Registros de um velho caçador - Parte 02: "O Rio Que Nunca Existiu"
Prezado mestre Uruk,
Escrevo o presente documento para relatar algumas experiências deveras interessantes que presenciei nas últimas semanas. Como sabes bem, após resolver a situação em Elgin, me prestei a trotear em direção à Rio Vermelho para aguardar vosso contato.
É de minha ciência que vosso conhecimento em história local é demasiado precário, portanto preciso lhe contar uma curiosidade daquela localidade. Rio Vermelho fica localizada entre a Baía dos Desesperados e o rio Vermelho (destaco a imensa capacidade criativa e artística que os habitantes locais possuem). Na outra margem há a cidade de Estuário, eterna rival de Rio Vermelho. Dizem que a rixa surgiu, pois, os habitantes da primeira afirmam que rio Vermelho na verdade é um estuário e deveria ser chamado como tal. Por esse motivo, batizaram a localidade na margem sul do rio/estuário para provocar a população da outra margem. Aldeões e suas brigas.
Como lhe conheço a muito tempo, sei o que está pensando: “O mestre Ur está ficando mesmo um velho, pois despeja asneiras e futilidades aos quatro ventos”. Permita-me continuar, se ainda não compreendeu o motivo de tamanha explanação.
Quando cheguei em Rio Vermelho, na aurora de um dia chuvoso, só me ocorria um pensamento: encontrar uma taverna e saciar minha insaciável sede de andarilho. Após finalmente conseguir molhar a garganta, arrumei um quarto e me levantei para descansar o velho corpo cansado, porém, antes da minha jurássica carcaça responder aos estímulos da mente, dois indivíduos robustos e desdentados sentaram em minha mesa e se prestaram a me encarar fixamente, gelando minha espinha. Espere! Estava quase me esquecendo...
Lembra que havia perdido minha adaga?
Não vais acreditar meu caro amigo, como a recuperei:
La estava eu, arrumando minhas bugigangas para partir de Elgin, quando percebo algo no fundo do alforje do cavalo. Inclinei minha cabeça e minha vista cansada não acreditou no que viu: Minha adaga de prata! Como havia lhe escrito, acho que os jovens têm razão, estou mesmo senil....
Bom, onde estava? Ah, claro! A taverna em Rio Vermelho.
Os dois camaradas compartilharam um olhar e um deles preguntou se eu estava servido, enquanto calmamente eu procurava minha adaga com a mão esquerda por debaixo da mesa, respondi que estava satisfeito e de saída, preparado para dar o bote, até que ouço a pergunta que desarma a situação:
“Ocê é um caçador de monstros? ”.
No fim das contas eram apenas dois curiosos cidadãos preocupados com a segurança da cidade. Soltei uma gargalhada (a qual se transformara em uma pesada tosse, devido aos maus tratos que enfrento do vento, chuva e sol escaldante) e respondi:
“Pensando bem, esse velho veterano aceita mais uma rodada! ”.
Acordo no outro dia com uma terrível dor de cabeça e na cidade vizinha, Estuário. Estou velho demais para bebedeiras e farras.
Encontro, pelo centro da cidade, os dois companheiros de festa da noite anterior, alegres em me ver:
“Lá está ele, o herói do delta do Rio Vermelho, mestre Ur, o velho! ”.
“Vamos mestre? ”, o outro perguntou.
Eu claramente não fazia ideia do que estava acontecendo até que, como um cão raivoso que ataca seu agressor, as memórias da noite anterior retornaram.
Irei resumir tudo que aconteceu: Acabei aceitando um contrato de caça à sabe-se-lá-o-que que estava atormentado os moradores de Rio Vermelho e Estuário. Imagino a cara que estás fazendo agora, mas devo justificar-me: o pagamento é excelente, melhor do que o estado nos paga. Continuando...
Pedi que me levassem ao local das vítimas e após analisá-lo e revirar os corpos das pobres almas, percebi um padrão bem peculiar e característico: Os três corpos que investiguei estavam com marcas nos braços e tronco, como de alguém que é contido por um agarrão letal. É evidente também que as vítimas foram mortas por afogamento, concluindo que essas miseráveis pessoas foram arrastadas e submergidas no rio.
Porém, o mais impressionante estava na ausência de partes dos corpos, partes específicas em todas as vítimas: olhos, narizes, pontas dos dedos dos pés e mãos e genitálias. Não havia dúvida, a fera era um Ipupiara.
Não é de me espantar, pois são criaturas comuns em regiões onde há encontro de água doce e salgada. Expliquei a situação para meus contratantes e eles se arrepiaram com a notícia. Combinei o valor da recompensa, pedi para que avisassem a população das cidades para trancarem-se em casa, pois à noite lidaria com a situação, visto que essas criaturas atacam suas presas ao nascer do sol.
Desloquei-me à estalagem e iniciei os preparativos para a caçada noturna. Detesto ter que passar a madrugada em claro, acaba com minha rotina e desgasta meu corpo cansado. Preparei algumas armadilhas, as quais poupárei-lo dos detalhes, pois, assim como eu, és um lobo velho, veterano no ofício.
Analisei os melhores locais à margem do rio e, pela noite, armei as armadilhas fabricadas na hospedaria. Como de costume, escolhi um canto à beira da praia para me resguardar e esperar o resultado de meus esforços.
Após incontáveis horas combatendo o tédio e o gélido vento da madrugada, percebo que duas das armadilhas armadas foram acionadas, era como eu imaginava: havia duas criaturas assolando a região.
Lentamente levantei, bati o sobretudo para livrá-lo da pegajosa areia da praia e me desloquei até a margem. Eram dois indivíduos de boa saúde: pele pálida, traços humanoides, com exceção de suas garras avantajadas nas mãos e pés, as quais possuíam as falanges ligadas por uma membrana grossa e espessa, como pata de um marreco. Seus antebraços, coxas e panturrilhas eram cobertos de escamas rígidas levemente amareladas. Possuíam guelras na região do pescoço, olhos esbranquiçados e dentes pontiagudos afiadíssimos. O primeiro devia ser mais velho pois suas escamas eram mais amareladas e opacas. Possivelmente era o progenitor do segundo espécime.
Ajoelhei-me próximo as criaturas, desembainhei minha adaga de prata e desferi o golpe de misericórdia, na região cervical, oferecendo a morte mais rápida e indolor possível. Após o acontecido, como de praxe, utilizei nosso selo para marcar a criatura e tratei de organizar a famigerada “papelada”.
A recompensa pelo contrato segue junto com o presente relatório e nesse momento tudo o que desejo é deitar na aconchegante cama da hospedaria de onde lhe escrevo e descansar depois de um trabalho bem executado.
Sabe mestre Uruk, apesar de estar me transformando em um velho ranzinza e “reclamão”, ainda me divirto com essas empreitadas e andanças pelos confins de nossa terra. A vida é tão curta e o mundo demasiado grande para nos trancarmos na segurança de um quarto, vê-la passar pela janela e aguardar para que a morte nos salve de nosso próprio mal.
Devo descansar e seguir viagem em direção às montanhas ao extremo norte, na cidade de Vale da Fé, em três dias (preciso me recuperar das “aventuras etílicas” de Rio Vermelho). Aguardo o seu contato e instruções futuras.
Passar bem e que o fio de vossa lâmina nunca gaste.
Mestre Ur