Registros de um velho caçador - Parte 04: " Cicatrizes de Batalhas "

Meu caro amigo,

Deve estar se perguntando o motivo de não ter lhe enviado notícias nesses últimos dois meses. Aconteceram episódios dignos de lendas e peças teatrais, inclusive, penso em escrever sobre o ocorrido quando atingir a tão sonhada aposentadoria. Ou apenas posso reunir essas cartas que lhe escrevo e publicá-las. O que você achou da ideia? Teria que ser muito preguiçoso para tal feito.

Para recapitular os acontecimentos após sair de Vale da Fé, desloquei-me, sem demora à Beira Mata, onde fiquei hospedado em uma simpática estalagem de beira de estrada. O ponto alto da estadia foi o vívido céu estrelado, o qual o observava pelo defeituoso telhado de meu quarto. (Já lhe disse que mereço lugares melhores para trabalhar?).

Na manhã seguinte, conversei com a simpática, porém desprovida de beleza, dona do estabelecimento e rumei à vila de Beira Mata para dar início ao processo investigativo.

Ah! Sabes que evito o assunto, devido ao nosso conturbado passado, mas sinto muita falta de minha queria Kish. Todos esses anos vago por esta jovem província, rastreando e caçando criaturas que, por muitas vezes não causariam mal algum se o homem cessasse seu expansionismo severo. Talvez o longo período que passei na estrada me fez ter mais simpatia com as criaturas que liquido do que as cidades e seus mesquinhos habitantes. Deixando melancolia e indignação de lado, é apenas um desabafo de um velho e cansado caçador.

Retomando...

Após “hidratar” a garganta na taverna local, começo a perguntar para a população sobre os jovens perdidos e infelizmente não obtinha respostas satisfatórias. Todos se recusavam a falar sobre o assunto e terminavam a conversa dizendo: “Não é sábio caçar na floresta nessa época do ano”. Passei a manhã toda “perseguindo” os habitantes de Beira Mata, porém não recolhi informações coerentes. De volta à taverna, enquanto almoçava, um velho senhor se aproximava e me pediu licença para se juntar a mesa.

Com seus grisalhos cabelos, roupas velhas e rasgadas e seu semblante cansado, o homem pediu uma caneca de cerveja e tomou num único gole. Nesse momento, reconheci o brasão imperial em sua velha camisa rasgada. Finalmente um indivíduo civilizado.

“Ouvi dizer que está investigando a floresta local”, disse o velho caolho. “Sei o que está procurando e posso lhe ajudar”. Prontamente pago uma bebida ao homem e após ouvir toda a sua história de vida (bêbados são todos assim) consigo a informação que precisava. Irei resumir tudo que ouvi do veterano Assur:

Assur era um experiente (ainda que jovem) explorador da corte imperial, participando de muitas missões importantes de reconhecimento pelos quatro cantos do mundo. Um certo dia, fora chamado para uma tarefa importantíssima: integrar a equipe de reconhecimento da mais nova província descoberta e anexada ao império. (Apesar de várias décadas após seu reconhecimento, ainda possui muitas terras inexploradas nesse fim de mundo que lhe escrevo).

Prontamente aceita a proposta e encara a interminável viagem de navio até a enseada dos leões, caminho, o qual, eu mesmo percorri quando pisei nessas terras pela primeira vez. Assur e sua equipe passaram muito tempo adentrando no território, relatando e escrevendo (devemos muito a esses bravos desbravadores). Irei poupar seu tempo e não contarei tais histórias, apesar de serem muito interessantes, como o dia em que ele foi salvo por um caçador de nossa ordem. Apesar de ter sobrevivido, a criatura lhe arrancou o olho esquerdo com um ataque feroz.

Quando estavam passando por Beira Mata, o grupo fora atacado pelo pior de todos os males: a doença. Seus colegas faleceram com exceção de Assur. Os moradores da região foram receptivos com ele, permitindo sua estadia na cidade, se assim quisesse. O velho explorador decide se aposentar, depois de tantas cicatrizes e noites mal dormidas ao ar livre e passar a trabalhar e morar na taverna.

Assur ganhou, dos habitantes locais, um apelido muito interessante, “Labatut”, devido ao olho ausente, assim como a criatura, que é caolha. E dessa forma, após relatar toda sua trajetória, eu consigo informações acerca da fera que atacou as vítimas de Vale da Fé, estarei lidando com um Labatut.

As pessoas comuns não possuem conhecimento extenso em relação a criaturas e sua nomenclatura, por isso concluo que apenas um Labatut deve dominar a região, visto que é uma espécie que os habitantes possuem conhecimento, não há outra explicação. Confesso que nunca havia lidado com tal criatura antes, visto que se acreditava que estavam extintos. Aparentemente, nessas terras jovens ainda reside tão abominável fera. Seria uma caçada única. Após agradecer a informação, despeço-me de meu informante e retorno ao quarto para descansar e iniciar os preparativos para enfrentar o meu destino. Fora uma noite de insônia e devaneios.

Na manhã seguinte, dou início as minhas atribuições: preparo alguns virotes com revestimento de prata, faço uma pequena manutenção na besta (que está tão velha quanto o dono). Afio minha fiel adaga que nunca me deixou na mão, nem quando tive que arremessá-la para me safar de um Mapinguari que me perseguia ferozmente, nos tempos de juventude.

Resolvo criar um plano de ataque mais sofisticado para tão importante caçada: fabrico algumas bombas com forte odor, visto que o Labatut possui um olfato extremamente aguçado e usa-o como principal forma de orientação. Crio algumas lanças e estacas de madeira para montar uma armadilha e controlar a distância entre a fera e minha vil carcaça.

Aproveitando a luz do dia, saio em direção a mata para localizar o território da fera. Tarefa simples, se realizada durante o dia, pois a criatura sai de seu covil apenas à noite. Encontro evidências de ação do Labatut e marco o local em minha mente. Aparentemente, o lugar é parte do território da criatura. Cavo algumas covas e posiciono as estacas no chão, de forma a ficarem cobertas por folhas e galhos (técnica clássica de caçador e de guerrilheiros). Espalho slgumas lanças em locais estratégicos ao redor da área.

Eis o eu plano: Irei a procura do monstro à meia-noite e vou atraí-lo para o local preparado. Nesse momento, utilizo as bombas com fortes aromas para manipular seus sentidos e leva-lo até as estacas, onde consigo apunhala-lo com as lanças. Após repetir a estratégia algumas vezes, provavelmente a fera cansará e então me aproximo, saco a adaga e executo o golpe final, pois apenas com a intoxicação causada pela prata no organismo das criaturas deve matá-la.

No caminho de volta, deparo-me com uma desagradável surpresa: encontro, jogado no chão, restos e carcaças de animais, provavelmente devoradas pela criatura. Me aproximo e me surpreendo com a visão. Eram humanos. E o pior se concretiza após encontrar um anel com o símbolo da ordem de Eridu num amontoado de carne podre e vermes. Eram os pobres rapazes, vítimas de um destino tão cruel e injusto. Não entrarei em detalhes acerca de seus ferimentos, mas posso afirmar que esses jovens tiveram uma morte lenta e dolorosa. Que tenham encontrado a paz no sono eterno.

Preparo algumas sepulturas e dou um destino digno aos restos mortais dessas almas sofridas. Faço do campo de batalha o ato final de suas vidas. Após despedir-me e recolher o anel como lembrança à Eridu, volto de cabeça baixa, pensativo, para a estalagem.

Ver jovens morrerem tão cedo me deixa profundamente magoado e irritado. Isso tem que acabar, e naquela noite de lua cheia eu colocaria um fim no carrasco de Beira Mata. Naquela noite enfrentaria meu destino!

(Continua...)

Felipe Manzoni
Enviado por Felipe Manzoni em 27/09/2022
Reeditado em 27/09/2022
Código do texto: T7615274
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