Quimera

Ela era o esteio de uma família em franca decadência. Bonita, divertida e cativante, tinha uma suavidade própria e exalava carinho e segurança para todos com quem convivia. Ocultava a beleza com um chapéu de palha de abas largas que, segundo ela, serviam para proteção contra o sol causticante e o corpo bem feito podia ser percebido mesmo com as calças largas que usava. A vaidade, às vezes, se revelava nas blusas quadriculadas com cores vivas, discretas e de bom gosto, mas como contraponto, dobrava as mangas ao estilo estivador para acobertar algum vestígio de futilidade ou desejos não declarados.

Habitava um imenso casarão localizado em uma enorme área de terra urbana que além da casa também comportava uma represa que abastecia água doce à pequena cidade. A represa grande e profunda tinha o espelho d’água sempre encoberto por uma vegetação aquática de nome científico Pistia stratiotes, denominada em muitos locais como alface d’água, erva de santa luzia, repolho d’água. Rodeada por árvores e arbustos tortuosos cobertos por ervas daninhas o entorno da represa era lúgubre e misterioso provocando a imaginação da criançada que circulava diuturnamente e, medrosamente, ao seu redor. Com varas de anzol para pesca de piabas ou armados de badogue (brinquedo feito de uma forquilha de madeira e duas tiras de borracha hoje mais conhecido como estilingue) para caça de passarinhos (prática não mais utilizada, felizmente, mas que no passado, era uma manifestação lúdica), a criançada caminhava pela trilha próxima da barragem sempre com passos apressados e coração quase saindo pela boca só em lembrar das estórias de assombração com monstros e almas penadas contadas e recontadas na cidade.

A nossa personagem lá do início era uma dessas contadoras de estórias as quais replicava com grande perícia, seja nas palavras seja na representação, estórias de monstros sendo que um deles era muito especial por habitar, segundo ela, os domínios da represa de sua casa. Criando ou recontando estórias sempre ao escurecer, ela tornava real aos olhos da criançada a fama enigmática da barragem. No varandado soturno do casarão sentada num tronco grosso de madeira com as crianças ao seu redor, ela viajava na imaginação criando contos que tinham, invariavelmente, como personagem central o tal monstro cavernoso que saia, sempre à meia noite de alguma sexta feira 13, para se lambuzar com carne fresca pelas redondezas. Durante a estação das chuvas ele se escondia sob as plantas aquáticas que cobriam a represa pois era um bicho mistura de réptil e anfíbio e durante a seca, seu esconderijo era a vegetação fechada e escura do entorno do açude.

Um grito uníssono de pavor eclodia invariavelmente do grupo e até se podia perceber a pele arrepiada e a contração involuntária e lenta dos músculos do corpo quando ela uivava e gesticulava socando o ar com pernas e braços em movimentos fortes e rápidos simulando os meneios do ogro. Interjeições partiam de todos os lados junto a movimentos nervosos e olhos esbugalhados: céus! quê! caramba! vixe!, cruz credo!, cruzes! Em muitos momentos, quando a tensão atingia o ápice, as crianças não se aguentavam e corriam, pulavam numa encenação que apesar do pânico explícito nos rostos era divertido de se apreciar. O retorno para a casa na escuridão da noite e sem iluminação elétrica nas ruas era desesperador, seja pelo medo de encontrar a criatura, seja pelas explicações a serem dadas aos pais ou pela cama molhada no dia seguinte.

A seção se encerra e nossa personagem se alonga ri um riso triste e viaja nos seus pensamentos. Amiúde se enxerga na metáfora do monstro da represa na sua solidão rodeada de gente que desumaniza quem não se encaixa em seus parâmetros. A noite avança e ela continua buscando um final feliz para suas estórias tão insistentemente pedido pelos seus pequenos ouvintes e, porque não? Para sua metáfora.

FCintra
Enviado por FCintra em 18/04/2022
Reeditado em 14/07/2024
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