A cada três mil anos

Duas mulheres papeavam à mesa sete, no mezanino de um requintado restaurante, donde fulgurava uma maleta prateada, aberta, com papeis dentro e fora dela.

O tom das vozes alternava; ora audíveis, ora sussurros. Os gestos também oscilavam entre suaves e bruscos.

Ambas trajavam roupas finas. Pareciam tratar de negócios. A loira trazia no rosto, abatimento e cansaço. A negra tinha pele viçosa e beleza exuberante.

— Parece que estamos chegando a um consenso! — disse a ruça, desejando encerrar a ardorosa batalha verbal.

— Que consenso!? Não renovarei o acordo! — rebateu a bela, com pujança.

— “Mó!” O planeta está apinhado! Não pode romper o contrato assim! — insistiu a loira, fitando-a com seus reluzentes olhos azuis.

— Romper contrato?! Estou apenas cumprindo suas cláusulas, “Vi!” Ele caducará em vinte e três dias. Está escrito lá! Quer que te mostre?

Entediados, dois garçons observavam à distância e comentavam entre si.

— O assunto ali deve ser sério! Tal de tira e coloca papel naquela pasta!

— Deixa de ser enxerido, velho! – disse o jovem atendente ao veterano.

— Estou cansada! Nesse momento, enquanto conversamos, minhas assistentes continuam trabalhando, ininterruptamente; não param um único segundo. Preciso de férias! – desabafou a beldade da pele apessegada.

— Você não entende! A infestação humana ameaça o orbe. Se com sua gigantesca equipe trabalhando estamos assim, imagine se vocês deixarem a lide! — retrucou à branca, visivelmente fatigada.

— Não fiz as regras, “Vi”. Sou apenas uma emenda nessas leis! Pelo estatuto original eu nem deveria existir! Você e “Tê” é que comandariam tudo. Só me incluíram nessa, quando se deram conta que a eternidade seria um martírio.

Não bastasse o desagradável impasse, uma criança na mesa ao lado começou a chorar.

Por breves instantes ambas silenciaram, seus rostos se voltaram, não para a mesa vizinha, mas para a entrada do restaurante. Acompanhavam um ancião esquálido, com barba curta e alva, que caminhava lentamente na direção em que estavam. Seu rosto fino se escondia atrás de enormes lentes fumê, de um genuíno Ray-Ban.

— Esse é outro! Ou madruga ou atrasa, demasiadamente — resmungou a preta.

Os gritos estridentes da criança ecoavam pelo recinto, provocando olhares enviesados entre os clientes, fazendo o stress represado em “Vi”, transbordar.

— Boa tarde, meninas! Sem lamúrias, por favor! O retardo foi proposital. Não tenho mais “saco” para lidar com essa ladainha, que acontece a cada três mil anos.

Depois de se acomodar, ele chamou o funcionário com a mão.

— Qual o seu melhor vinho?

O tarimbado garçom estufou o peito e disse-lhe entoando a voz.

— Dispomos do Porto Hunt’s, de 1735.

— Adoro esse “feto” português — retrucou o idoso, retirando os óculos, expondo o rosto, severamente sulcado — Quanto custa? — inquiriu.

— Apenas US$ 9.483 — disse-lhe o atendente, com altivez.

— Pode trazer! — ordenou sorrindo o recém-chegado.

— Traga um ovo cru também — acrescentou à loira.

— Que!? — espantou-se o funcionário; sem compreender o propósito do último pedido.

— De galinha, de codorna, de cobra, de jacaré, de dinossauro... Qualquer ovo! — rebateu a ruça, sem estribeiras.

Assim que o garçom se retirou o idoso fitou-a e disparou.

— Não é minha intenção fomentar sua impaciência, mas devo lembrá-la que, nem eu nem ela usamos dinheiro – disse, apontando com o queixo para a negra — a única aqui que utiliza essa joça és tu, portanto, você pagará a conta — e com um sorriso torto nos lábios, complementou — mas não será em vão, querida! Celebraremos a renovação desse bendito contrato. Não é mesmo, gostosona? — finalizou ele, cravando os olhos em “Mó”.

De volta à mesa, o atendente entregou a iguaria à mulher e iniciou o ritual para desarrolhar o vinho. “Vi” levantou, se dirigiu à família ao lado, pôs o ovo na mãozinha da criança, que logo parou de chorar. Seus olhinhos lacrimosos acompanhavam-na, atentamente. Com delicadeza, ela envolveu o ovo e a mão da menina com suas mãos, que logo passaram a transmitir uma estranha quentura, acompanhada de radiosa luminosidade, violeta. Passado alguns segundos ela as recolheu, deixando a pirralha extasiada, com um belo pintinho se mexendo e piando em sua mãozinha. Pasmados, os pais olharam interrogativamente para a mulher, que logo elucidou.

— Faço truques. Em pouco tempo o bichinho desaparecerá – informou a “ilusionista”, com sorriso forçado no rosto, enquanto retornava para junto de seus companheiros.

Após servir o vinho, o funcionário foi surpreendido pela mão macia e gelada da preta, que repentinamente se apoderou de sua destra. Seus batimentos cardíacos descompassaram, o rosto empalideceu, seu corpo começou a tremer... Instantes antes de desmoronar, “Tê”, que acompanhava todo o movimento, escaneou o homem com as vistas, volveu os olhos para “Vi", balançou o dedo indicador de um lado para o outro em sinal de negação e rechaçou.

— Não! Ele ainda dispõe de vinte e cinco anos.

Imediatamente a loira segurou a outra mão do garçom, transmitindo-lhe revigorante calor. Dessa vez, a luminosidade que espargia de sua canhota, tinha cor oliva. Sem demora, “Mó” se desconectou do homem, que logo recuperou a coordenação motora, a cor e o ritmo cardíaco.

— Vocês reclamam de infestação, mas não me deixam trabalhar! — esbravejou a negra, cruzando as torneadas pernas, com o charme e a sensualidade que lhe eram peculiares.

— Antigas regras, querida! Tudo no seu devido tempo — justificou o idoso.

— Que história foi aquela, que o bebê frango logo desaparecerá? — indagou “Mó” a “Vi”.

— Ora, minha querida! Crianças sempre matam bichinhos. Por que com essa seria diferente? Achei justo o escambo: a vida de um pinto, que nem iria nascer, por momentos de paz — retrucou à loira.

Durante aqueles intrigantes e desagradáveis instantes, quando sentiu sua vitalidade ser drenada por “Mó”, o atendente observou que o trio carregava nas golas de suas blusas, pequeninos broches dourados. Cada qual com imagens distintas: o da negra, uma árvore seca; o da loira, uma semente germinando; o do velho, uma ampulheta.

— Você sempre reluta para atender aos pedidos de sua irmã mais velha. Espero que não negue às súplicas desse ancião que vos fala — disse “Tê” à negra, acrescentando argumentos altamente persuasivos — Preciso lembrá-la que, se parar de trabalhar, deixará de existir, já que foste criada, exclusivamente para essa função.

A mulher requisitada silenciou por alguns instantes, revirou os olhos, esboçou um encantador sorriso e pediu que lhe passassem os papeis para assinar.

Terminada a comemoração, preparavam-se para deixar o estabelecimento quando a mãe da criança interpelou à “mágica”.

— Hein! Ele ainda está aqui! — disse, apontando para a avezinha, com a qual a criança brincava sobre a mesa.

— Não pretendemos levá-lo conosco — acrescentou o pai da menina, preocupado.

— Fiquem tranquilos! Tudo se resolverá, antes de sairmos por aquela porta — assegurou à ruça, cutucando a negra, murmurando ajuda — conto contigo! Não esperava tamanha mansuetude e meiguice dessa criança.

Próximos da saída cruzaram com o velho funcionário. A beldade da pele sedosa não perderia a oportunidade de alfinetá-lo, e assim o fez, cinicamente.

— Parabéns! Noventa e cinco anos é privilégio para poucos.

— Obrigado, madame. Espero chegar lá, mas ainda falta! Completei setenta recentemente — respondeu o atendente, visivelmente acabrunhado.

¬— Chegará! — afirmou ”Mó”, deslizando o dorso de sua gélida mão, sobre o seu rosto; tenso e desconfiado. Em seguida, ela volveu a cabeça para o mezanino e bafejou na direção da mesa oito; como se tivesse soprado uma zarabatana, disparando pela boca pequena névoa cinzenta, que percorreu o ar com a rapidez de um dardo venenoso. “Tê” acompanhou o episódio com extrema lentidão e testemunhou o momento em que a pequenina nebulosa atingiu o bichinho, fazendo com que o mesmo caísse imediatamente duro, sem vida. A criança reiniciou o berreiro, agora com decibéis absurdamente elevados. O trio deixou o restaurante.

Intrigado, o garçom se dirigiu apressadamente para recepção. Folheava o livro de reservas, apreensivo. Estupefato, acompanhou com os olhos saltados a seguinte anotação, que se apagava a media em que a lia: “Mesa sete do mezanino, reservada para os executivos (as) da corporação ‘Axioma’: Sra. Morte, Sra. Vida e o Sr. Tempo”.