjo. ― Pois não, irmão. ― E ele deixa o imenso salão, com os portões dourados fechando-se às suas costas.
― O que aconteceu de meu irmão fazer o que fez? Tentar chegar à Morada de Deus apenas... voando?
― O que aconteceu? ― disse Uriel, com um tom de consternação que nunca se vira antes em seu semblante - Miguel, meus seguidores identificaram formações de batalha no Céu de Anshar. Batalhões e exércitos inteiros. Conseguiram interceptar mensagens e mensageiros que indicavam um ataque do próprio Marduk à nós. E eu vos avisei há tempo de armarem-se e não vi nada ainda!
― Irmão, acautele-se. Marduk não nos ameaça enquanto os planos Dele seguirem seu curso.
― Os planos Dele? Nós precisamos Dele agora! Marduk está querendo desencadear o apocalipse! Nós sabemos, nós já vimos algumas das profecias se realizarem na Terra!
Miguel, então, pousa sua mão nos ombros de Uriel, lançando um olhar sério e terno para seu irmão. Uriel sempre estimara muito Miguel, principalmente por suas boas decisões de liderança, embora ali, naquele momento, tivesse suas dúvidas.
― Uriel, confie em mim.
O Anjo do Arrependimento dá um passo para trás, tirando a mão de seu irmão de si.
― Desculpe, Miguel. ― e vira-se, dando as costas e abrindo seus oito pares de asas brilhantes.
― Uriel, não faça nada que...
― Eu não esperava que fosse assim. ― disse o anjo, dando um último olhar por cima de seus ombros. E então, abre os braços e alça vôo da sacada.
***
Queda de 230 metros de altura, à 800 quilômetros por hora, agarrado à alguma coisa em chamas. O impacto contra o solo gera uma cratera e um estrondo que ressoa por quilômetros. Enquanto a fumaça, ainda não assenta, muitos espíritos babilônicos assombram-se com os sons ensurdecedores que vêm da névoa. Cada um desses sons estremece o chão, torres e casas. Quando, enfim, a poeira assenta, pode-se perceber a cena: o grande Rei Marduk, líder do Panteão Assírio-Babilônico, lutando àos murros com um anjo de Demiurge. O último golpe do anjo faz o deus babilônico rumar meteoricamente para uma estrutura semelhante à uma capela de torres negras e vermelhas, derrubando-a com o impacto. Marduk levanta-se por entre os escombros, arrancando os restos dos trajes de seu peito. Sua voz, então, soa cavernosa àos ouvidos do Anjo do Arrependimento.
― Devo admitir que você é forte, anjo. Muitos Serafins antes de você já tiveram suas espinhas partidas com um único golpe de minhas mãos.
Uriel então abre suas asas majestosas, ergue-se imperiosamente, mirando selvagemente seus olhos no inimigo, evoca uma lança dourada em sua mão direita, salta e voa numa investida. ― É porque você nunca enfrentara um adversário à altura antes, monstro! Enfrenta agora Uriel, o Destruidor dos Exércitos de Senaquerib!
O golpe do anjo apócrifo foi tão poderoso quanto perfeito. Enquanto investia contra o deus babilônico, recitou em sua mente palavras tão antigas quanto a própria Roda dos Mundos, palavras que aumentariam estratosfericamente a intensidade de seu ataque. O resultado fora o esperado: a lança fincou-se fundo na carne divina de Marduk, fazendo verter sangue negro da ponta da lança, que abrira caminho nas costas do deus babilônico. Uriel ficou satisfeito com seu ataque, até subir sua visão e enxergar os olhos injetados do deus babilônico, enfurecido. O mesmo agarrou a lança com uma mão e começou a retirá-la lentamente de seu peito, enquanto Uriel forçava a lâmina para continuar fincada. O esforço do anjo parecia não retardar o movimento do deus babilônico em quase nada.
― Muito bom, anjo. Há milênios não vejo jorrar uma única gota de meu sangue. Bom saber que a Cidade de Prata não tem apenas ridículos homens-ave covardes. ― num movimento rápido, Marduk bate do lado da lança com sua outra mão, obrigando Uriel à soltar a lança angelical. Em fração de segundo, a lança estava nas mãos do deus. Ainda assim, Marduk continuou falando calmamente, num tom que só poder-se-ia ser comparado ào de uma pantera conversando com um coelho.
― Não irei subestimá-lo novamente. Uriel, não é? Eu o conhecia como Auriel. Não importa. ― o deus babilônico sorri, enquanto passa a mão em seu ferimento e lambe o sangue ― Por acaso as profecias sobre seu destino não estariam corretas, estariam? "Aquele que deteria a chave que abrirá os portões do Inferno no Final dos Tempos", estou correto? ― e, enquanto parafraseava a profecia, Marduk olhava o âmago de seu inimigo, estudando minuciosamente a anatomia física, espiritual, mística e angelical. E durante a análise, ele percebera que no peito de Uriel não batia um coração, pelo menos não um coração comum, mas sim uma fonte de poder, dourada à seus olhos, imensamente intensa.
E, nesse momento, Uriel percebera seu erro.
***
Um dia de glória sempre sucedia os dias de guerra. Desde aquele primeiro dia, sempre fora assim desde então. Derrocada para uns, glória para poucos. Naquele dia, Uriel teria seu dia de glória. Os últimos anjos da Rebelião estavam sendo expulsos da Cidade de Prata, lançados na escuridão, e as últimas torres do Castelo de Oostergor estavam sendo derrubadas, quando as milhares de falanges de Uriel estavam reunidas preenchendo o Castelo e Distrito de Júpiter, recebidos pelos mais altos Conselheiros Recíperes e Generais Nimbus. Uriel, junto de seus mais altos generais, estavam no portal de entrada do Solarium, também chamado de Salão da Glória do Senhor. Era um imenso portal dourado, feito de pura matéria espiritual sólida. Caminhando por um tapete vermelho estava Uriel, com toda sua glória, ornando uma poderosa armadura dourada, junto de sua espada flamejante, caminhando até os anjos apócrifos que se colocavam á frente do portal, que emanava calmamente ondas de energia espiritual. Lá, estavam Miguel, Gabriel, Haziel, Tsaphkiel e Metatron. Este último, a Voz de Deus, em sua forma física, de um homem em chamas brandas, com uma auréola que assemelhava-se à olhos sempre observando, dirige-se para o anjo.
― Uriel, Anjo do Arrependimento, Patrono das Artes, aqui, perante teus irmãos, tu serás condecorado por teus atos de bravura e nobreza ante a triste rebelião que precedeu este evento, onde nosso ex-irmão, Lúcifer, cometeu a pior das traições contra o Deus-Pai! Pela Batalha de Marte, pela Batalha das Mil Revoadas, pela Batalha do Trecho Sul de Júpiter, e por resistir à inúmeras ondas de anjos rebeldes perante aos portões do Solarium, eu o agracio com a permissão de encontrar-se, diretamente, com teu Criador! Que teu coração inflame-se de amor e glória! - dito isso, os cinco anjos apócrifos abrem caminho para o Anjo do Arrependimento, que caminha para dentro do portal de energias espirituais. E dentro do Solarium, nenhuma descrição poderia expressar o que Uriel estaria sentindo naquele momento. Mesmo os milhares de anos de existência, fé e amor por seu Criador não prepararam-no para um lugar como aquele. O Solarium não só era a morada do Senhor, mas tudo ali emanava o poder e a vontade Divina em sua pura essência. E lá estava Deus.
Após horas passadas, Uriel deixa o portal dourado de Solarium, e olha para Metatron. O apócrifo não esboça nenhuma expressão, como se soubesse exatamente o que houvera no Solarium. Afinal, ele é a Voz de Deus.
― Ouçam todos. ― disse a Voz, alta e retumbante, atraindo a atenção dos anjos no Salão da Glória do Senhor ― Uriel, o Anjo do Arrependimento, agora também nomeado pelo próprio Senhor da Criação e Deus-Pai Todo Poderoso, Demiurgo, de A Chama de Deus, e terá a honra e a glória de guardar a chave dos portões do Inferno, que ficarão com ele até o fim dos tempos!
Uriel tocou seu peito enquanto as palavras de Metatron retumbavam. Pois em seu peito não mais havia um coração de anjo, mas sim a Chave do Inferno.
***
Eu devo sair daqui o mais rápido possível, pensava Uriel. Não imaginava que Marduk pudesse atravessar todos seus feitiços de ocultamento tão facilmente e identificar a Chave do Inferno! Agora não poderia deixar um artefato tão poderoso cair nas mãos de um monstro antigo babilônico! Logo que o pensamento veio, Uriel alçou vôo dali. Marduk apenas riu, olhando o anjo.
― Tolo paradisiano! Eu sou Marduk, Senhor dos Ventos! Acha mesmo que podes fugir de mim agora, e voando? ― dito isso, Uriel entra em queda livre, e nenhuma de suas magias aéreas surte quaisquer efeitos. Tanto quanto ele é o Mestre do Caminho de Magia da Terra, Marduk é o Mestre do Caminho de Magia do Ar. E era isso que ele iria utilizar agora para destruir seu inimigo. Mas primeiro, deveria encontrar um terreno mais propício, e não o Céu de Anshar, que logo estaria apinhando aquelas ruas de deuses e soldados babilônicos. Dito isso, o corpo de Uriel afunda no solo, como se as próprias rochas das ruas da gigantesca cidade estivessem engolindo-o.
Marduk percebe a magia de teleporte. Porém, também sabe que ali era uma zona mesclada de Ark-a-Nun e Spiritum, e qualquer teleporte de um anjo não iria muito longe. Ele então ordenou à todos os ventos dali para informarem-no do surgimento do anjo onde for.
Uriel ressurge à duzentos quilômetros do Céu de Anshar. Poderia ter teleportado-se para bem mais longe que isso, mas ali era uma zona de contato entre Ark-a-Nun e Spiritum, e o solo não era exatamente terra pura, e sim parte espiritual, e parte solo profano, o que enfraquecia suas magias. Já imaginando que aquela estratégia só lhe garantiria alguns segundos de vantagem até a chegada de seu inimigo, Uriel evocou energias místicas, transformando seu próprio corpo em terra, e unindo-se ao solo local. Eis que Marduk chega meteoricamente dos céus, caindo e abrindo uma cratera de sessenta metros de diâmetro.
― Apareça, cão paradisiano! Apareça para que eu possa partir seus ossos com meus dentes! ― enquanto o deus babilônico esbravejava, um terremoto toma conta daquele lugar e uma colossal fenda cuspindo lava derretida abre-se no chão, engolindo Marduk. A fenda não apenas abre, mas também se fecha ao mesmo tempo em que todo o terreno local eleva-se, criando uma espécie de vulcão, até este se partir em quatro outros grandes pedaços de terreno arkanita, assemelhando toda aquela elevação de terra com um ser humanóide. Era um imenso elemental de terra evocado pelo próprio Uriel, que literalmente engolira o deus babilônico pela fenda que estaria no lugar de sua boca, constantemente "salivando" lava incandescente. Dentro das entranhas do elemental, Marduk escava o solo até encontrar-se numa grande caverna, extremamente quente, onde vertiam rios de lava. Sobre grandes penhascos e rochedos, surgiam mais elementais de rochas, com grandes protuberâncias diamantinas, de braços longos como porretes, terminando em grandes maças cristalinas repletas de pontas. As criaturas atravessavam o rio de lava, quando o deus babilônico já saltava sobre os elementais, usando-os como plataforma para não tocar a lava, destruindo cabeças e troncos com um único soco, saltando agilmente entre um e outro antes mesmo que o anterior caia na lava fumegante. Em pouco tempo, Marduk tinha destruído todos os elementais e, rapidamente, escalou até uma das áreas mais elevadas da caverna, e gritou. O urro emitido pelo furioso deus babilônico era tão poderoso que explodira o que poderia chamar de a cabeça do gigantesco elemental. A criatura cambaleou, desmoronando diversos terrenos que faziam parte de seu corpo, explodindo em lava incandescente como um verdadeiro vulcão vivo. E após a destruição do gigantesco elemental, estava apenas Marduk, observando, até enfim, achar sua presa. A criação e destruição do elemental consumiu as forças do Anjo do Arrependimento, que acabara de reformar seu corpo.
― Lacaio paradisiano. ― o deus babilônico vocifera por entre os dentes, enquanto segura o anjo pela garganta com uma mão, espremendo-a. ― Você acha que pode vir à minha casa e tentar me matar? Acha? Eu sou Marduk, Rei dos Espíritos Babilônicos, Senhor dos Ventos, Líder do Panteão! ― entre suas últimas palavras, Marduk começa a golpear Uriel. E um golpe após o outro, parecem tornar-se cada vez mais fortes, mais brutais e mais poderosos. Um murro após o outro, podia-se ouvir os impactos por quilômetros. Vulcões expeliam lava tamanho o impacto no terreno. E ao fim do linchamento, estava Uriel, com seu rosto completamente deformado. Marduk ergueu-se perante este, com as mãos ensopadas de sangue angelical e os olhos brilhando de ambição, enquanto via a energia vital do apócrifo se esvair, restando apenas o pequeno sol em seu peito, uma fonte de poder que iria fazer todos seus inimigos se ajoelharem. Estendeu a mão para abrir o peito do anjo, mas assombrosamente fora impedido pelas de Uriel.
― Não, cof... não vai ser tão fácil assim, demônio babilônico...! ― o anjo completamente desfigurado puxa o deus babilônico para junto de si, olhando-o fixamente com o único olho que lhe restara, e sussurra entre os dentes. ― Prefiro enterrar nós dois vivos antes, animal. ― e dito isso, o solo engole ambos, descendo adentro no solo vertiginosamente por centenas de quilômetros de solo e lava.
***
Os céus pareciam constantemente turbulentos, em seus tons de cobre e cinza. No alto podia-se ver diversas figuras aladas, vagamente humanóides. E abaixo destes, desnudava-se uma cidade tão aberrante quanto seus moradores: prédios negros, repletos de espinhos, ligando-os entre si por correntes cheias de lâminas, muitas delas com corpos sempre gemendo de dor, trazendo uma constante garoa de sangue sobre as ruas.
Uriel enojava-se com aquilo tudo. Como anjo apócrifo, ele era um dos representantes da vontade Dele, e podia agir com grande liberdade de seus atos. E o ato que ele desejava naquele momento seria chacinar toda aquela cidade doentia. Como Anjo do Arrependimento ele possuía diversos poderes e características, e uma delas – e que ele impôs sobre si mesmo – ironicamente, ela a ausência de arrependimento. Era isso que o fazia ser uma arma mais eficiente para seu Senhor. Porém, não dia simplesmente fazê-lo. Ele estava ali como um embaixador da Cidade de Prata, e não como o arauto de suas mortes. O anjo fora recebido na cidade há um dia, recebendo os melhores tratamentos que os seus anfitriões poderiam oferecer. Deram-lhe um aposento de tons renascentistas, mas ornado com o melhor que um mundo como este podia oferecer. Mas Uriel podia sentir o sangue que corria por detrás daquelas paredes, todo o ódio sádico, todo o horror incompreensível, como se a própria imagem daquilo tudo fosse mera ilusão. Uriel recusara-se à atender aos pedidos de seus anfitriões de passear pela cidade. Estava ali apenas à negócios, e nada mais.
― Milorde... ― disse uma voz doentia, abrindo a porta do aposento. Era um indivíduo corcunda, de pele levemente esverdeada, trajando couro preto e polido, com pequenas correntes e ganchos repuxando parte de sua pele, mantendo os braços colados junto ao corpo. Sua cabeça, parecia a união medonha de outras três: haviam dentições superiores unidas numa única boca circular, e seis orifícios que um dia deviam ter contido olhos. Os olhos, agora, posicionavam-se dentro da boca. ― Milorde, o Conselho irá recebê-lo agora...
O anjo e o lacaio atravessam corredores negros, feitos de metal, ornados com luminárias parcas, pulsantes, repletas de veias azuladas. Cá acolá, sempre um adorno horripilante de caveiras de seres há muito já extintos e gritos. Enfim eles chegam até um salão circular, no topo da estrutura em que acolhera o anjo. O teto parecia feito de vidraças arroxeadas, que sempre se iluminavam pelos relâmpagos que rasgavam aos céus mais acima. O salão não possuía mesas, apenas uma vasta coletânea de livros que se estendiam por todas as paredes. E, virado para uma das janelas, estava Pinhead.
― Bem vindo à Metrópolis, Uriel. ― disse a voz cavernosa. Pinhead era o representante máximo do Conselho dos Sete, os mais poderosos cenobitas de Metrópolis, a cidade que se erguera ao redor do Fosso, o túmulo e lar de Levhiatan.
― Saudações em nome da Cidade de Prata, Pinhead. ― falou polidamente o anjo. Apesar de enojado por estar ali, Uriel não podia desrespeitar as normas diplomáticas entre as cidades.
― Por favor, sente-se. Deseja beber algo?
― Se me permite a franqueza, Dominador dos Cenobitas, eu não desejo permanecer muito em sua cidade. Podemos ir direto ao assunto?
― Claro... ― o cenobita sentia o gosto do nojo do apócrifo, e deliciava-se com aquele sentimento vindo de um ser tão nobre. ― Como bem sabe, nossos cultos na Terra andam se propagando, desde a data de 1960. E como tal propagação, nós desejamos que tenhamos certa “estabilidade” sobre nosso... público alvo.
― Onde quer chegar com isso? ― já dizia o anjo, sabendo onde aquela conversa iria terminar.
― Nós queremos o que é nosso só pra nós, embaixador. Queremos liberdade de atuação em territórios geográficos na Terra. Domínio exclusivo.
― Você sabe que isso não é possível, Pinhead. Fale a verdade, ou irei embora de sua cidade imediatamente.
― Pois bem. ― finalizou o cenobita ― eu possuo um artefato. Um poderoso artefato, conhecido como Crânio do Conhecimento Infinito. Existem poucos entre todos os mundos conhecidos, e menos ainda aqueles que sabem como criar um. Dentro destes Crânios, conhecimentos inimagináveis podem ser contidos, e seu possuidor pode usá-los como bem entender.
O cenobita caminhou até uma prateleira de madeira antiga, pegando um estranho crânio demoníaco com diamantes no lugar de seus olhos. ― Este é o Crânio do Conhecimento Infinito. E eu quero dá-lo para você, Uriel.
― Por quê? ― o anjo indaga. Não seria surpresa uma estratégia corruptiva vinda daquela criatura, mas seria tolice fazer contra um ser puro quanto um anjo apócrifo.
― Porque eu sou o avatar de meu mestre, deus e senhor, Leviathan. Sua voz enlouquecedora e constante, que ecoa pelos sonhos febris dos insanos e tocados pela escuridão. Este artefato não pertence ao meu povo, e sim ao seu. Ele contém o conhecimento de um Selo, uma fonte de poder inigualável na Roda dos Mundos.
― E por quê está dando-a para mim?
― Porque, anjo apócrifo... eu não preciso do poder de seu deus.
***
Marduk estava preso. Não podia respirar, não podia se mexer, nem podia ver. Pela primeira vez em milênios. No entanto, ele não precisava mais respirar. Nem precisava ver para perceber com seus sentidos cósmicos que estava preso num gigantesco bloco cristalino do tamanho de uma montanha, provavelmente encontrado por Uriel. O túmulo perfeito, ele provavelmente deve ter acreditado. Ele sentia o corpo do maldito anjo ainda pulsando com resquícios de vida à sua frente. Mas ele não sabia do poder de Marduk. Não fazia a menor idéia do poder que pulsava, que queimava no peito do maior dos deuses babilônicos. Ele então, forçou seus braços como nunca precisara fazer antes. Um esforço descomunal, que, aos poucos, começou a criar rachaduras na estrutura diamantina, rachaduras e frestas que passaram à se espalhar como uma teia incontrolável de ser contida, até estilhaçar-se dentro do solo, provocando um rompimento de sua prisão, e um movimento de todo aquele terreno instável, de modo que ele e Uriel foram arrastados para um lençol de lava no interior daquele mundo devastado. Mas Uriel ainda nem fazia idéia de toda a obstinação de Marduk. O deus babilônico içou seu inimigo e carregou-o à braçadas até uma pequena ilha móvel de rocha ainda fumegante no interior de uma grande caverna subterrânea. Seus olhos caíram sobre um crânio mágico atado à cintura do anjo, cujo qual Marduk pegou para si. Depois, olhou para o peito do apócrifo.
― Não... não faça isso, Marduk. ― dizia Uriel, às portas da morte. ― Você... você não faz idéia do mal que trará para todos os mundos. Para o meu, o seu e o de bilhões...
Marduk então, parou por um segundo. As palavras do maldito anjo eram verdadeiras. O extermínio da Cidade de Prata seria certo, mas a libertação de males tão imensos com a Chave do Inferno iria desencadear uma guerra apocalíptica de proporções tão colossais que poderia arrastar-se em guerras cósmicas durante milhares de anos. O Céu de Anshar poderia ser destruído no processo, visto que muitos poderiam bater em seus portões atrás de seu sangue e seu poder. Súbito, Marduk jogou seu inimigo ao chão.
― Paradisiano ridículo. Acha mesmo que seus reles poderes de arrependimento poderiam surtir mais do que míseros efeitos em mim? Eu já matei milhões. Já matei Tiamat, Quingu, deuses que nem mesmo você sequer ouviu falar! Já exterminei povos inteiros em Ark-a-Nun! Acha mesmo que tem lugar em minha alma para arrependimento?!
Dito isso, Marduk segura o corpo de Uriel pelos ombros, e rasga a parte superior do corpo do Anjo do Arrependimento, enfiando sua mão entre suas víceras e puxando seu tão esperado prêmio.
― Ora... quem diria. É mesmo no formato de uma chave.
E Rei Marduk riu.
***
Prólogo
Os céus urram num barulho medonho, como se algum antigo deus negro estivesse acordando, enquanto nuvens eram escorraçadas dos céus avermelhados de Ark-a-Nun. Um imenso turbilhão se forma, enquanto de lá saem 500 falanges angelicais guerreiras, armadas de espadas, lanças, manguais e machados. E à sua frente estava Miguel, trajando uma armadura de batalha dourada com uma cruz em seu elmo, o símbolo de todas aquelas tropas, quase ofuscado somente pelo olhar furioso de seu líder.
― Que Demiurgo seja testemunha, mas eu só sairei deste mundo destruído quando salvar meu irmão! ― dito isso, a revoada de anjos segue-o numa simetria perfeita quando este desce num vôo em queda livre rumo à uma gigantesca cratera, deixada por Marduk no seu retorno à superfície. Em meio à descida diversos veios de lava incandescente vertiam, derrubando diversos anjos no caminho. Miguel, entretanto, permanecia incólume, alheio ao fogo e à destruição, rumando apenas para onde ele sabia estar seu irmão. E, ao chegar lá, viu apenas sete figuras negras, velando pelo corpo morto de seu irmão.
Morto.
O rosto de Miguel contorceu-se de horror e tristeza. As falanges silenciaram-se. Ele desceu sozinho até ele.
― Você chegou tarde, Miguel. ― disse uma das figuras negras ― ele agora é nosso.
O anjo olhou para a figura, trantornado.
― Você sabe.
E, sem mais uma palavra, o anjo beijou os lábios de seu irmão, deixando cair uma última lágrima sobre este. Era seu adeus. E assim, a falange foi embora de Ark-a-Nun, debandando em silêncio absoluto.