MARTE.

Noitinha. À margem direita do Rio São Francisco, pouco acima do lugar onde hoje está o paredão da Barragem do Sobradinho. A lua no primeiro terço entre o nascente e o zênite. Sem nenhuma nuvem próxima, brilhava a lua - e era cheia - em toda a sua intensidade. Ao parado ar de agosto, as águas desciam suavemente. Afora o remoto sussurro da cachoeira, silêncio total.

Eu em pé à beira do barranco. Encontrava-me de férias e como fazia todos os anos, gozava a paz daquela lonjura, onde tinha parente. Gostava daquilo. Não lia jornal, não ouvia rádio. Não havia televisão. Perdia, praticamente, o contato com a civilização, da qual só sabia alguma deturpada notícia, quando encontrava algum canoeiro ido de Juazeiro. Nesse tempo não se falava, ali, em barragem e andava-se longe de pensar que as corredeiras do Sobradinho viriam a servir de apoio ao paredão que barra o Velho Chico, fazendo-o mar.

De repente uma luz azulada, coisa semelhante a uma grande lâmpada fluorescente, vem do alto e se aproxima velozmente. Pára no rio, a uns trinta ou quarenta metros da margem. E tão clara é aquela luz, que secundada pelo luar, permite ver, perfeitamente, o objeto pousado, balouçando sobre as águas. A idéia me ocorre prontamente:

- Um disco voador.

De seu interior desce uma pequena canoa, que é posta no rio. Dois homens saem e tomam a embarcação, dirigindo-a para o ponto onde me encontro. Aportam no barranco ao meu lado e descem tranqüilamente. Morenos queimados, cabelos lisos, cerca de um metro e quarenta a um metro e cinqüenta, feições semelhantes às dos orientais. Dizem boa noite ao mesmo tempo e ao ser-lhes perguntado quem são, de onde vêm, eis a resposta:

- De marte.

Não há temor nem qualquer preocupação em mim. Nem admiração. A acolhida é tão cordial como a que daria a qualquer visitante meu conhecido. A conversa anda em torno de marte, de viagens interplanetárias. A dado momento convidam-me a dar um passeio em seu planeta. Entendido que seria apenas um passeio de pequena demora, o convite é aceito. Então, como se nada mais tivessem a fazer ali e nada mais lhes interessasse, ou como se estivessem em procura apenas de uma pessoa ou daquela pessoa, como se uma viagem Terra-Marte fosse uma coisa muito simples e estivessem em passeio, os marcianos se decidiram a partir. Tomaram a canoa, eu os acompanhando e em pouco estávamos na aeronave. Recolhida a esta, a canoa se transformou em um pequeno volume de uma matéria definível entre a lona, o plástico e o metal flexível, que foi posto a um canto.

A aeronave, um disco voador semelhante aos que aparecem nos desenhos publicados em revistas e jornais dos anos cinqüenta, tinha o interior em circular, tanto quanto o exterior. A luz ambiente era de um azul aproximado ao do maçarico dos soldadores e brilhava com uma intensidade de encandear. Do piso ao teto, a altura ia a mais ou menos dois metros. Bem no centro uma peça cilíndrica de cerca de três, quatro polegadas de diâmetro subia de um extremo ao outro, firmemente presa em cima e embaixo. Nesse cilindro, um volante semelhante ao de um automóvel fixado a cerca de oitenta centímetros do piso, representava o sistema de direção. Era usada como assento do piloto uma banqueta fixada ao cilindro, com um dispositivo que enseja aumentar ou diminuir sua altura.

Nenhum segredo, nenhuma ciência aparente no comando do aparelho. Tanto assim que os tripulantes ofereceram-me a direção e eu a aceitei, perguntando apenas como se fazia o manejo. A resposta simples:

- É igual à de um automóvel. Basta aprumar o volante e mover para um lado ou para o outro, conforme a necessidade de mudar de rumo. Tê-lo seguro firmemente para evitar desvios. Na posição em que está, a nave sobe em vertical. Para a partida aperte este botão aqui.

O motor já estava ligado. Melhor, continuou ligado enquanto os tripulantes estiveram em terra. Quando eu pressionei o botão indicado, o veículo largou suavemente, tomando, a seguir, uma velocidade soberba. Não utilizava nenhum combustível, mas a energia ambiente, foi dito, sem que se esclarecesse como se formava e como era captada essa energia.

Em português corrente, sem sotaque de língua diversa, ligeiro que fosse, os tripulantes conversavam comigo enquanto a nave engolia espaço.

- Lá vou eu, mundos por todos os lados, pensei, rindo, a caminho de marte. "A casa de meu Pai, adverti-me da palavra do Cristo, tem muitas moradas".

A confiança era total. Não me passava pela mente que estivesse sendo enganado, raptado e aqueles sujeitos poderiam não me restituir à terra. Não tinha nenhuma noção do tempo, não sabia há quantas horas viajava, não perguntei quantas ainda faltariam. Sentia apenas que a velocidade era espantosa, coisa assim como uma viagem de sonho. Lá uma hora percebi que fora do disco era dia claro. Foi quando subíamos lateralmente a alguma coisa parecida com uma alta montanha de granito, representada por um bloco único e imenso, uma pedra cortada em linha reta, essa a impressão. Ia tão próxima a nave, que não seriam mais de vinte metros.

- Que é isso?

- A lua, foi a resposta. Estamos passando pela lua.

Dando a resposta, um dos tripulantes se aproximou tanto de mim e com olhares tão lânguidos, que eu me assustei. Olhei cuidadosamente a pessoa próxima, e só então percebi tratar-se de uma mulher, não de um homem como me parecera antes. Reparei na outra pessoa.

- Como? Duas mulheres - gritou meu pensamento.

Aí me lembrei de que aquilo poderia ser um seqüestro e nunca mais seria restituído à terra.

Ainda sem noção de tempo, observei que nos aproximávamos de alguma coisa como um planeta. Era marte. Em pouco a descida, suave, sem qualquer dificuldade, como se fosse um pouso de avião, com a única diferença de que se pousava em vertical. Via uma verdadeira festa de recepção, o que me advertiu de que o planeta fora avisado da chegada.

Agora é a entrada no palácio do rei. Havia um rei, entendi sem que me fosse dito, o que dava a sensação de mensagem telepática. O palácio era construído em subterrâneo, do mesmo modo como eram todas as habitações, disso seria informado mais tarde.

A partir da superfície descia uma larga escadaria em semicírculo, para encerrar-se em um amplo pátio que, no conjunto com a escadaria tinha a forma de meia lua, ou pouco menos que isso. A fachada do palácio era grande. Não teria menos de duzentos metros, estendidos em curva suave, formando um desenho côncavo, na base de cujo corte vertical ia dar, em convexo, o pátio.

Ao aproximar-me, notei que muita gente se dispunha em ordem e do interior do paço subia um andor de forma circular, sobre o qual se assentava um trono, neste o soberano. O andor era carregado por quatro homens. Rapidamente observei que todas as pessoas se pareciam muito, meio achinesadas na semelhança, com uma altura que não iria a mais de um metro e meio, todos morenos queimados, da mesma forma que as companheiras de viagem. Havia mais mulheres do que homens, mas a distinção entre os sexos não era fácil, todos miúdos e esguios, as fêmeas com uns seios mal percebidos.

O andor foi posto sobre um pedestal de cerca de um metro de altura. O rei trajava solenemente, tendo uma vestimenta azul com bordados dourados. Dirigindo-me ao trono sem que ninguém me desse orientação neste sentido, no que sentia uma vez mais a sensação da comunicação pelo pensamento, fiz uma longa mesura diante do monarca, sendo nisso acompanhado por todos os presentes. O rei ofereceu-me a mão a beijar e neste ato de beija-mão, eu me curvei ainda mais. A seguir, o monarca dirigiu-me a palavra, em bom português, perguntando pela terra e suas coisas, sua gente, seus problemas. Pareceu muito curioso e interessado no informar-se.

Encerrada a cerimônia e a entrevista fui convidado a conhecer o palácio. Vi, em seguida, outros edifícios, amplos subterrâneos, cada um deles abrigando muitas famílias, estas distribuídas em miúdos compartimentos, alguma coisa como os nossos apartamentos. Notaria, então, que no planeta todos os desenhos se aproximavam da circunferência, ou pelo menos eram em curva. Os compartimentos dos edifícios, os objetos de decoração e adorno, tudo era trabalhado em círculo, em côncavo e convexo, raramente em oval ou caracol.

Fora verificaria a inexistência de arborização. Vi uma velha árvore, única na circunvizinhança, sapecada, quase sem folhas. Ao indagar sobre isto, me disseram que árvores quase não existiam no planeta. Aquela era uma das raríssimas, conservadas com imensos cuidados, porém sem possibilidade de ir a muito tempo. Alimentavam-se de produtos químicos, muitos desses elaborados a partir de substâncias colhidas na terra, que visitavam amiúde, andando no meio da sua gente sem serem percebidos. Havia até os que possuíam identidade como terrenos. Só uma coisa: não podiam demorar-se senão poucos dias, sob pena de perderem a energia própria à sua vida, esgotando-se até morrer.

O solo que vi era tostado, semelhante à borra saída das forjas. Parecia ter passado por uma elevadíssima temperatura, que o houvesse derretido. Informaram-me que isso provinha da constante queda de aerólitos, a mesma razão que, ao lado dos fortes ventos, impunha a construção de edificações em subterrâneo. Não chovia no planeta, não existia água. Até os lençóis subterrâneos se haviam esgotado. Captada nos mananciais da terra, a água só era usada para o consumo humano.

Não havia animais. Todas as espécies, selvagens ou domésticas tinham desaparecido com a falta de água. As viagens espaciais eram rotineiras e impostas pela sobrevivência. Constituíam-se em rotina de trabalho, sendo praticamente todos os marcianos, dos dois sexos, profissionais nesse mister. A população humana também já era reduzida, constituía-se de pequenos núcleos localizados em lugares menos áridos, menos tostados, talvez seja a palavra. O planeta se esgotava, urgiam providências para o salvamento de sua gente. Uma das previstas era a migração para a terra. Isso dependia, porém, de descobertas que permitissem a permanência definitiva dos marcianos em nosso planeta. Havia pesquisas favoráveis, já podiam viver dias, algumas semanas. A vida diferia pouco entre os dois planetas, as condições climáticas em alguns lugares se assemelhavam. Mapeavam cuidadosamente essas áreas.

À noite vi um belíssimo astro brilhando no céu e perguntei se era a lua. A resposta foi a de que era uma lua, não a da terra, que não se via dali. E me apontaram, em diferentes posições, mais dois astros, com esse esclarecimento:

- As luas de marte. Temos três satélites que nos servem de estação de pouso em nosso trabalho espacial.

Enquanto passeava e observava, sempre acompanhado das tripulantes da aeronave com as quais viajara, lá um momento me lembrei de meu mundo e perguntei há quanto tempo havíamos saído.

- Em tempo da terra, seis dias.

- Gente! Me levem de volta que eu sou funcionário e não posso faltar ao trabalho. Minhas férias estão terminando.

No dia seguinte estaria de retorno. Com uma diferença. Não no Velho Chico, mas na cidade de Queimadas, onde então trabalhava. A aeronave me deixou à noite, nos arredores da cidade.