O boi sem cabeça e o homem

Os campos estavam cheios de gado lá na Estância da Capororoca Grande. Mas um boi se destacava, tinha os chifres e a face mais linda de todos os rebanhos. Era algo jamais visto, todos, humanos e outros animais admiravam a beleza do boi, chamado pelos peões da estância, de “Formoso”.

Formoso era um zebu de um grande porte físico. Aos que o elogiavam parecia sorrir, mas bastava dizer que ele “até parecia uma vaca de tão bonito” que imediatamente fechava a cara. Formoso era como os outros bois, no entanto, estava no campo esperando o dia de ir para o matadouro. Ele sabia disso, mas era “racional” demais para aceitar este destino.

- Jamais vou ser um bife! Eu nasci pra morrer no campo.

A estância tinha um vasto território e moravam muitas pessoas por ali. Quase toda a semana um boi tinha de ser morto para alimentar toda aquela gente. Sem falar nas charqueadas. Ah, as charqueadas.... Diariamente muito bois eram vendidos para as charqueadas, as estâncias que produziam o charque ou carne salgada.

Formoso morava num lindo campo da estância, mas também o mais distante. Era um lugar isolado, beirado por um arroio e onde haviam muitas árvores altas e moiteiros. Algumas vezes os peões já haviam trocado Formoso de campo, mas para ele não haviam barreiras, sempre voltava ao seu lar, onde o rebanho vivia em harmonia. A maioria pastando e esperando a hora de virar delícias na panela da cozinheira da estância. Dona Aida era boa de cozinha mesmo. Virar um prato feito por ela devia ser um honra. Se um boi estivesse contando esta história talvez mudasse esse trecho.

Mas e Formoso? A ele, que era inteligente restava apenas confabular com a vaca zebua Zabubua. Muito velha ela já deu várias crias, algumas ainda vê, outras já se foram. É dona de uma grande sabedoria e assim como Formoso, muito rebelde. Não se entrega para o bicho homem e talvez nunca vá se entregar mesmo. Está quase morta, sua carne não presta nem pro charque mais. Agora ela vai ficar no campo, que morra por lá – pensam os humanos.

- Chegará um dia em que nós bois teremos inteligência para superar essa raça medíocre que é o homem!

- Talvez chegue Formoso, mas creio que seja muito difícil, a inteligência e o coração do homem não permitem que possamos viver livres. Formoso, vou te contar uma história, não sei se sabes, mas em uma das minhas crias fui levada à estância, eu tinha muito leite e eles o queriam para alimentar os humanos, afinal, as mulheres não conseguem garantir o leite por muito tempo, até nisso somos melhores do que elas. Bom, lutei muito pra evitar que meu leite fosse tirado pra eles e meus filhos ficassem apenas com as migalhas. Mas foi em vão. Quando presumi que eu seria morta se não desse o leite, acabei cedendo e sendo a leiteira oficial da família. Tornei-me afável, afinal, alguns me tratavam bem e eu, neste tempo, já me alienava a seguir o homem. Estava decidida a desistir da luta. Eu morrera para sempre desde que parei e deixei que tocassem os meus seios para tirar o leite.

- E a senhora desistiu mesmo Zabubua?

- Pois bem Formoso, neste tempo tive muitos contatos com o homem. Ouvia as suas histórias, via o que faziam. Nada é mais irracional do que aquilo. O comportamento deles é muito estranho, não há respeito, uns falam mal dos outros. Presenciava isso todo dia. Um ser reclama do outro! É difícil ver que eles dominam o mundo com sua arrogância, até entre pais e filhos há muita mentira, fazem as coisas escondidas, tem vergonha de tudo. Usam até roupa por vergonha, mas fazem coisas muito mais feias... Mas...Formoso, é o nosso destino, temos que aceitar e infelizmente, um dia vão vir te buscar, apesar de lindo, tu também tens carne.

- Comigo não vai ser assim, garanto que ninguém vai me pegar, jamais vou para o prato de ninguém!

Zabubua parecia desolada com o pensamento de Formoso. Era jovem, idealista, parecia até um ser humano nesta fase.

- Um dia ele vai se entregar, que nem eu- pensava a velha vaca.

O campo tinha montanhas, pastos, locais muito bonitos. Formoso passeava com os amigos bois, sem conversar, já que os outros só pensavam em ruminar e obedecer ao homem, esperando o derradeiro dia. As pastagens eram gostosas e fartas. Formoso se deliciava, mas também sabia apreciar a beleza e uma boa conversa com Zabubua.

Certa feita, Formoso estava tranqüilo ruminando no paradouro e pensando na vida quando chegaram dois peões montados sobre velozes cavalos dando estrondosos e irritantes gritos para levar o gado para a mangueira – ou curral. Todos se levantaram e se prepararam. Formoso pensou e partiu em disparada pelo meio do mato.

- Eles não vão me pegar!

Os peões não desistiram e saíram atrás de Formoso, que derrubava as árvores e arbustos por onde passava. Enormes cachorros foram atiçados e mordiam as suas pernas. Ele bufava e chifrava os caninos, correu tanto que a peonada desistiu e foi embora levando o resto do rebanho. Formoso resultou bastante machucado devido aos choques com as árvores e espinhos e às mordidas dos cachorros.

Já velha, Zabubua não mais era levada para a mangueira. Formoso a encontrou e contou o acontecido. A vaca aparentava tristeza e estava muito fraca.

- Formoso, meu querido, não vale a pena lutar assim. Desista...

- Não vou desistir Zabubua, e espero que tu sempre estejas ao meu lado! Lute comigo Zabubua, juntos podemos convencer os outros bois a lutar também contra este famigerado ser humano.

- Não há mais tempo, Formoso, está chegando a minha hora. Sinto que Deus está me chamando!

- Não Zabubua, não posso viver sem a tua companhia!

- Infelizmente Formoso, hoje já vou me entocar no mato e morrer em paz, a beira da sanga... Adeus meu boi lindo, nunca esqueça desta vaca velha e não se sinta inferior a nada e ninguém por ter que ceder as exigências e necessidades do ser humano. Quem sabe não é te reservado um futuro melhor? Boi de rodeio, quem sabe?

- Não, jamais vou me entregar a esses seres sem coração, sem piedade, sem respeito....

Arrastando-se pelo pasto e apresentando visível falta de condições de permanecer viva por muito tempo, Zababua dirigiu-se para o mato, onde morreria em paz, a beira da sanga, como queria.

Formoso, pela primeira vez chorou, as lágrimas escorriam pelo rosto.

- Agora estou sozinho! – pensava isto quando percebeu que os peões da estância traziam de volta o gado, mas agora já não eram dois, mas quase 10 homens a cavalo e a pé, com muitas cordas, facões, machados e até armas.

Com eles também vinha o patrão:

- Hoje vamos pegar aquele boi matreiro! Atiça os cachorros Badico! - ordenou ao empregado.

E a caçada começou. Como sempre Formoso partiu em disparada pelo campo. Percorreu toda a extensão, seguido por cachorros e homens a cavalo, as vezes deparava-se com um sujeito a pé, que tentava laçá-lo. Conseguiram uma vez, mas ele rebentou a corda de couro trançado em pedaços.

Já começava a cansar, mas decidiu não se entregar. Pensava em Zabubua, nas ações do ser humano, não se submeteria a esse tratamento.

Sentiu um forte golpe em seu pescoço. Era um machado. Sua cabeça voou longe, assim como o sangue, mas ele permaneceu correndo e se debatendo e,... desapareceu. Todos os homens tiveram medo e fugiram, o boi, mesmo sem cabeça agitava-se e corria, o sangue parou de escorrer, ouviam-se os bufidos e berros de um animal, só com o corpo. O medo e o pavor foram muito grandes. O patrão decidiu levar a cabeça para se certificar que Formoso estava realmente morto. A cabeça dele estava. Os olhos abertos e mortos.

Todo orgulhoso o patrão apresentou a cabeça dizendo que Formoso estava morto e ele tinha conseguido esse feito. Mas os empregados temiam. Tinham visto um boi sem cabeça correr e berrar!

Depois de um tempo foram procurar o corpo de Formoso. Centenas de pessoas procuraram e nunca encontraram. Nem o corpo da velha Zabubua.

Aliás, um grupo de pessoas viu os dois. Formoso caminhava, sem cabeça e berrava, enquanto Zabubua, uma vaca velha, se arrastava pelo pasto e ruminava. A disparada foi grande e Formoso apenas mugia, afugentando a raça com a qual ele tanto havia lutado. E vencido, talvez?

Até hoje vê-se Formoso correndo pela Capororoca Grande, sem cabeça, é claro, seguido pela velha Zabubua. O medo na região é total e sempre que alguém maltrata um animal, mais cedo ou mais tarde vê Formoso correndo e bufando, em sinal de desaprovação!

Gabriel Barcellos
Enviado por Gabriel Barcellos em 03/03/2008
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