Liberdade sonhada
O nervosismo estampado na face de cada membro da família que adentrava a grande sala em estilo colonial, com móveis escuros e de madeira pesada, vindos de além-mar. Acomodava-se como podiam. As mulheres nos sofás e poltronas altas, revestidas de um tecido roxo e dourado, os homens sob grandes baús e bancos. Após entraram os escravos e empregados, que ficaram encostados à parede ou na soleira de portas e janelas.
Coronel Emiliano dava as ordens em tom de despedida:
“As mulheres não saem a passear pelas redondezas, serão presas fáceis dos inimigos”.
“Os empregados, capatazes e capitão-do-mato ficam encarregados das armas e atentos a todos os movimentos da fazenda e da região”.
“Os escravos, que defendam as mulheres, a plantação e os animais com a própria vida se possível for, afinal, após a guerra, receberiam o maior prêmio: a liberdade!” – o discurso parecia inflamado. Enchera o peito para proclamar a liberdade para seus escravos, o que seria conquistada com a luta.
As lágrimas escorriam pelas faces da mulher e das filhas, que suspiravam amedrontadas. Estavam acostumadas a uma vida tranqüila, sem sobressaltos ou dissabores, sempre sob a segurança e vigilância severa do pai ou dos irmãos, que agora estavam de malas prontas para partir. Será que valeria a pena esta batalha? Era a pergunta que silenciava a todas elas.
As instruções continuavam. O coronel dava ordens a todos e exigia o cumprimento fiel de cada uma das suas recomendações. Tio Honório coçava a barba grisalha, típico de quando estava incomodado com alguma coisa. Também deixaria sua esposa e filhas ali mesmo na fazenda, para maior proteção, enquanto estaria defendendo o governo uma batalha de interesses ainda obscuros. Era a luta pelo poder.
Algumas escravas velhas faziam orações, apenas balbuciando palavras incompreensíveis e olhando para o alto, com as mãos sob o peito. A angústia reinava absoluta. Quanto tempo os homens ficariam fora? Quantos morreriam nas batalhas? Quantos voltariam inválidos para casa? Eram os pais, irmãos, filhos e amores que iriam para um campo minado, sangrento e de carnificina. A sorte estaria lançada, poucos retornariam para contar suas vitórias.
Esperavam apenas o recado fatídico do início da batalha. Os cavalos e apetrechos já estavam prontos no pátio. Os animais pareciam entender o que lhes esperava pela frente. Estavam impacientes, relinchando e pateando com violência. Os cães latiam em desatino. Ouviu-se de repente o trote de um animal que se aproximava a galope. Todos seguravam a respiração. Era o mensageiro que trazia o recado da guerra. Era hora de partir ao encontro da morte.
Parando em frente à porta principal o jovem vestido com o uniforme de batalha, salta velozmente do cavalo e entra sorridente sala adentro. Sorriso na cara numa hora dessas? Estaria ele louco? Trazia a mensagem que ninguém queria ouvir e parecia rir de felicidade.
“ Revolução acabou, não pegaremos em armas. O acordo de paz foi assinado!” – a voz do mensageiro retumbou dentro do casarão.
Por um breve instante o silêncio que se seguiu parecia uma eternidade. Lá fora as animais silenciaram também. Até que um moleque, filho de uma ama-de-leite irrompe num berro assanhado, comemorando a boa nova.
Aplausos, choro, risos e abraços. O tumulto estava gerado. A festa começava naquele momento. Era hora de celebrar a vida. A guerra ficaria para trás. Agora um novo tempo se anunciava: paz e liberdade. Enquanto os senhores se cumprimentavam, os escravos saiam de mansinho, com lágrimas no canto dos olhos, gargantas secas, pés descalços pisando sobre pedras pontiagudas que machucavam menos que a ferida aberta em seus corações. E a liberdade prometida? Um sonho que a paz desfez.
Oséias Santos de Oliveira
Professor, diretor de escola, membro da ASES / Associação Santa-rosense de Escritores
Santa Rosa – RS
Conto publicado na obra: Contos Fantásticos vol 11 (Câmara Brasileira do Jovem Escritor - RJ/2008)
oseias.ol@uol.com.br