O ESPALHA BRASAS - VI PARTE

O ESPALHA BRASAS

A poucos dias do regresso a Portugal, Cidália sente uma vontade incomensurável para abraçar o marido, num querer, ainda maior de dedicação total e exclusiva e num esforço para esquecer a família e amigos. Sente que precisa de muita energia e capacidade para superar a afectividade deixada no Canadá, mas também tem a consciência de que o investimento no marido é de todos o que poderá dar toda a realização que um casamento de amor, sugere. O último telefonema trocado, deixou claro que a saudade estrangula e asfixia o coração da jovem. As palavras por si proferidas, eram testemunho de amor e desejo profundo, encurralando, sem esse propósito, Franklim para questões relativas à consciência e honra. Ela, na parte final do telefonema chegou a questioná-lo se o negócio estaria a decorrer com normalidade, em razão do laconismo que o marido evidenciava, não lhe ser familiar. Não era esse o seu modo de ser e Cidália, estranhou-o. Franklim desculpou-se, dizendo, sentir-se embargado pela saudade…e que só por isso, estava mais dado a ouvir que, a falar. A desculpa foi aceite e a jovem disse-lhe que as próximas 72 horas que os separa, seriam as mais longas, para os dois. Este telefonema, teria sido o mais penoso de quantos Franklim atendeu e o seu laconismo mal disfarçado, mas notado pela esposa, iria deixá-lo perturbado e ao mesmo tempo cúmplice. Cidália, percebeu que o marido estava definitivamente pouco falador, imputando à saudade, a afonia e abreviou o final do telefonema. Trocaram-se beijos e palavras carinhosas e este momento de despedida, seria aproveitado por Franklim para, num misto de verdade e alguma hipocrisia, lhe dirigir palavras afectuosas e bonitas adjectivações. Este momento, poderá interpretar-se como o do soldado que sai do teatro de guerra vencedor, não pela coragem, mas pelo medo que o assiste. Na verdade, quis esconder a sua fragilidade atrás de um discurso caudaloso e liderante, para se aliviar. Foi este, o meio que encontrou para esbater o observado laconismo.

Acabado o telefonema, cada um reflectiria no modo como decorreu. Em Cidália, não se notariam especiais preocupações, que não sejam as de que as próximas horas decorram com celeridade, para o abraço apaixonado. Já Franklim, teria razões para exaustivas e preocupantes reflexões, especialmente pelo receio de deixar transparecer algo inconveniente. Tem três dias, até que a mulher regresse, para aprender a medir as palavras, comportamentos ou atitudes, sem se comprometer. Da certeza do seu amor por Cidália, não se questiona, mas teme que os sentidos o traiam. Para obviar, promete distanciar-se de Julieta, mas esta conduta também tem os seus riscos. Reconhece e sabe que, poderá entristece-la se, mudar os seus hábitos de postura ou tratamento. Também reconhece e sabe que, ela não lhe é merecedora de diferenciação. Este dilema levá-lo-ia a maturar as ideias e chegou à conclusão que o melhor, seria ter uma conversa com a jovem cozinheira para acertarem procedimentos futuros.

Partindo deste pressuposto, Franklim encorajou-se e, ao contrário de se afastar, como o fazia antes, procurou Julieta para lhe falar da sua preocupação com o avanço íntimo que a ausência de Cidália proporcionou.

- Julieta, hoje sou eu que te procuro para que tenhamos uma conversa responsável acerca do avanço a que a nossa intimidade estava exposta. Como sabes, a minha mulher está de regresso e eu, pelo muito amor que lhe tenho e pelo dever de respeito que ela merece e que tu, por certo corroboras, sugiro-te uma trégua afectiva entre nós, na certeza porém de que não seja nunca um sinal de perda de confiança ou amizade que tenho por ti e que nunca jamais pensei ser tão séria. Estas palavras que te dirijo são arrancadas do meu peito a muito custo e surgiram depois de uma reflexão cuidada e muito ponderada. Não é só a Cidália que está nesta encruzilhada e como facilmente adivinhas, para a minha extremosa mãe, seria cavar-lhe a sepultura com o desgosto que a fractura do meu casamento poderia originar.

- Está descansado Frank. O que tu acabas de expor já me passou pela cabeça e a tua reflexão me parece um esboço daquela que eu própria fiz. Não, não porei nunca em causa a tua reputação e honra e o que quero para ti, é tão só, a tua felicidade. O destino não nos quis juntar. Quanto a isto nada a fazer. A única certeza que tenho, é que o meu coração não será nunca entregue a outro homem. O amor que tenho por ti, virou paixão eterna até que, meu corpo se desfaça em cinza.

- Julieta, fico sem palavras. Tu disseste tudo o que eu gostaria de ouvir e acabaste de cimentar o apreço e amizade que nutro por ti. Eu nunca duvidei do teu carácter e agora muito menos. A nossa amizade deverá sobreviver aos ditames do coração por um imperativo da razão.

- Antes queria morrer que, sentir o peso da vergonha de estragar um casamento feliz e de que Cidália seria vítima inocente.

O diálogo havido, terminaria com um abraço, selador das palavras antes proferidas. Entre eles, ficou assente que a relação continuaria nos mesmos termos e moldes anteriores.

D. Felícia, sente saudade pela nora e, hoje, antevéspera do seu regresso, abordou o filho para lhe dizer que é da sua vontade ir ao aeroporto recebe-la.

- Franklim, desde que a tua mulher foi passar férias ao Canadá, nunca te ouvi falar dela. Eu não tenho nada com isso mas, sempre é minha nora… e tu sabes que gosto dela. Parece-me que andas algo estranho. Estarei enganada?

- É impressão sua. Eu não tenho falado dela porque, não aconteceu…apenas isso…de resto, não sei onde foi buscar essa ideia!

- Como sabes, já ando há mais de setenta anos por aqui, e raras vezes me engano em relação a certas coisas. Não esqueças que, nós mulheres, temos um faro para perscrutar o futuro, que nem te passa pela cabeça. E olha, que esta dica te sirva para perceberes que a tua mulher não é diferente das outras. Ela poderá perceber que nem tudo estará bem contigo. Desculpa, eu estar a bater na mesma tecla mas, o meu alerta é no sentido de que não sejas apanhado de surpresa. Sou tua mãe e o que quero para ti é o melhor…

- Tudo bem, mas ainda não consegui perceber onde quer chegar. Eu não acho que falar dela seria assim tão importante para si. Para a próxima, mimá-la-ei… Quanto à ida, depois de amanhã, ao aeroporto, ainda falaremos mais em pormenor noutra ocasião.

- Certo. Espero que, não tomes a mal o que te disse. Apenas me pareceu que…coisas de velha…

O pequeno diálogo de mãe e filho, jamais será esquecido por este. Doravante, Franklim sabe que os seus passos poderão ser vigiados não por dois, mas por quatro olhos, os de mãe e esposa e por duas almas femininas, perscrutadoras do impensável. Nunca antes lhe havia passado pela cabeça que, mesmo não tendo sido observado em troca de palavras ou afectos com Julieta, os sinais invisíveis pudessem ser capturados pela mãe. Perante a evidência da preocupação maternal, ficou perceptível que para ele, a mulher é portadora de insondáveis mistérios que ao comum dos homens e mesmo, aos mais atentos, lhes escapa de todo. O seu comportamento futuro ficará definitivamente condicionado pelo medo de falhar. A psicose do medo é algo de tormentoso e assustador para o qual nunca se havia preparado e que lhe vai exigir muito de si, para superar. Será com muito auto controle e esforço comportamental que, terá de conviver nos próximos tempos, até que se desvaneçam os sinais de confusão mental que o tem apoquentado. A si mesmo, imporá o desafio de vencer sem que, algo passe para o exterior.

Chegada a noite de véspera do regresso de Cidália, D. Felícia, sentia-se intrigada por o filho ainda não lhe ter falado do horário da chegada da nora.

- Franklim, prometeste-me falar do regresso da tua mulher e a esta hora da noite, ainda não balbuciaste uma palavra. Com isto tudo, ainda achas que não tenho razões para…

- Minha mãe, peço desculpa por me ter esquecido…

- Será que, não fazes gosto que eu te acompanhe ao aeroporto? Se é isso, diz. Não quero ser um fardo, um peso para ti…e, olha que o meu interesse em te acompanhar não é por pensar que tenhas medo de viajar só. Não. Tenho razões que me ultrapassam e que a tua mulher merece…

- Que coisa, mãe…Alguma vez, não gostaria que me acompanhasse? Isso nunca. Foi mero esquecimento não lhe ter falado. Então e para que fique tudo clarificado, amanhã sairemos depois do almoço.

- A que horas está prevista a chegada de Cidália?

- Pelas 19.00 horas. Temos tempo e mais do que tempo…

- Tempo temos mas, ainda quero comprar um ramo de flores para a presentear.

- Deixe lá isso. Não gaste dinheiro…

- Não vou gastar dinheiro nenhum. Vou investir dinheiro. A minha nora é o maior investimento que me resta para estes poucos anos, meses ou dias, que viverei. Ela é a nora que sonhei para mim e que Deus me quis brindar. Darei eternas graças a Deus por, na recta final da minha existência ter sabido adivinhar o que me enchia de felicidade. Parece impossível, como há gente que não acredita em Deus e na sua bondade…

- Minha mãe, sinceramente não estou a perceber onde quer chegar. Se Cidália é para si a nora que queria ter, dir-lhe-ei que, Cidália é a nora que eu lhe queria dar. Quanto a este assunto, estamos empatados. Quando lhe falei, para não gastar dinheiro nas flores, é pela certeza de que Cidália está segura do meu amor por ela e que as flores, independentemente de representar um bonito gesto, não acrescenta nada.

- Olha meu filho, tu ainda só viveste vinte e seis anos e a escola da vida, apesar de tu seres um jovem talentoso, ainda está no início. Toma atenção ao que te vou dizer. A tua mãe, apesar de ter pouca escolaridade, já fez a licenciatura da vida, o mestrado e está a concluir o doutoramento. Por isso, não me falta autoridade moral para te dar lições e não penses que, as deves ignorar. O ramo de flores que vou comprar e que tu vais oferecer à tua mulher, tem para mim um significado que vai para além, do facto em si. E sabes porquê? Teu pai, tal como tu amas a tua mulher e do qual não tenho dúvida, também me amava mas, e também como tu, achava um desperdício gastar dinheiro em flores. Esta é a mágoa que guardo do teu pai. Nunca recebi flores em mais de quarenta anos de casada. Esta mágoa, não a quero para a minha nora. És jovem e estás a tempo de corrigir o “tiro”. Não esqueças nunca: não há mulher que não goste de receber flores. As mulheres têm destas coisas…são diferentes de vós, homens, que desvalorizam e acham fútil o que a alma feminina valoriza, independentemente do valor patrimonial do presente. Um ramo de flores, pode ser mais valioso que a jóia mais valiosa, o que é preciso é ter sensibilidade para o saber dar na hora certa, no momento certo. E, sabes qual é esse momento? – É quando a mulher menos espera. Esse é que é o momento certo. É nesse momento que, as flores que no dia seguinte estão murchas e vão para o caixote do lixo, alcançam o seu maior “perfume”. Espero que não tomes a mal o que te digo. A minha vivência deu-me riqueza bastante para incorporar na tua educação, esta dica. Eu sei que, a educação e a formação da personalidade se esquece destas pequenas coisas que tantas vezes apaziguam a alma ou amenizam a dor. A sociedade não é perfeita mas, se cada um de nós der algo de bom para que ela seja melhor, porque não, fazê-lo? Sei que és um jovem ambicioso e talentoso e já agora que, estou numa de te dar conselhos, recebe mais este que, não te vai fazer mal nenhum: o dinheiro por si só, não faz a felicidade de ninguém, apenas pode ajudar ou até mesmo destruí-la. Toma cuidado e procura que ele nunca esteja à frente do amor, da paz, da solidariedade…conforme o seu bom ou mau uso, assim receberás.

- Minha mãe, não sei como lhe agradecer esta conversa pedagógica e que doravante norteará a minha postura. Quando se é novo e o sangue fervilha nas veias, passam-nos ao lado aquelas coisas a que, vulgarmente chamamos futilidades. A sociedade hodierna, descaracterizou o homem e os valores foram ultrapassados pelo consumismo. Ter um Mercedes ou um BMW, passou a ser a prioridade das prioridades. Infelizmente, também me senti embalado pelos ideias de realização pessoal, assente no consumismo mas, o seu alerta permitir-me-á valorizar o lado humano e solidário, o qual, deveria ser a prioridade maior.